A Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul determinou o afastamento de um juiz denunciado por quatro mulheres, que trabalhavam na mesma Comarca, por importunação sexual. Um processo corre em sigilo no Tribunal de Justiça do RS (TJRS) e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde maio deste ano, quando a primeira denúncia chegou ao conhecimento da corregedoria.
São quatro mulheres que relataram condutas inapropriadas do magistrado no ambiente de trabalho, espaços públicos e também pelas redes sociais: uma juíza, uma advogada e duas estagiárias.
O investigado é o juiz Odijan Paulo Gonçalves Ortiz, que ingressou na carreira da magistratura em setembro de 2022. Antes de ser afastado, ele estava na Comarca de Vacaria, nos Campos de Cima da Serra, mas os fatos relatados se referem ao período em que ele estava em outra cidade — que não será revelada para evitar a identificação indireta das vítimas. Este foi o primeiro local onde o magistrado foi lotado após aprovação em concurso público.
Odijan ainda está no chamado vitaliciamento (que é o equivalente ao estágio probatório para magistrados), o que significa que ele pode ser exonerado caso o procedimento administrativo disciplinar (PAD) seja julgado procedente. Ele nega as acusações (leia nota abaixo).
Procurado, o Tribunal de Justiça confirma que o afastamento foi determinado pelo Órgão Especial em 25 de setembro, mas não divulga o motivo, porque o procedimento tramita em segredo de Justiça.
— Se for verificado que ele não tem conduta necessária e adequada para ser um magistrado ele é exonerado sem qualquer remuneração. Ao contrário de um juiz vitaliciado, em que a pena máxima a ser aplicada é a aposentadoria com vencimentos proporcionais — explicou a juíza-corregedora-coordenadora Cristiane Hoppe.
Por meio do Portal da Transparência, a reportagem confirmou que ele segue recebendo o salário durante o período de afastamento.
GZH teve acesso, com exclusividade, à íntegra de um parecer que determinou abertura do procedimento administrativo em julho deste ano. A investigação prévia é assinada por 15 juízes corregedores e resume o depoimento colhido das quatro mulheres que se dizem importunadas pelo magistrado. Também é este parecer que sustenta o procedimento aberto no Conselho Nacional de Justiça.
Quem quebrou o silêncio foi outra juíza, que tomou posse na mesma época de Odijan. Ela conta que o primeiro contato com o magistrado aconteceu no início do curso de formação, em Porto Alegre, em que ela foi interpelada em um restaurante perto do Foro Central. No dia anterior, havia ocorrido uma festa com os aprovados.
— Ele disse que gostaria muito de ter dançado comigo durante a festa, que queria ter me chamado (...) por conta “daquelas reboladas”. Inclusive me preocupei com isso, mas estava com vestido no joelho, gola alta e manga comprida. Ainda que estivesse de outra forma não achava razoável — disse a juíza, que não terá o nome divulgado, durante o depoimento.
“Não me sinto segura de ficar com ele na mesma sala.”
MAGISTRADA
Juíza que denunciou caso
Durante o curso, que durou dois meses, a magistrada decidiu evitar contato com Odijan. Ao final, os juízes passaram a escolher a Comarca para atuação conforme a classificação no curso. Melhor posicionada, a mulher escolheu primeiro a Comarca de destino. Algumas posições atrás, Odijan decidiu por outra vaga na mesma cidade.
— Ele entrou em contato comigo, perguntando se eu sabia que a gente ia dividir a mesma Comarca e se já tinha organizado o apartamento. “Eu vou para a Comarca, mas queria saber se tu quer morar comigo”. No contexto de quem falou o que falou no terceiro dia de aula, foi bem desagradável — contou a juíza.
“Há indícios de que o ambiente de trabalho para a depoente possa ter sido um ambiente hostil e intimidativo, uma vez que sofria cantadas, toques inapropriados por parte de Odijan e possuía suas decisões contestadas por parte do seu colega de trabalho”, cita trecho do parecer ao avaliar as condutas do juiz em relação à colega.
Em razão dos fatos, a magistrada conta que passou a evitar ficar na mesma sala sozinha com Odijan.
— Eu não me sinto segura de ficar com ele na mesma sala. Não fico nunca, jamais. Isso eu lembro que teve uma vez, que inclusive estava inverno, sempre gosto de pontuar a questão da roupa, por mais que isso não deva ser uma questão — e completou:
— Ele veio querendo ser muito cortês, mas de forma inconveniente, e eu falei para ele se afastar. Disse: “Só vim perguntar uma coisa”. Eu estava fazendo anotação no papel e ele ficou olhando na direção do meu seio. Ele não olhava no meu olho, só para baixo — relatou, sobre quando decidiu evitar de vez o contato com o juiz.
Advogada se diz perseguida
Foi em uma conversa informal com a juíza que uma advogada com atuação no município percebeu que não era a única que se sentia assediada pelo juiz. A profissional, que havia sido aprovada para conciliadora no Juizado Especial na Vara de Odijan, comentou com a magistrada que estava em dúvida sobre assumir.
— Ela me disse: “Me conta o porquê”. Aí eu entendi que não era só comigo, que teria alguma coisa. Aí eu falei que era por causa do doutor Odijan, e ela me disse: “Então vamos conversar, que tu vai me contar o que aconteceu” — relembra a advogada.
No caso da advogada, as interações começaram pela rede social, com curtidas insistentes. No entanto, ela disse que “não deu muita bola, pois às vezes as pessoas não sabem como funciona a rede social”. Mas, após uma audiência com o juiz, ela conta que foi jantar num restaurante da cidade com um amigo que trabalha no Fórum. Em seguida, o juiz chegou no mesmo ambiente e os cumprimentou. No dia seguinte, o magistrado disse ao amigo dela “que tinha gostado muito da amiga”, mas temia por ela ser advogada.
Mesmo assim, seguia buscando algum contato com a advogada por intermédio de amigos.
— Eu tinha medo que qualquer resposta, que pudesse parecer que sim ou que não, gerasse represália nos processos. Fiquei com medo disso e não respondi nada — contou a advogada.
Com receio, a mulher decidiu restringir publicações em redes sociais e a evitar de ir a pé até a casa de uma amiga, passando a fazer o caminho de carro “porque sabia que a pousada que ele residia ficava nas proximidades”.
Estagiárias também denunciaram
Duas estagiárias do Fórum onde o juiz atuava foram ouvidas pela corregedoria. Uma delas tem 17 anos. As duas contam que as interações começaram pelas redes sociais, com reações e curtidas em postagens.
— Eu só comecei a achar estranho mesmo quando ele começou a reagir com “uau” na minha foto. Foto com decote no Instagram. Em nenhum momento eu respondi, e mesmo assim seguiu — disse uma, que revelou se sentir “angustiada” com a presença do juiz.
Uma outra estagiária também conta que os contatos tiveram início pelas redes sociais, antes de ela conhecer o juiz pessoalmente. Na primeira vez que se viram no Fórum, ele perguntou se ela “era a menina bonita do Instagram”. Dias depois, a jovem conta que estava degravando uma audiência, quando houve a primeira aproximação física.
— Eu tava sentada na cadeira, terminando o termo (de degravação), junto com ele. Ele estava sentado do meu lado e começou cada vez a vir mais para perto de mim. Ele vinha mais para perto, eu colocava a cadeira mais para trás e ele seguia vindo. Foi quando ele veio bem pertinho de mim, aí eu saí pra trás e levantei. Perguntei se tinha terminado o termo, ele disse que sim, aí eu peguei e subi de volta — contou a estagiária, em depoimento.
Caso foi encaminhado ao MP
Além de afastar o juiz das atividades, o parecer foi encaminhado ao Ministério Público para apurar a conduta criminal do magistrado. Este procedimento ainda está na etapa inicial, de coleta de provas e depoimentos.
Contraponto
Procurado, Odijan Paulo Gonçalves Ortiz se manifestou por meio de nota, que foi enviada por seu advogado Rafael Maffini:
“Nos mais de 20 anos de serviço público, prestados em 8 cargos públicos que acessou pela via do concurso público, sempre pautou sua atividade profissional pela correção de sua conduta, respeito e dedicação incondicional ao trabalho. Em relação ao expediente disciplinar instaurado, a defesa manifesta-se no sentido de que será demonstrada a inocorrência das infrações imputadas.”
Sobre a investigação criminal, a resposta foi que “como ainda não houve nenhum momento para atuação de defesa, o Dr. Odijan ainda não tem advogado constituído, o que deve ocorrer nos próximos dias”.
A Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul também foi procurada e enviou nota:
"A Associação dos Juízes do RS, como ocorre em todo e qualquer processo que envolve magistrados, acompanha o caso pelo seu Departamento de Assistência Jurídica para garantir o trâmite do processo legal."