A Sala 4, onde estudam alunos do oitavo ano do Ensino Fundamental no Colégio Estadual Coronel Massot, tem cadeiras diante de todas as classes, exceto em uma. Era nela que sentava para assistir às aulas João Francisco Maciel dos Santos, 14 anos, assassinado ao lado da irmã, Marina Maciel dos Santos, 16, em um ataque a tiros na noite de 19 de abril, no bairro Cascata, zona sul de Porto Alegre. O crime, que resultou na morte dos adolescentes e deixou outras três pessoas feridas, permanece sem respostas.
Professor de Ciências da Natureza, Francimar Alves explica que a decisão de deixar intocada a carteira onde o menino tomava suas lições partiu dos próprios estudantes, motivados pelo luto e pela necessidade de não esquecer do colega.
Para um dos meninos, considerado melhor amigo de João, a homenagem não foi o bastante. Ele pediu para mudar de turma, pois não suportava frequentar o ambiente e rememorar diariamente a amizade rompida pela violência.
— A gente está esperando e confiando que haverá o esclarecimento. Perdemos duas crianças ótimas, de uma forma que é muito difícil de aceitar. Não será simples apagar a tristeza e a revolta que estão no nosso pensamento, mas as respostas sobre o que aconteceu talvez tragam algum conforto. A ferida está aberta e dói muito no coração da nossa comunidade escolar — diz Francimar.
Ao falar sobre o assunto, o professor ainda se emociona. Deixa escapar algumas lágrimas, que refletem a atmosfera sensível na escola, onde cartazes e inscrições espalhadas pelas paredes abordam temas como racismo, sexismo, liberdade de expressão e diversidade de gênero.
— Desculpem, fiquei emocionado novamente. Eles eram jovens normais, comunicativos, amigos. Os sonhos deles, assim como dos demais alunos, enchiam a gente de alegria e passavam o sentimento de que teriam um bom futuro, que seriam boas pessoas. A gente se importa com os alunos aqui. Quando um deles deixa de vir à aula por mais de um dia, ligamos para a família. Não admitimos perder uma criança sequer — desabafa o professor.
A ruptura tem produzido aflição naqueles que compartilhavam da companhia e da vivacidade de João e Marina, que se tornaram vítimas do desfecho trágico de um ataque armado ocorrido por volta das 21h de uma quarta-feira.
Seria uma noite comum para a família moradora da Rua Guanabara, no bairro Cascata. Os irmãos saíram de casa a pé para comprar uma garrafa de refrigerante em uma padaria localizada na Avenida Herval. No caminho, foram atingidos por diversos tiros dirigidos contra um grupo de pessoas que estava próximo ao estabelecimento comercial.
Os disparos foram desferidos por pistolas de calibre 9 milímetros empunhadas por homens em um automóvel Ecosport de cor prata. Gravemente feridos, João e Marina não resistiram.
Painel memorial ajuda a enfrentar ausências
No dia seguinte ao fato, a escola funcionava normalmente. Ocorria uma reunião do corpo docente para alinhamento de projetos pedagógicos quando a notícia da tragédia começou a se propagar entre a comunidade escolar, composta por cerca de 850 pessoas, entre professores, dirigentes, funcionários e estudantes.
— Na escola, trabalhamos cotidianamente a temática da violência em suas múltiplas formas. Atendemos um conjunto de crianças, adolescentes e até adultos que vivem em áreas da cidade onde vivenciam situações complexas. Exigir desempenho escolar sem considerar este contexto seria uma postura quase desumana — analisa o diretor do Coronel Massot, João Alberto Rodrigues.
O gestor da instituição de ensino conta que foram realizadas rodadas de diálogo, mediadas por professores e orientadores, e ações com suporte externo envolvendo estudantes de cursos de extensão em Psicologia da UFRGS.
Uma das maneiras encontradas para fazer com que os estudantes expressassem seus sentimentos foi a elaboração de um pequeno memorial, contendo fotos e breves recados de carinho e saudade, redigidos por colegas de João e Marina.
— Tornou-se uma situação muito delicada. Nas semanas após a tragédia, bastava uma simples fala ou a lembrança de alguma ocasião envolvendo os irmãos, e este tema sensível voltava a impactar o ambiente escolar — descreve João Alberto.
O painel, conforme o diretor, ficou exposto no saguão da escola por alguns dias e, posteriormente, foi guardado na tentativa de preservar os estudantes. Atualmente, segundo ele, resta a espera pela elucidação dos fatos e pelo preenchimento das lacunas decorrentes das perguntas não respondidas.
— Quanto mais o tempo passa, mais aumenta o receio de que poderemos jamais saber ao certo o que aconteceu, vem o medo de que sejam apenas mais dois nomes em uma lista de vítimas da violência que atinge nossa comunidade — lamenta João Alberto.
Polícia atua com reserva sobre informações
A apuração sobre os fatos relacionados às mortes de João Francisco Maciel dos Santos e Marina Maciel dos Santos é classificada pela Polícia Civil como delicada e prioritária, em um cenário no qual sucedem-se episódios violentos relacionados ao crime organizado na Região Metropolitana.
Entretanto, os efeitos das investigações ainda não podem ser percebidos. A polícia atua com extrema reserva sobre as informações. Ninguém foi preso até esta sexta-feira (26).
— Se revelarmos informações neste ponto em que estamos, o trabalho feito até aqui pode ser prejudicado — justifica a titular da 1ª Delegacia do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa, delegada Clarissa Demartini.
A delegada restringe-se a contar que quase uma dezena de depoimentos já integra o inquérito e outras oitivas são aguardadas. Um dos pontos em aberto, descreve Clarissa, é a dúvida sobre quantos criminosos estavam no veículo em movimento de onde partiram os tiros.
— Temos relatos dissonantes, alguns dizem que havia três, mas outros indicam que havia quatro homens no automóvel utilizado no ataque — relata.
Clarissa também diz que parte das perícias solicitadas já teve laudos emitidos, porém, não indica quais são os exames com resultados determinados e quais análises estão pendentes.
Uma das perícias envolve um Ecosport com características coincidentes com o que teria sido usado no ataque. O veículo seria examinado para busca de impressões digitais. O automóvel foi encontrado no dia 21 de abril, abandonado na Rua Vidal de Negreiros, bairro São José, zona leste da Capital.
Dúvida sobre alvo do ataque permanece
Questionada, a delegada informa que os três feridos no atentado são dois homens e uma mulher. Sustenta, contudo, que não pode dizer se uma destas três pessoas era o alvo do ataque que resultou na morte de João e Marina.
Os três tiveram ferimentos por arma de fogo e já foram liberados de procedimentos médicos. Suas identidades permanecem preservadas.
Outro ponto fundamental passa a ser posicionado com mais convicção pelas autoridades: a investigação afasta os irmãos de qualquer relação com a criminalidade.
— O que podemos anunciar neste momento é que todo o conjunto probatório distancia cada vez mais a hipótese de que estes adolescentes tivessem algum envolvimento com a criminalidade. Também preciso destacar que a polícia trabalha com afinco e dedicação para trazer as respostas esperadas pela sociedade — conclui Clarissa.