No noroeste do Rio Grande do Sul, Alecrim está situada a 22 quilômetros da fronteira com a Argentina e a 536 quilômetros de Porto Alegre. O trajeto até o município é cercado de morros verde esmeralda, milharais, açudes e granjas de porcos e aves. Na entrada, há o aviso de que estamos na Rota do Rio Uruguai — o município é margeado por 42 quilômetros de região costeira. Logo após o pórtico de entrada, avizinham-se casinhas de cercas baixas ou sem qualquer muro.
Na área central, no topo de uma das vias principais, destacam-se duas torres da Paróquia Santa Cecília. À sombra de uma árvore, em 14 de novembro de 1935, foi celebrada ali por um pároco argentino — da cidade de Alba Posse — a primeira missa na comunidade de Alecrim. Naquele tempo, o caminho até Santo Cristo não era asfaltado e as estradas esburacadas precisavam ser percorridas a cavalo. Tornava-se mais fácil apelar para o padre hermano. A história da paróquia — fundada oficialmente por decreto em 1952 — se entrelaça a do município. Junto à localidade onde foi celebrada a primeira missa, foi formada à cidade de Alecrim, que se tornou município em 1963.
Hoje em dia, nas calçadas limpas e floridas dançam borboletas amarelas. Ao meio-dia o silêncio é tanto, que parece ser mais adequado sussurrar qualquer frase. A quietude alcança o anoitecer. Em frente à paróquia, o som dos pássaros se confunde com o das folhas das árvores sacolejadas pelo vento. Numa gruta, ao lado da igreja, queimam velas acesas pelos fiéis. É para lá que caminham uma mulher e uma menina, que cruzam a rua de mãos dadas.
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Foi assim, lado a lado, numa madrugada chuvosa, que Micheli Sost Barbosa, ainda adolescente, a mãe Teresinha Maria Sost e os irmãos pequenos se embrenharam na escuridão. Aproveitaram que Valdir Jocelino Barbosa havia deixado o casebre para embriagar-se mais uma vez e decidiram escapar das agressões. Tatearam o escuro até depararem com a porta aberta de uma casa abandonada. Acomodaram-se no chão de piso frio e úmido de uma antiga lavanderia. Adormeceram ali, aguardando que a delegacia da cidade abrisse as portas às 8h.
Essa é uma das lembranças que Micheli — hoje com 21 anos — guarda das duas décadas de violência que presenciou a mãe sofrer. Os episódios eram tão frequentes, que as datas se confundem dentro dela. Recorda-se de quando deveria ter três ou quatro anos e o pai entrou na casa esbravejando, com um revólver na mão. Ouvira no bar que Teresinha lhe traía com outro.
No sofá, a mulher amamentava o filho recém-nascido. Micheli desceu da cama e espiou por uma fresta. Viu a mãe ser agredida com coronhadas e socos no rosto. O sangue respingava nas roupinhas do bebê. A mãe deixou a criança sobre o sofá e correu para o banheiro, onde continuou a ser espancada. Num ímpeto, a menininha correu na direção do irmão e o protegeu. Escondeu-se com ele dentro do quarto, fingindo que dormiam.
— Nunca foi um pai e nem um amigo. Para mim, sempre foi um estranho dentro da minha casa. A mãe foi no médico depois e tinha trincado duas costelas. A cabeça dela ficou muito machucada, a boca. Ela perdeu os dentes da frente — relembra a filha.
Ao longo da relação, Teresinha fez pelo menos cinco registros por ameaça e dois por descumprimento de medida protetiva contra o companheiro. Esteve abrigada pelo menos três vezes — todas elas fora de Alecrim.
Idas e vindas
Quando procurou a polícia, em 13 de novembro de 2003, tinha apenas 20 anos e morava em Bento Gonçalves, na Serra. Disse que o companheiro chegou em casa embriagado, pegou um facão, e ameaçou de matá-la. Contou que Micheli — a única filha até então — de dois anos e três meses dormia. Relatou que as agressões aconteciam constantemente e que era ameaçada. “Diz que vive coagida em sua própria casa, visto o marido ser violento quando está embriagado. Informa que quer ir embora, só que não consegue, por motivos financeiros e ameaças do marido”, descreveu.
Quatro anos depois, em 24 de novembro de 2007, também em Bento Gonçalves, pediu medidas protetivas contra o companheiro. Narrou à Brigada Militar que Valdir chegou em casa com outra mulher, dizendo que dormiria com ela, e ainda a agrediu com um tapa no rosto, enquanto ela segurava o filho caçula, de dois anos e meio, no colo. Teresinha, que disse ter sido ameaçada de morte caso procurasse a polícia, foi levada ao abrigo municipal naquela noite e o Conselho Tutelar foi acionado.
Em março de 2008, Teresinha informou que o homem tinha um revólver de calibre 38, sempre municiado, e que ameaçou colocar fogo na casa da mãe dela, onde estava abrigada, mesmo que isso causasse a morte de inocentes, no caso, os dois filhos deles. Ao longo dos anos seguintes, houve série de outros registros. Teresinha e Valdir tiveram ainda mais um casal de filhos.
— Ele vinha, ameaçava e ela cedia. Ela estava com ele desde os 18 anos. Ela pensava em nós, nos filhos. Dizia que não conseguia se livrar, e que era uma cruz que ia carregar para o resto da vida — narra Micheli.
A filha acredita que a falta de uma rede fortalecida de acolhimento também impedia a mãe de acreditar que poderia se libertar daquela relação. Uma das mulheres que conviveu com Teresinha conta que também vive uma relação abusiva, mas prefere não denunciar. Teme obter a medida protetiva, mas não ter a quem recorrer. Das 19h até o amanhecer, o atendimento da Brigada Militar é feito mediante plantão das cidades vizinhas. De Santo Cristo, são 23 quilômetros. Quem chega ao posto policial, encontra um aviso de que a equipe está em atendimento de ocorrência e que o contato deve ser feito por telefone.
— De noite é quando o homem procura vir atrás. Até chegar aqui, a mulher já está morta. Pegar uma medida protetiva é só para dizer que pegou, é só um papel. O melhor remédio é trancar as portas e deixar um facão dentro de casa — conforma-se a mulher.
A Secretaria da Segurança Pública do Estado informou que "o policiamento ostensivo é realizado no município", mas que por questão "estratégica e de inteligência, o efetivo não é informado". A manifestação diz ainda que o policiamento "é reforçado através da patrulha intermunicipal de Santo Cristo".
Descumprimentos
Em dezembro de 2020, a polícia procurou Teresinha, depois que o caso foi comunicado por uma enfermeira da rede municipal de saúde de Alecrim. Naquela manhã, a vítima foi até a delegacia, onde confirmou as agressões, disse que estava sob ameaça havia muito tempo e que Valdir ameaçava que se ela fugisse ou procurasse a polícia iria “matá-la com uma faca”. Também preencheu o formulário de risco, no qual apontou que até aquela data sempre relevou as agressões que foi vítima, que o agressor “tentou esgoelá-la várias vezes”, que “sempre fica bem quieta, escuta tudo, sofrendo muito com isso”. No registro, o policial apontou que Teresinha dizia estar com muito medo e que isso era “visível no semblante da vítima”.
Estava tão feliz com as coisas que estava conquistando. Quase não dava para reconhecer a mesma mulher que era. Não adoeceu mais. Arrumou o cabelo. Mas ele não era feliz em ver ela feliz.
MICHELI SOST BARBOSA
Filha de vítima de feminicídio
No mesmo dia, o Judiciário deferiu medidas protetivas pelo prazo de três meses — que depois foram prorrogadas ao longo do ano seguinte. A determinação foi para que Valdir não pudesse ter qualquer contato com Teresinha e seus familiares, mantivesse distância mínima de cem metros e se afastasse do lar em que residiam. Três meses depois, Teresinha buscou a polícia novamente e relatou que, mesmo após receber medida protetiva, o ex retornou para casa e não quis mais sair de lá. Disse que não comunicou o fato por medo, mas que naquele dia seus dois filhos, de seis e nove anos, também foram agredidos. Narrou ainda que Valdir lhe ameaçou, dizendo que iria lhe dar “30 facadas”. O registro foi feito na delegacia de plantão em Santa Rosa. Naquele dia, ela foi abrigada novamente.
Nesse período, Teresinha passou a viver com a filha Micheli, em Alecrim. Voltou a usar batom vermelho — sua cor favorita — e foi incentivada a vestir as roupas que lhe deixassem feliz. Juntou dinheiro para ir ao dentista e restaurar os dentes. Sentia-se livre. Depois de duas décadas, não tinha mais quem controlasse como deveria agir.
— Antes, não via um sorriso verdadeiro nela. Depois que ela se separou dele, veio morar aqui, o sorriso dela era diferente — diz a vizinha, Sílvia da Silva, 33.
— Ela tinha amigas. Coisa que nunca teve. Estava tão feliz com as coisas que estava conquistando. Quase não dava para reconhecer a mesma mulher que era. Não adoeceu mais. Arrumou o cabelo. Mas ele não era feliz em ver ela feliz — completa a filha, Micheli.
O sequestro
Na noite de domingo, dia 23 de janeiro de 2022, Teresinha viajou novamente até Santa Rosa, para mais um registro de descumprimento. Disse que o ex entrou em sua casa e passou a lhe ameaçar de morte. Aquela era a sétima vez que Teresinha dizia que Valdir pretendia matá-la. O registro foi feito no início da madrugada do dia 24, uma segunda-feira. O Judiciário determinou então que ele fosse detido, mas durante a tentativa de prisão pela Brigada Militar Valdir escapou.
Sabendo que ele havia fugido da polícia, no fim da tarde do dia 25, uma terça-feira, mãe e filhos se esconderam na residência de uma vizinha. Segundo a polícia e o Judiciário, Teresinha foi orientada a não voltar para casa. Durante a noite, Micheli e Teresinha foram para a moradia para buscar algumas roupas. Foi quando Valdir saltou de dentro do mato, armado.
— Não me mata, não me mata — implorou Teresinha.
Micheli correu na direção dele e enxergou a arma, apontada para seu rosto. Valdir arrastou a ex até o matagal, onde desapareceram.
— Deixa ela para cuidar dos filhos. Me leva! — implorou Micheli ao telefone, quando conseguiu contato com Valdir.
A partir dali, foram dois dias e meio de angústias, sem respostas sobre o paradeiro dela. Micheli diz que naquela madrugada suplicou à Brigada Militar para que ingressassem no matagal, mas não foi atendida.
— Se seguir o mato vai até a casa lá embaixo. Ele não tinha para onde fugir. Mas disseram que não tinham como entrar de noite — relata Micheli.
A polícia afirma que foram realizadas buscas ininterruptas, mas que o casal não foi encontrado. Ao longo dos dias, foram cumpridos mandados de busca em casas onde poderiam estar.
Na manhã de 28 de janeiro, com cães farejadores, policiais e bombeiros seguiram outra vez até a casa de Valdir. Um policial atentou que a porta estava fechada — no dia anterior, havia sido cumprido mandado e a mesma havia ficado aberta. Um dos agentes chamou pelo nome de Valdir. Segundos depois, ouviu um disparo, seguido de outro. Quando arrombaram a porta, depararam com Teresinha agonizando sobre a cama e Valdir caído.
No casebre na vila chamada Esperança, Tere, como era chamada, havia passado as últimas horas aterrorizada, ao lado do homem que lhe silenciara por toda a vida e lhe arrancara a possibilidade de esperançar.
— Nunca fiquei tanto tempo longe dela. Sinto falta todos os dias. Ela era minha amiga. Sempre que precisei, ela estava ao meu lado. Depois que ela morreu, ficou um vazio muito grande — desabafa Micheli, que tatuou no braço esquerdo a data daquele 28 de janeiro de 2022, junto ao dia de nascimento da mãe e de uma rosa.
Na tarde de 15 de maio, a primogênita retornou ao túmulo da mãe, onde chorou pela primeira vez ao falar sobre a perda. A filha – que também é mãe de um bebê – se tornou a responsável por cuidar de dois irmãos, de oito e 11 anos. As crianças ficaram com uma amiga para que ela fosse ao local. Quando está com eles, Micheli repete a sina do silêncio. Mantém-se firme. Esconde-se quando quer chorar. Teme aflorar os traumas. No dia a dia, comemora cada avanço do irmão. Preocupa-se com o fato de que a irmã pouco fala sobre tudo. Almeja que as crianças tenham voz e trilhem um futuro melhor, longe da violência.
Orientações
- Se estiver sofrendo violência psicológica, moral ou mesmo física, busque ajuda imediatamente. Não espere a violência evoluir. Converse com familiares, procure unidades de saúde, centros de referência da mulher ou a polícia. É possível acessar a Delegacia Online da Mulher
- Caso saiba que alguma mulher está sofrendo violência doméstica, avise a polícia. No caso da lesão corporal, independe da vontade da vítima registrar contra o agressor, dado a gravidade desse tipo de crime
- Se estiver em risco, procure um local seguro. Em Porto Alegre, por exemplo, há três casas aptas a receberem mulheres vítimas de violência doméstica
- Siga todas as orientações repassadas pela polícia ou pelo órgão onde buscar ajuda (Ministério Público, Defensoria Pública, Judiciário)
- No caso da lesão corporal, o exame pericial para comprovar as agressões é essencial para dar seguimento ao processo criminal contra o agressor. Procure realizar o procedimento o mais rápido possível
- Caso passe por atendimento em alguma unidade de saúde, é possível solicitar um atestado médico que descreva as lesões provocadas
- Reúna todas as provas que tiver contra o agressor, como prints de conversas no telefone. No caso das mensagens, é importante que apareça a data do recebimento
- Se tiver medida protetiva, mantenha consigo os contatos principais para pedir ajuda. A Brigada Militar mantém em pelo menos 114 municípios unidades da Patrulha Maria da Penha que fiscalizam o cumprimento da medida
- Se tiver medida protetiva e o agressor descumprir, comunique a polícia. É possível acionar a Brigada Militar, pelo 190, ou mesmo registrar o descumprimento por meio da Delegacia Online. Descumprimento de medida pode levar o agressor à prisão
Fonte: Polícia Civil e Poder Judiciário do RS
Onde pedir ajuda
Brigada Militar
- Telefone - 190
- Horário - 24 horas
- Serviço - atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, há a Patrulha Maria da Penha da BM, que fiscaliza o cumprimento. Patrulheiros fazem visitas periódicas à mulher e mantêm contato por telefone
Polícia Civil
- Endereço - Delegacia da Mulher de Porto Alegre (Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia), bairro Azenha. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há 23 DPs especializadas no Estado
- Telefone - (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências)
- Horário - 24 horas
- Serviço - registra ocorrências envolvendo violência contra mulheres, investiga os casos, pode solicitar a prisão do agressor, solicita medida protetiva para a vítima e encaminha para a rede de atendimento (abrigamentos, centros de referência, perícias, Defensoria Pública, entre outros serviços)