Uma agência de turismo de Porto Alegre tem sido alvo de reclamações por supostamente cancelar de última hora viagens que haviam sido contratadas. Clientes da empresa Souza Viagens alegam que, além dos pacotes oferecidos não se concretizarem, o valor depositado não é totalmente ressarcido.
A Polícia Civil investiga, até o momento, pelo menos 10 casos, mas a reportagem apurou que 18 pessoas dizem ter sido lesadas. Vítimas ouvidas por GZH, em parceria com a RBS TV, relataram situações semelhantes. Pessoas que têm sua experiência bem sucedida recomendam o trabalho da agência para conhecidos. Os novos clientes acertam o pacote, fazem o pagamento antecipado e, dias antes do voo, são informados de alguma intercorrência, seja para adiar ou para cancelar a viagem. As pessoas afirmam cobrar o ressarcimento, mas acabam não sendo atendidas.
GZH apurou que a proprietária da agência é Lauren de Souza Alves. Ela também seria a responsável por negociar e acertar os pacotes — ouvida pela reportagem, ela nega ter cometido qualquer crime. Para atrair clientes, ela divulga a empresa principalmente pelo Instagram. O perfil da agência tem quase 14 mil seguidores na plataforma.
Foi pela rede social que a empresária Carolina Goulart conheceu a agência. Dona de uma loja de roupas femininas, ela mantém contato com influenciadoras digitais que divulgam sua empresa. Algumas delas começaram a recomendar a Souza Viagens em postagens.
— Fui perguntar para elas se era de confiança e me falaram que sim. Inclusive, elas já tinham viajado com essa empresa — conta Cláudia.
Em janeiro deste ano Carolina comprou dois pacotes, um para ela e outro para o irmão. O destino era Recife e a viagem estava prevista para março. Ela conta que o pacote, que incluía passagem e hospedagem em um resort por sete dias, custou R$ 12.675 para quatro adultos e uma criança.
Nas vésperas da viagem, ela percebeu que ainda não havia recebido os códigos das reservas das passagens. Ela procurou a agente, que teria dito que mandaria, mas que naquele momento estava enfrentando problemas na gestação.
— Comecei a cobrar dela (as passagens). Começou a dizer que já ia resolver, que estava no hospital passando por problemas na gestação e deu várias desculpas dizendo que ia me mandar, mas não me mandou.
A empresária conta que, faltando um dia para a viagem, foi procurada por outra mulher, que dizia ser advogada de Lauren. Na mensagem, avisou que a viagem havia sido cancelada:
— Ela disse que deu um problema com as passagens e que não ia sair, mas que a Lauren era uma pessoa idônea e iria ressarcir tudo.
Carolina chegou a firmar um contrato, no qual a dona da agência prometeu devolver o valor pago em até 10 dias, o que não aconteceu. O prejuízo foi de R$ 5.430, que ela havia depositado por Pix. O restante do valor seria pago em três parcelas pelo cartão de crédito.
“Liguei pra lá, não tinha nenhuma reserva em meu nome”
Uma vítima, que preferiu não se identificar, resolveu comprar pacotes para Maceió após sua irmã ter ido com a empresa até um parque de diversões em Santa Catarina, onde ficou um final de semana. A viagem para a capital alagoana estava prevista para 8 de outubro.
Faltando uma semana para embarcar, a vítima conta que entrou em contato com Lauren de Souza Alves. A dona da agência, contudo, disse ter havido um problema na documentação de um dos membros da família e sugeriu que o voo fosse adiado para o dia 10. A cliente aceitou alterar a data mas, depois, disse não ter tido mais retorno. Desconfiada, resolveu ligar para o hotel em que supostamente se hospedaria.
Liguei (para o hotel) para saber se tinha uma reserva no meu nome. E eles não conheciam nenhuma Lauren e não tinha nenhum tipo de reserva nem para mim nem para o meu marido.
CLIENTE DA AGÊNCIA
— Liguei para saber se tinha uma reserva no meu nome. E eles não conheciam nenhuma Lauren e não tinha nenhum tipo de reserva nem para mim nem para o meu marido — conta a cliente, que afirma ter perdido R$ 7.425.
Ao não receberem retorno da agência, outras pessoas relatam que entraram em contato com o hotel e a companhia aérea para confirmar a viagem. Assim, descobriam que não havia reservas em seus nomes nem da Souza Viagens.
Segundo os relatos, a dona da agência afirmava que faria todos os trâmites, incluindo a compra das passagens aéreas, da hospedagem e do transfer que levaria os clientes do aeroporto para o hotel.
Em um dos casos, uma cliente conta que tentou providenciar o transfer entre o hotel e o aeroporto, sem sucesso. A vítima, que também preferiu não ser identificada, afirma que tinha uma viagem programada para um resort em Maragogi, em Alagoas, no dia 2 de outubro. Nas vésperas do embarque, ela diz que passou a questionar a falta de informações. Foi quando Lauren teria dito que a empresa contratada para fazer o transfer não trabalharia no final de semana das eleições, cujo primeiro turno foi disputado no dia seguinte ao da viagem.
A cliente afirma que procurou outra empresa de transfer que já conhecia e que chegou a confirmar a disponibilidade:
— Comecei a pressionar: “Eu preciso fechar o transfer, preciso das passagens, preciso da reserva do hotel”. Daí foi chegando mais perto e ela disse que a gente não poderia viajar dia 2 em função das eleições.
A vítima afirma que perdeu R$ 8,4 mil reais com o ocorrido e que não conseguiu recuperar o dinheiro.
“Não podia mais viajar porque o Carnaval foi adiado”
A empresa também usaria contextos gerados pela pandemia de covid-19 como justificativa para os cancelamentos, segundo os relatos. A empresária Francielle Ramos, 28 anos, afirma que comprou em dezembro pacote para passar o Carnaval no Rio de Janeiro, em fevereiro. Na época, a prefeitura do Rio anunciou que os desfiles e as festas seriam celebrados em abril, em razão do aumento de casos no início do ano. Ela diz que Lauren alterou a data da viagem, sob argumento de que o pacote promocional era específico para as festas de Carnaval.
O que ela me falou foi que o Carnaval do Rio de Janeiro tinha sido adiado e assim a passagem foi cancelada.
FRANCIELLE RAMOS
Vítima da agência
— O que ela me falou foi que o Carnaval do Rio de Janeiro tinha sido adiado e assim a passagem foi cancelada. Perguntou se eu poderia viajar em abril. Eu falei para ela que não poderia, pois voltaria a trabalhar e meu filho voltava às aulas. Não teria como — conta Francielle.
A empresária pediu o ressarcimento dos R$ 3 mil que haviam sido pagos. Lauren prometeu devolver até o dia em que estaria programado o voo. Mas, passados oito meses, a vítima conta o dinheiro não foi depositado.
Pagamentos direcionados para igreja
Após realizar o pagamento no cartão de crédito, clientes estranharam que o dinheiro não foi para a conta da agência, mas para uma loja de roupas e uma igreja chamada Ministério do Rio Espírito, com sede no bairro Mathias Velho, em Canoas.
A reportagem apurou que o dono da igreja é irmão de Lauren. Laion Souza seria pastor sênior do Ministério do Rio Espírito, aberto no ano passado. Procurado, ele não quis se manifestar. Mas divulgou uma nota confirmando que é parente de Lauren e que não possui nenhuma relação com a Souza Viagens.
O endereço que consta como sendo da empresa nos contratos fornecidos aos clientes aponta para um prédio no bairro Floresta, em Porto Alegre. GZH esteve no local e constatou que trata-se de um edifício residencial.
Um trabalhador do local, que diz atuar lá há mais de 20 anos, confirmou que Lauren morou no apartamento registrado nos documentos, mas que deixou o condomínio há cerca de cinco anos.
— Já vieram aqui procurar por ela outras vezes — conta.
Alerta para valores abaixo do mercado
Os pacotes oferecidos pela Souza Viagens costumam chamar a atenção dos clientes pelo baixo custo. Uma pesquisa em resorts citados pelos clientes mostram que as ofertas fogem do padrão.
Uma estadia por sete dias para dois adultos e uma criança no site de um resort em Maceió, por exemplo, está R$ 10,5 mil, sem contar a passagem. Lauren vendeu a uma cliente um pacote, no mesmo período e nas mesmas condições, por cerca de R$ 7 mil, incluindo os voos de ida e volta.
O vice-presidente da Associação Brasileira de Agências de Viagem no Rio Grande do Sul (Abav-RS), João Augusto Machado, afirma que preços como esses devem ser vistos com desconfiança.
— É importante que as pessoas consultem e não acreditem em milagres. No mercado do turismo os preços são todos iguais ou muito semelhantes. Se alguém tem um valor muito mais barato, desconfie, pesquise a fundo sobre a agência — alerta Machado.
Dados da Secretaria Nacional do Consumidor apontam para um aumento de reclamações por vendas enganosas de viagens. Em 2020 o órgão recebeu 2.681 queixas. Até setembro deste ano, foram cerca de 8,5 mil.
Uma das formas de pesquisar a reputação de uma empresa é por meio de sites de reclamação. Em um dos mais populares do Brasil, a agência Souza Viagens apresenta sete reclamações. Todas elas apontam relatos de que as viagens contratadas não se concretizaram.
Investigações
Até o fechamento desta reportagem, a Polícia Civil já havia reunido pelo menos 10 boletins de ocorrência de pessoas que se dizem lesadas pela agência. Um grupo no Whatsapp formado por pessoas que afirmam ter sido enganadas já possui 15 participantes e pelo menos outras três solicitando para fazer parte. Para entrar, os organizadores exigem a apresentação do boletim de ocorrência.
O delegado Arthur Raldi, que comandou o início das investigações, afirma que, nesse momento, a apuração se encontra em estágio inicial. O objetivo agora, segundo ele, é coletar o maior número de depoimentos. Ele diz que, com base nos primeiros relatos, já é possível identificar um padrão no tipo de conduta:
— Pelo que já ouvimos até agora, parecem ser as mesmas condutas e teriam outras pessoas que passaram por essa mesma situação. Essas pessoas vão sendo identificadas e solicitadas para que compareçam na delegacia para que a gente junte suas versões. Isso irá servir de lastro para darmos andamento a investigação.
A polícia pretende ouvir mais vítimas antes que Lauren seja chamada a depor. O titular da Delegacia de Repressão aos Crimes Cibernéticos, André Anicet, responsável pela investigação atualmente, afirma que, se os relatos se confirmarem, pode se configurar um caso de estelionato.
— Por enquanto, em tese, a gente tem um estelionato. A pessoa foi enganada no sentido de comprar aquele pacote ainda que eventualmente com valores baixos ou não. E essa investigada acabou não repassando essa mercadoria adquirida. Então, em tese, tem um crime de estelionato.
Contraponto
Procurada por GZH, Lauren de Souza Alves negou aplicar qualquer tipo de golpe, mas reconheceu ter tido problemas no pagamento de alguns pacotes. No entanto, garantiu que tem trabalhado para devolver o dinheiro a todos os clientes:
— Todos estão sendo pagos. Os que foram em máquinas de cartões estão sendo estornados, e os que eu não consegui cancelar, estou encaminhando aos clientes uma carta de cancelamento para que eles consigam junto à operadora de cartão fazer o cancelamento.
Para aqueles que pagaram por pix, Lauren diz que tem negociado com todos que a procuram cobrando o ressarcimento.
Todos estão sendo pagos. Os que foram em máquinas de cartões estão sendo estornados, e os que eu não consegui cancelar, estou encaminhando aos clientes uma carta de cancelamento para que eles consigam junto à operadora de cartão fazer o cancelamento.
LAUREN DE SOUZA ALVES
Dona da agência
Segundo ela, os impasses surgiram pois a agência operacionalizou muitas viagens por meio de sites de milhas, que acabam oferecendo valores mais baixos do que o normal. Com isso, todos os cancelamentos teriam sido causados por falhas desses serviços.
Uma das plataformas que ela afirma que teria utilizado era a 123 Milhas. Procurada, a empresa (123 Milhas) disse que só atende pessoas físicas, e que não faz o cancelamento de voos, passagens e hospedagens sem a solicitação do cliente pelos canais oficiais de contato, exceto casos em que a companhia aérea, hospedagem ou parceiro responsável precise, cancelar o produto pela impossibilidade de operacionalização do serviço.
Segundo Lauren, a Souza Viagens existe há um ano e já forneceu diversos pacotes sem nenhuma intercorrência. Ela salienta ainda que sempre firma contratos de prestação de serviços e se diz surpresa ao estar sendo investigada.
— Para mim é uma surpresa haver inquérito policial. Pois todas as minhas vendas sempre tiveram contrato de prestação de serviço. Assim como qualquer outra empresa de turismo nós temos reclamações. Mas também temos elogios, graças a Deus. Muitos clientes já nos procuraram para fazer a segunda, terceira ou até quarta viagem conosco — defende.
Em relação às compras ligadas à igreja do irmão, Lauren argumenta que precisou utilizar a máquina de cartão emprestada durante um período que esteve sem conta bancária. Já quando questionada sobre o endereço no CNPJ, a dona da Souza Viagens que está cadastrada como MEI (Microempreendedor individual), que permite o registro do endereço pessoal.
Ela confirma que não mora mais no espaço cadastrado, e que aproveitou o mesmo documento de uma antiga empresa para registrar a agência. Além disso, garantiu estar em tratativas para alterar o endereço.
Lauren, por fim, diz que a Souza Viagens está sendo vendida e passa por um processo de transição. Em razão dos problemas no pagamento, ela alega ter sido alvo de ameaças de morte e já registrou boletins de ocorrência na polícia.