Marcas físicas pelo corpo de Beatriz Abagge a relembram da tortura que enfrentou no ano de 1992, quando foi coagida a confessar um crime que não cometeu. Junto de mais seis pessoas, ela foi forçada a assumir a responsabilidade pela morte de Evandro Ramos Caetano, um menino assassinado aos seis anos em Guaratuba, no litoral paranaense.
Três décadas depois de sofrer com choque elétrico, afogamento e violência sexual, Beatriz expressa uma "sensação de vitória" após ter a sua condenação anulada.
— Há 31 anos a gente vem lutando para provar a nossa inocência — destacou Beatriz, que participou do programa Encontro, da TV Globo, nesta segunda-feira (13).
Os áudios completos do interrogatório policial que mostram o grupo recebendo instruções para confessar o crime são as principais provas que levaram a Justiça a anular as condenações. As gravações das confissões dos suspeitos durante a investigação, na década de 1990, vieram a público com o podcast Projeto Humanos, do jornalista e designer Ivan Mizanzuk. A iniciativa também virou série no Globoplay.
— Tinha certeza que eles iam nos matar. Perdi o sentido muitas vezes. Até hoje não lembro de tudo, são só flashs. Meu cérebro apagou — relembra Beatriz.
Atualmente, Beatriz encara o passado como "aprendizado", ressaltando uma mudança na sua visão de vida.
— Todo mundo sempre fala: "Você perdeu 30 anos". E eu digo que não, eu não perdi, eu aprendi — relata.
— A gente muda a visão das coisas, começa a perceber que direitos humanos tem que existir. Muitas pessoas falam que "direitos humanos é bandido morto". Se fosse assim, nós já estávamos mortos — argumenta.
Questionada sobre qual ela seria o motivo da tortura para confessar o crime, Beatriz sugere que, naquela época, o desaparecimento de crianças pressionava as autoridades do Paraná a fornecer respostas — havia mais casos de crianças sumidas no Paraná. Beatriz acredita que a confissão forçada serviu como uma resposta conveniente.
— Começa uma nova luta para responsabilizar as pessoas que nos torturaram.
Relembre o caso Evandro
Dias depois do sumiço, o corpo de Evandro foi encontrado em um matagal sem alguns órgãos e com pés e mãos cortadas. Ademir Ramos Caetano, que naquele momento desempenhava a função de funcionário público na cidade, identificou o corpo como sendo de seu filho mais novo graças a uma pequena marca de nascença nas costas. Mais tarde, próximo ao local onde o corpo foi descoberto, também foram localizadas as chaves da residência do menino e o par de chinelos que ele usava naquele dia.
Durante as investigações iniciais, sete pessoas foram acusadas de envolvimento no assassinato: Airton Bardelli dos Santos; Francisco Sérgio Cristofolini; Vicente de Paula; Osvaldo Marcineiro; Davi dos Santos Soares; Celina Abagge; e Beatriz Abagge.
Na época, o inquérito policial apontou que a criança foi morta em um ritual religioso encomendado por Celina e Beatriz, esposa e filha do então prefeito da cidade, Aldo Abagge; o pai de santo Osvaldo Marcineiro, Vicente de Paula Ferreira, colega/ajudante de Marcineiro; e Davi dos Santos Soares, artesão de Guaratuba.
Das sete pessoas inicialmente acusadas, quatro foram condenadas ao longo dos anos. Beatriz ficou presa por três anos e nove meses em um penitenciária feminina e por mais dois anos em prisão domiciliar. As penas de Osvaldo e Davi se extinguiram pelo cumprimento. Vicente morreu por complicações de um câncer em 2011 no presídio onde estava. Francisco e Airton foram acusados na época, mas posteriormente absolvidos. Celina, mãe de Beatriz, não foi julgada por que tinha mais de 70 anos e o crime prescreveu.