Especialista em Relações Internacionais, o professor Ricardo Seitenfus é um dos gaúchos que mais conhecem o tema Haiti. Foi representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) em território haitiano de 2009 a 2011. Pois é sem qualquer espanto que ele viu a reportagem de GZH publicada na segunda-feira (10), mostrando que cerca de 300 haitianos radicados em Porto Alegre e região pagaram para trazer familiares desde seu país e ficaram sem ver os parentes e sem o dinheiro aplicado no empreendimento.
— Os haitianos, ao longo dos últimos 30 anos, viveram dramas verdadeiros, mas que se prestam a muita manipulação. Sempre, nesses processos, há muita falcatrua, muitos oportunistas, muitas gangues metidas. O que aconteceu na região metropolitana de Porto Alegre não é exceção. Sempre aconteceu. São estrangeiros que ficam na dependência de pessoas de boa vontade. Se elas não aparecem, caem nas mãos de criminosos. É uma questão de polícia. Complicada, porque se forem imigrantes irregulares, não têm condições de serem atendidos pelo sistema judiciário — sintetiza Seitenfus, que tem três livros escritos sobre aquele país caribenho.
No caso de Porto Alegre, os cerca de 300 imigrantes pagaram R$ 11 mil cada para uma associação criada por outros haitianos, que prometia trazer os familiares deles ao Brasil. Um primeiro voo chegou a se concretizar, mas depois não ocorreram outros. E o dinheiro não foi devolvido.
Os organizadores alegam uma série de contratempos que inviabilizaram a empreitada: a instabilidade gerada pelo assassinato do presidente do Haiti em julho de 2021 (Jovenel Möise, morto por mercenários), o cancelamento sucessivo de voos por parte das companhias aéreas, gastos com vistos extras para países vizinhos ao Haiti (como a República Dominicana) e, por último, decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que enrijeceu a exigência de vistos para imigrantes.
Seitenfus admite que a política de vistos se tornou muito mais dura, de uns meses para cá. Um movimento oposto ao de 10 anos atrás, quando o Brasil adotou posição de vanguarda nessa acolhida a imigrantes, sobretudo após o terremoto de 2010 que arrasou o Haiti (um país já pobre ficou miserável do dia para a noite).
— Pela política adotada pelo Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) a partir de 2012, qualquer haitiano que tivesse folha corrida policial sem problemas e US$ 200 podia entrar em território brasileiro, receber documentação e se beneficiar de apoio social, do SUS e fixar residência — descreve Seitenfus.
O especialista ressalta que não era exigido dos haitianos contrato de trabalho nem atestado de saúde, mesmo com cólera grassando no Haiti. Ele classifica essa política como extremamente liberal/permissiva, com um duplo objetivo: favorecer os haitianos e lutar contra a migração clandestina, que começava a tomar vulto na América do Sul.
A situação começou a mudar ante as filas enormes em frente à embaixada brasileira em Porto Príncipe. Aí, relata Seitenfus, o Itamaraty terceirizou a missão. Fez acordo com a Organização Mundial de Imigração (OMI) para que essa entidade analisasse os pedidos de visto, em nome do Brasil. Fizesse a triagem.
O fluxo de migrantes continuou. Conforme o especialista, vieram para o Brasil em torno de 80 mil haitianos desde o início da década passada. Vários deles já deixaram o território brasileiro, quando os empregos começaram a escassear. E tentaram migrar para os Estados Unidos, não conseguindo e ficando pela América Central. Inclusive crianças que nasceram em território brasileiro, numa situação já denunciada como "inaceitável" por organizações de defesa dos direitos humanos, ressalta Seitenfus.
Agora o STJ tomou uma decisão: exigir visto pelo Itamaraty (algo que antes era feito pela OMI). Seitenfus não vê muita diferença, mas sabe que o corpo diplomático em serviço no Haiti é muito reduzido, o que trará dificuldade na análise dos procedimentos migratórios.
A respeito da situação de quem pagou para trazer familiares a Porto Alegre e não teve o serviço prestado, Seitenfus considera que "é caso de polícia". O especialista recomenda olhar bem ONGs que afirmam ajudar os imigrantes.
— No Haiti, logo após o terremoto, existiam 284 ONGs. Logo depois se transformaram em mais de 10 mil. No meio disso tudo, muita falcatrua. Havia gente que recolhia dinheiro de doadores internacionais, tirava fotos de supostas ajudas e na realidade a verba enviada de forma internacional nunca chegou ao povo haitiano — critica.
Seitenfus também é cético quanto à possibilidade de que entidades do terceiro setor ou o governo federal façam voos humanitários para tentar remediar a situação dos haitianos que perderam fortunas em Porto Alegre tentando trazer seus familiares. Ele considera difícil fazer algo de forma emergencial porque, afinal, se trata de aplicar dinheiro governamental, pertencente à população, numa ajuda a estrangeiros. O especialista considera especialmente delicado fazer isso em plena campanha eleitoral e mesmo depois, por parte do próximo governante, que terá outras urgências.
GZH pediu ao Itamaraty informações sobre a situação dos imigrantes lesados em Porto Alegre e números sobre a presença haitiana no Brasil. Até o fechamento desta reportagem, o ministério das Relações Exteriores não havia se pronunciado.