O esquema de telentrega de drogas desarticulado pela Polícia Civil nesta quarta-feira (30) era um dos mais organizados e complexos da Região Metropolitana, segundo o Departamento de Investigações do Narcotráfico (Denarc). Além de funcionar há 10 anos, movimentava anualmente R$ 4,8 milhões vendendo drogas somente para clientes pré-selecionados, todos de classe alta ou média-alta.
O grupo, que seria braço de uma facção e teria cerca de 50 integrantes, tinha escalas de serviços divulgadas semanalmente, tanto para atender os clientes, quanto para entregar os entorpecentes. Os investigados trabalhavam em quatro turnos diários de seis horas. Havia pelo menos quatro núcleos bem definidos e entre os quadros estavam profissionais qualificados, como um empresário da construção civil, uma advogada, uma contadora e até uma médica veterinária.
Um dos núcleos é o da lavagem de dinheiro. Segundo o titular da 3ª Delegacia do Denarc, delegado Gabriel Borges, este grupo movimentou pelo menos R$ 20 milhões desde 2017. O valor ainda vai aumentar com a avaliação de contas bancárias bloqueadas e bens apreendidos na operação desta quarta. Também houve investimentos na bolsa de valores e o uso de uma construtora inativa há cinco anos para lavar dinheiro.
A operação policial, com 300 agentes, ocorreu em 11 cidades gaúchas, a maioria na região metropolitana de Porto Alegre e no Litoral Norte, mas também em municípios de Santa Catarina e do Paraná. Foram cumpridos 43 mandados de prisão, 47 bloqueios de contas bancárias e apreensões judiciais de nove veículos e 25 imóveis. Houve ainda 188 quebras de sigilo fiscal, bancário e de ações na bolsa.
Drogas nas redes
Segundo Borges, o carro-chefe da organização criminosa era a venda de drogas. O serviço de telentrega já era oferecido no início da década passada, somente para clientes de bairros nobres de cidades da Região Metropolitana, mas foi intensificado com a pandemia e o uso das redes sociais. Um perfil com o nome de “Beijinho” ofertava o chamado “camarão”, a flor da maconha plantada no Uruguai e que possui maior poder alucinógeno. Do Peru vinha a cocaína que, conforme a pureza, tinha preços diferentes.
Nas negociações e ofertas pelas redes, os tipos de drogas eram representados por “emojis”. Por exemplo: trevo verde era a maconha uruguaia; corações azuis, verdes e vermelhos representavam determinados tipos de cocaína. Segundo a polícia, seis gramas da cocaína representada pelo coração verde custavam R$ 60, enquanto 11 gramas da maconha “camarão”, o trevo, valiam R$ 50.
O grupo fazia controle de estoque. Uma mensagem com imagem, trocada pelo WhatsApp entre dois integrantes do grupo, mostrou que, em um determinado momento da investigação policial, os suspeitos tinham armazenadas 228 quantidades de maconha e outras 240 de cocaína, dividida em três tipos.
O delegado Borges revela que os investigados tinham depósitos para guardar as drogas em quatro bairros da Capital: Bom Fim, Centro, Santana e Rio Branco. Para garantir o funcionamento do esquema, havia uma hierarquia e núcleos definidos, com profissionais qualificados em vários ramos de atividade.
Núcleos especializados
A quadrilha se dividia em quatro grandes seções e algumas delas tinham subseções. O núcleo básico era o de entregadores, o maior deles, com pelo menos 20 pessoas. As telentregas eram feitas com carros e motos e os condutores ganhavam comissões. Em um diálogo interceptado pela polícia, um entregador e a contadora do grupo discutem valores:
O outro núcleo era o de pessoas que atendiam os usuários nas redes sociais e pelo WhatsApp. Também eram responsáveis por acionar os entregadores e fazer as negociações com pagamentos via Pix e máquinas de cartões de crédito. O dinheiro em espécie só era usado em casos específicos. A parte da quadrilha responsável pelo atendimento tinha escalas de serviço semanais, sempre em quatro turnos diários de seis horas.
Além dos núcleos de atendimento e de lavagem de dinheiro, o esquema tinha uma seção que a polícia classifica de "apoio logístico", que era subdividida em setores jurídico, de contabilidade e de transporte.
Havia uma contadora — ouvida no áudio acima falando com um entregador — responsável por enviar o dinheiro do tráfico para os demais núcleos, além de coordenar os gerentes, que organizavam as escalas de serviço, e apoiar o setor jurídico, que era coordenado por uma advogada. A contadora teria cooptado, segundo a polícia, a própria filha, uma médica veterinária, para atuar com ela na organização criminosa. Todos são alvos dos mandados de prisão em cumprimento nesta quarta.
A contadora fazia relatórios diários das vendas, dos estoques e dos lucros. O Denarc localizou e apreendeu ainda várias mensagens que ela enviava para o jurídico e líderes da quadrilha, além de tabelas com lucros mensais e anual.
O quarto núcleo era o de líderes do esquema. Segundo a polícia, um casal comandava a operação, deixando pessoas de confiança atuando no tráfico de drogas enquanto lavava dinheiro em viagens pelo mundo.
Construtora inativa
O delegado Gabriel Borges, titular da 3ª Delegacia do Denarc, diz que um empresário do ramo da construção civil — que é um dos alvos da operação policial — era quem coordenava o núcleo de lavagem de dinheiro. A polícia apurou que ele esteve nos Estados Unidos, na semana passada, acompanhado de outro traficante.
— Ele é um empresário do ramo imobiliário e da construção civil. É apontado por lavar dinheiro para várias quadrilhas ligadas, inclusive a que é alvo da nossa investigação. Para se ter uma ideia, ele tinha uma construtora que está inativa há anos, mas que continua movimentando milhões de reais —ressalta Borges.
O Denarc comprovou que a construtora do investigado, inativa na Junta Comercial de Cachoeirinha desde 2017, foi a responsável por receber a maior parte do dinheiro arrecadado com o tráfico de drogas. O nome da empresa não foi divulgado porque a investigação prossegue.
De acordo com a apuração da polícia, o grupo também utilizava da modalidade de lavagem de dinheiro conhecida como “mescla”, por meio da qual recursos de atividades ilegais, como o tráfico de drogas, são injetados, por meio de notas frias, no faturamento de empresas. Depois, um percentual é retirado a cada mês e repassado aos criminosos. O responsável pelo empreendimento também fica com uma parte do lucro.
Algumas das companhias supostamente usadas no esquema foram alvo de mandados de busca nesta quarta-feira, como uma loja de roupas em Taquara, no Vale do Paranhana, e outra de produtos naturais, em Porto Alegre, pertencente à companheira do líder da telentrega.
Também houve cumprimento de ordens judiciais em um bar na Cidade Baixa, em Porto Alegre, em uma estética, em Taquara, no Vale do Paranhana, e, no Litoral Norte, em uma academia em Osório. Os investigados também seriam proprietários de mansões em condomínios fechados no litoral e em Taquara. Todas as residências também foram alvo de buscas, bem como os quatro depósitos que seriam utilizados pelos traficantes.
Os nomes dos presos não foram divulgados. Eles devem responder por tráfico de drogas, associação criminosa e lavagem de dinheiro.