Em junho de 2022, dezenas de motoboys se reuniram em frente a um prédio no Morro Santana, na zona leste de Porto Alegre, em protesto após um deles relatar ter sido agredido. Em dezembro do ano passado, na Lomba do Pinheiro, outro descreveu ter sido ameaçado com faca na porta de um residencial. Em novembro de 2023, em frente a um estabelecimento na Zona Sul, dois entregadores contaram terem sido hostilizados e impedidos de entrar por estarem molhados pela chuva. Vídeos desses e de outros casos circulam pelas redes sociais.
Em 2023, o Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindimoto-RS), entidade de classe que representa os entregadores, recebeu 58 relatos de ameaças, agressões verbais e físicas, além de ofensas raciais, no Rio Grande do Sul. Entre os municípios, a Capital lidera o número de casos informados, com 37 registros. Logo depois está Canoas, na Região Metropolitana, com 12. Os outros episódios foram registrados em Caxias do Sul, Alvorada, Sapucaia do Sul, Esteio, Santa Maria e Novo Hamburgo.
— Os conflitos, em regra, ocorrem principalmente no ato da realização das entregas, e sempre por aplicativos, que na sua grande maioria possuem regras próprias para não subir nos apartamentos ou não adentrar em condomínios — explica o assessor jurídico do Sindimoto-RS, Felipe Carmona.
Foi o caso do motoboy que contou ter sido agredido no Morro Santana, após se recusar a deixar o pedido de comida na porta do apartamento do cliente. O entregador relatou que estava esperando na portaria do prédio quando o homem desceu irritado.
— Ele veio, tomou o pedido da minha mão, me pegou pelo pescoço, me levantou, arrastou por uns dois metros, me deu mais uns dois ou três socos no peito, empurrões. Começou a me agredir verbalmente — relatou o motoboy na época.
Tipos de agressões
Dos registros que chegaram ao conhecimento do Sindimoto-RS no ano passado, a maior parte, 43 deles, são agressões verbais e ameaças, 12 tiveram violências físicas e três são notificações de insultos raciais, nos quais havia indícios de injúria racial ou racismo.
— Não são só xingamentos que os entregadores recebem, mas ameaças com facas e armas de fogo — ressalta Carmona.
Entregador há quase cinco anos, Alisson Gabriel Emerixe, 24 anos, diz que os episódios de hostilização contra a categoria são frequentes. Em 2022, ele passou por um caso de agressão, na zona sul de Porto Alegre, no momento em que ingressava num shopping. O motoboy diz que antes de ingressar no local perguntou a um vigilante onde poderia deixar o veículo.
— Deixei bem na frente, onde o colega indicou. No que vou entrar, ele (outro segurança) sai para a rua e fala em tom arrogante: “Tira a moto dali”. Eu disse: “Irmão, teu colega me deixou”. Ele falou: “Não te perguntei, estou mandando tirar a moto”. Eu disse que não ia tirar, que ia entrar rapidinho, estava chovendo, entregar o pedido e voltar. Nisso, ele me deu vários socos na cara — descreve.
Emerixe relata ter sido auxiliado por pessoas que estavam em frente ao shopping e por outros seguranças do local. Este foi o único fato no qual o entregador chegou a ser agredido, mas o jovem relata que a violência verbal faz parte da rotina.
— É em todo lugar. De porteiro, de dono de restaurante, de cliente. A nossa categoria é humilhada diariamente. Eles não respeitam. Trabalhei a pandemia toda, sem parar. A nossa categoria precisa se valorizar mais — diz o jovem.
O entregador registrou o fato na Polícia Civil, mas, segundo o sindicato, esta não é a realidade da maioria dos casos. Em muitos episódios, os entregadores evitam levar a situação adiante, na esfera criminal, por entenderem que se tratam de atos de menor potencial ofensivo.
O deputado federal André Janones (Avante-MG) apresentou, em setembro do ano passado, projeto de lei que prevê aumentar a pena, prevendo reclusão de três a seis anos, para casos de ameaças e agressões a trabalhadores em serviço.
Combate à subnotificação
Diretor de Impacto Social do iFood, uma das principais companhias de entregas no Brasil, Johny Borges garante que o tema causa preocupação e que a empresa percebeu crescimento desses episódios no ano passado. No Rio Grande do Sul, segundo a empresa, foram registrados 58 casos de violências, como agressões verbais ou físicas — mesmo número contabilizado pelo Sindimoto-RS.
Em junho, o iFood lançou uma central de assistência para atender os motoboys. A iniciativa é resultado de uma parceria com a Black Sisters in Law, associação global de advogadas negras. Por meio do aplicativo, o entregador que sofrer algum tipo de agressão durante o trabalho — praticada por cliente ou outra pessoa — pode acionar a plataforma. Um contato é feito com o motoboy, e, se ele autorizar, passa a receber assistência durante o inquérito e o processo.
— A advogada poderá acompanhá-lo nesse procedimento, de ir na delegacia, até a fase da denúncia pelo Ministério Público. Em alguns casos, se tem acionado civilmente a pessoa que cometeu o ato contra o entregador. Muitos clientes e transeuntes ainda veem esse profissional numa posição de subserviência. No período pandêmico, eles se sentiam mais valorizados pela sociedade. Mas esses casos cresceram após esse período — explica o porta-voz.
Para tentar enfrentar a subnotificação, que ainda é um dilema, em novembro foi lançado no aplicativo do iFood para entregadores novo botão para facilitar a visualização por parte do motoboy na hora de informar a plataforma sobre algum tipo de violência.
— O entregador ainda, de certa forma, muitas vezes não enxerga aquilo como violência, se tornou algo naturalizado. Começa na agressão verbal, nesse contexto racial e classista, até chegar a agressão física — afirma Borges.
Como forma de tentar fazer com que a categoria tenha acesso a mais ferramentas, inclusive para identificar as violências, a empresa passou a disponibilizar cursos que abordam o tema. Ainda assim, na visão do porta-voz, há necessidade de uma mudança da sociedade na forma como enxerga esses profissionais.
— Acreditamos no processo educacional. Como qualquer outro trabalhador, o entregador não deve ser agredido durante o exercício de sua profissão. Precisa ser protegido e valorizado pela sociedade. Ele está exercendo uma função fundamental, que faz com que a sociedade ganhe tempo. Se alguém está em casa ou trabalhando, consegue ganhar tempo porque alguém está levando seu pedido. Qualquer pessoa que cometa um ato de violência, esteja na posição de cliente ou não no momento, se comprovada a ação, é banida da plataforma — alerta o diretor.
Entregador deve subir até apartamento ou não?
No caso do iFood, a orientação da plataforma é de que a obrigação do entregador é levar a encomenda até o primeiro ponto de contato que existe na residência da pessoa. Se for no condomínio, esse ponto é a portaria.
— O entregador não tem obrigação de ir até a porta do cliente. Em determinado momento, ele pode preferir subir, para agilizar o tempo de entrega. Mas temos claro nos nossos termos e condições que ele não é obrigado — explica Borges.
Já na plataforma Rappi existe a opção de o cliente solicitar que o pedido seja entregue “pessoalmente”. Algumas cidades ou Estados possuem legislações próprias, inclusive impedindo o acesso dos entregadores.
Em Porto Alegre, está em tramitação um projeto de lei do vereador José Freitas, do Republicanos, que prevê a vedação de exigência, pelo cliente, de que entregadores entrem nos espaços de acesso restrito de condomínios residenciais. Em novembro, representantes da categoria realizam uma manifestação na Câmara de Vereadores pela aprovação do projeto, levando um cartaz com a frase “motoboy não é garçom”.