O Anuário Brasileiro da Segurança Pública indica o Rio Grande do Sul como o terceiro em número de feminicídios — atrás de São Paulo e Minas Gerais. Os dados são referentes ao ano de 2021, quando foram registrados 96 assassinatos de mulheres em contexto de gênero. Em 2022, com 107 vítimas, esse número aumentou 11,4%. No mesmo período, também houve elevação dos casos em que as mulheres tinham medida protetiva. Em 2021, tinham sido 10 e no ano passado foram 21, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado.
Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Betina Barros atribui o elevado número a dois fatores: o machismo enraizado, num Estado de cultura patriarcal, e a qualidade das análises dos casos de homicídios de mulheres, que permite a tipificação dos feminicídios, o que nem sempre se vislumbra em todos os locais.
— Alguns Estados têm maior ou menor compreensão da violência contra a mulher. O RS tem se aperfeiçoado nisso. Se olhar o percentual de homicídios de mulheres tipificados como feminicídio tem algo como 40%, a média nacional é de 34%. É um Estado que está olhando para homicídios de mulheres com olhar mais cuidadoso — pondera Betina.
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Das vítimas do ano passado, 80,4% não tinham medida protetiva decretada. Segundo o Mapa dos Feminicídios da Polícia Civil, metade nem sequer tinha algum registro anterior de violência doméstica.
Na visão da juíza Madgéli Frantz Machado, do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Porto Alegre, o desafio ainda é fazer com que a mulher rompa a barreira e busque ajuda. Para isso, ressalta que é necessário pensar políticas públicas, especialmente para aquelas em vulnerabilidade.
— A denúncia e as medidas protetivas salvam vidas. O desafio está em identificar as barreiras que estão impedindo ou dificultando o acesso dessas mulheres. Inexistência de serviços? Ausência de política pública assistencial? Por exemplo, a mulher às vezes sequer tem dinheiro para pagar passagem de ônibus para ir até a delegacia de polícia — critica a juíza.
Em 2023, segundo a delegada Cristiane Ramos, titular da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam), no primeiro quadrimestre caiu o percentual de mulheres vítimas de feminicídio que tinham medida protetiva. Das 29, 86,2% não tinham solicitado medida protetiva e 58,6% não tinham qualquer registro anterior. Em contrapartida, em 89,7% o autor tinha antecedentes policiais. Das 29 vítimas, 24 eram mães e deixaram 53 órfãos — sendo 37 crianças e adolescentes.
— É importante destacarmos que os casos em que mulheres são mortas com MPU (medida protetiva de urgência) válida são excepcionais. O dado demonstra que as mulheres que registram ocorrência e solicitam MPU ficam muito mais protegidas do que as mulheres que se mantêm em silêncio no ciclo de violência. Precisamos fomentar o registro de denúncias e solicitação da MPU e acreditamos que o projeto de monitoramento eletrônico do agressor da SSP vai melhorar ainda mais a eficiência protetiva das medidas. As mulheres precisam ser amparadas e auxiliadas para romperem o silêncio e pedirem ajuda — afirma a delegada.
O dado demonstra que as mulheres que registram ocorrência e solicitam MPU ficam muito mais protegidas do que as mulheres que se mantêm em silêncio no ciclo de violência.
CRISTIANE RAMOS
Delegada de Polícia
Os especialistas não divergem sobre o fato de que a Lei Maria da Penha é um marco na luta contra a violência doméstica e que as medidas protetivas são ferramenta importante para conter os agressores. Mas entendem que é preciso avançar para que a lei seja aplicada e a mulher consiga efetivamente romper com as relações abusivas, reduzindo o risco de ser assassinada. Entre as ações citadas como necessárias para avançar na proteção estão a capacitação dos agentes policiais, ampliação das Patrulhas Maria da Penha, e uma rede articulada, que envolva também os atendimentos psicológicos, acompanhamento social da família, e condições de abrigamento para essa mulher.
— Houve menos investimentos na Lei Maria da Penha no que diz respeito a pensar políticas mais a longo prazo de proteção dessa mulher: garantia do abrigamento, de como essa mulher vai conseguir se manter, quais efeitos de violência psicológica e física, todos os tipos de traumas que um relacionamento abusivo provoca. O Estado precisa estar presente no tratamento das consequências dessa violência. Todo o sistema de proteção da mulher precisa estar atuando em conjunto. A polícia consegue evitar o pior em muitos casos, mas não consegue romper com o ciclo da violência — afirma Betina.
No RS, somente 15 cidades contam com casas de abrigo próprias. Os municípios não são informados pela Secretaria de Justiça Cidadania e Direitos Humanos por segurança, em razão de, por vezes, se tratar de cidades pequenas, o que permitiria que os agressores soubessem da existência delas. Segundo a secretaria, a “maioria dos municípios” também realiza convênios com empresas para abrigamento — o número neste caso não foi divulgado.
O relatório da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios do Rio Grande do Sul 2020-2021, publicado no segundo semestre de 2022 pela Comissão de Segurança, de Serviços Públicos e Modernização do Estado, da Assembleia Legislativa, apontou que o RS possuía 25 Centros de Referência Municipais da Mulher, “muitos deles com dificuldades de funcionamento”.
Dos 20 municípios onde as 21 vítimas foram mortas em 2022, em sete deles verifica-se a existência desse tipo de atendimento. Nos demais, quem presta o suporte são os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) ou Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).
— Tem uma desarticulação e desmantelamento das políticas públicas, que vem não só do Estado, mas em nível nacional também, nos últimos anos. A gente vinha num avanço devagar, mas vinha num avanço da Lei Maria da Penha e dos serviços, mas nos últimos quatro ou cinco anos, houve declínio. Hoje não tem levantamento estruturado dos organismos de políticas para mulheres. Essa é uma demanda prioritária desde que se retomou o Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres, a construção do diagnóstico da rede — alerta Renata Jardim, advogada e coordenadora da área de violência da ONG Themis.
Dos 20 municípios onde aconteceram os casos analisados nesta reportagem— Caxias do Sul teve dois episódios — 12 não possuem delegacia de atendimento à mulher, e metade não tem Sala das Margaridas (espaço reservado para receber os registros). Seis dos municípios analisados não possuem qualquer serviço especializado, seja Delegacia da Mulher, Sala das Margaridas, Patrulha Maria da Penha, Posto Médico Legal ou Sala Lilás (para perícias). É o caso de Alecrim, onde vivia Teresinha Maria Sost, 39 anos, vítima de feminicídio em janeiro do ano passado, após duas décadas de registros contra o ex. O município está entre os seis que têm até 15 mil habitantes.
— Em grandes centros até têm atendimento mais especializado, mas indo para o Interior, cidades menores, a qualidade disso é mais difícil de garantir. É importante que o Estado olhe para esses municípios e ofereça recursos, e que o próprio município priorize isso na sua organização. Acaba que são mulheres que ficam muito isoladas. Já são geograficamente isoladas e não têm muito onde pedir ajuda — ressalta Betina Barros.
Monitoramento eletrônico
No dia 19 de maio, o governador Eduardo Leite assinou o termo de cooperação para colocar em prática o projeto Monitoramento do Agressor. A iniciativa permitirá o uso de tornozeleiras eletrônicas em agressores para tentar evitar que se aproximem de vítimas com medidas protetivas. O Judiciário poderá determinar a instalação dos equipamentos naqueles homens que demonstrem risco potencial à mulher. Ao todo, são 2 mil kits de equipamentos, ao custo de R$ 4,8 milhões — o início da distribuição se dá por Porto Alegre e Canoas. O projeto é uma iniciativa do Comitê Interinstitucional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher - EmFrente, Mulher, sob a coordenação do RS Seguro.
Funcionamento do projeto em Porto Alegre
- Central de Monitoramento Eletrônico — Avenida Pernambuco, 649/4º andar, bairro Navegantes.
- Atendimento à vítima monitorada – Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) – Rua Professor Freitas e Castro, 700, bairro Azenha. Telefone: (51) 3288-2172.
- Atendimento ao agressor monitorado – Instalação/desinstalação e configuração do equipamento no Departamento de Tecnologia da Informação Policial (DTIP/PC) – Avenida João Pessoa, 2.050/térreo, bairro Azenha.
Funcionamento do projeto em Canoas
- Central de Monitoramento Eletrônico – Avenida Santos Ferreira, 4.321, bairro Estância Velha.
- Atendimento à vítima monitorada – Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) – Rua Humaitá, 1.120, bairro Nossa Senhora das Graças. Telefone: (51) 3462-6700.
- Atendimento ao ofensor monitorado – 2ª Delegacia de Polícia Regional Metropolitana, do Departamento de Polícia Metropolitana (DPRM/DPM) – Avenida Doutor Sezefredo Azambuja Vieira, 2.730, bairro Marechal Rondon. Telefone: (51) 3425-9000.