Blens Cleriscar, 20 anos, está sentado no mesmo lugar onde se refugiou dos bandidos na tarde do dia 23 de fevereiro. Trata-se de um quarto com duas camas em um casebre de madeira, sem número, em uma ruela de chão batido, sem nome. Três pessoas haitianas dividiam os 16 metros quadrados da casa localizada na ocupação Progresso, em Porto Alegre: Blens, sua mãe, Guerline, e o tio, Edjeams.
É dele, Edjeams, que o jovem fala, misturando francês, créole e o pouco de português que, em um ano e meio na Capital, aprendeu com amigos brasileiros em uma igreja evangélica localizada na Avenida Assis Brasil:
– Ele ficava em casa sem fazer nada. Todo dia procurava trabalho, mas não achava. Um dia, viu que uma igreja estava dando trabalho. Então, todo dia ia lá. No dia em que morreu, ele tinha ido à igreja de manhã, ia voltar à tarde. Estava no quintal, esperando a comida que minha mãe fazia. Eu estava no quarto, olhando televisão. Tinha trancado a porta por dentro. Foi quando ouvi: PÓ! PÓ! PÓ!
Os estampidos secos dos tiros de fuzil não calaram a voz de Edjeams, que gritava "Haitiano! Haitiano!" na esperança de que a identificação soasse como salvo-contudo diante dos traficantes que haviam invadido a Progresso.
– Quando saí do quarto – recorda Blens – ele já estava morto.
Edjeams era mais do que um tio para Blens. Era seu confidente, parceiro de igreja e dos jogos do futebol europeu a que assistiam pelo aparelho de TV de 14 polegadas, conectado a um fio que faz as vezes de antena.
– Aqui nesse quarto, eu tenho todas as recordações dele. A gente via futebol, brigava para ver quem ia lavar a louça, falávamos de como Jesus é bom – conta Blens.
Sobre a TV, repousa uma Bíblia sem capa, expondo o livro do Gênesis. Na parede, um cartaz reproduz o versículo 15 do capítulo 4 da segunda carta de Paulo aos Coríntios: "Porque todas as coisas existem por amor de vós".
– No Haiti, não tem essa violência – reflete o rapaz.
Edjeams foi morto por engano. Não tinha antecedentes criminais. Era o homem errado, no lugar errado, na hora errada. Os traficantes da facção Bala na Cara que desembarcaram na Progresso procuravam três inimigos.
Seu assassinato é o capítulo mais triste do desamparo de milhares de refugiados haitianos no Rio Grande do Sul. Poucos conseguiram emprego, a maioria em postos de combustíveis ou na construção civil. Grande parte vive de bicos, como Edjeams, que trabalhou durante três meses em uma obra em Carlos Barbosa, na Serra, mas logo foi seduzido pelo relato de melhores condições de vida dos imigrantes no Paraná. Pediu demissão e estava a poucos dias de viajar para Curitiba naquele 23 de fevereiro.
Os criminosos atiraram primeiro em um vizinho de Edjeams, ferindo no braço o homem, que conseguiu sobreviver. O haitiano estava ao lado do alvo inicial. Acabou executado, vítima da lei do tráfico – alguém tinha de morrer.
Desde o assassinato de Edjeams, sua irmã e seu sobrinho colocaram uma corrente no portão de madeira do casebre e se mudaram para a casa de vizinhos.
Voltar é um caminho difícil, permeado por medo e por lembranças. Na sala, onde Edjeams, já cambaleante, chegou a entrar após ser alvo dos disparos no quintal, a geladeira e um armário apresentam furos provocados pelos projéteis.
O haitiano tombou ali, a três passos do quarto onde estava Blens.
No celular de Edjeams, herdado por Blens, ficaram fotografias que ele tirou no Brasil e mensagens trocadas pelo WhatsApp com a namorada e a filha que um dia ele pretendia trazer do Haiti.
O HESITANTE IMIGRANTE
DE 2M30CM DE ALTURA
Os últimos 310 dias de vida de Edjeams Joseph, morto aos 27 anos, começaram em uma viagem de ônibus entre Dessalines, cidade de 127 mil habitantes no norte do Haiti, e a capital Porto Príncipe. Naquele mesmo 20 de abril de 2016, o professor embarcaria de avião em busca do eldorado brasileiro.
É seu primeiro voo. Edjeams tenta acomodar seus 2m30cm na poltrona apertada do Boeing 737 da Copa Airlines, enquanto a aeronave cruza a fronteira visual entre a terra árida do país natal e o mar do Caribe. Essa é sempre uma imagem impressionante pra quem decola do Aeroporto Toussaint Louverture, o contraste do cinza claro com o azul-turquesa. Edjeams observa lá embaixo os casebres construídos em adobe, riachos secos e as montanhas de Pétion-Ville. A 135 quilômetros de Porto Príncipe, detrás dos cerros, seguindo pela Rota Nacional número 1, fica Dessalines, onde o haitiano despediu-se, cinco horas antes, da namorada, Anaméne Batiste, e da filha, Dania-Love, 10 anos.
São 17h38min. Dentro de pouco mais de duas horas e meia, ele estará no Aeroporto da Cidade do Panamá, um dos mais movimentados da América Latina e paraíso dos freeshops. Faltarão ainda 5.330 quilômetros para Porto Alegre, cidade que escolheu para morar por conta das notícias que recebia da irmã sobre oportunidades de trabalho, em vez de optar por São Paulo ou Curitiba, para onde a maioria de seus vizinhos migrou.
Seguir a rota de milhares de compatriotas não era uma ideia concreta para Edjeams, que muitas vezes titubeou antes de iniciar aquela viagem. Ele passou praticamente incólume pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010, que em 33 segundos matou mais de 300 mil pessoas em Porto Príncipe e gerou uma crise humanitária sem precedentes no país mais pobre das Américas. O fenômeno da natureza atingiu de forma bem menos severa Dessalines, cidade batizada com o nome do herói da revolução dos escravos haitianos contra as tropas de Napoleão Bonaparte e primeiro presidente do Haiti livre Jean-Jacques Dessalines. Para Edjeams, tudo o que houve foi um trepidar rápido de pernas e alguns livros e cadernos revirados na sala de aula do Colégio François. Professor de matemática formado pela Institution Presbytérale Claire Lumière, o filho de Jean Jules Joseph e Elizine Saint Jean levava uma vida simples. Tinha o básico para comer e manter Dania-Love na escola. Relutava em deixar a filha e a namorada em troca da aventura a qual haviam se jogado tantos amigos e a própria irmã, Guerline.
Em mensagens pelo WhatsApp, Guerline dizia que a qualidade de vida em Porto Alegre era melhor do que no Haiti. Edjeams fez o passaporte em 12 de agosto de 2015 e, dois meses depois, obteve o visto brasileiro na embaixada em Porto Príncipe. Adiou os planos de viajar ao Brasil por quase um ano (o documento brasileiro não estabelecia um prazo). A palavra de um tio foi fundamental:
– Você pode dar uma vida melhor a Dania e Anaméne e quem sabe levá-las pra lá um dia.
NA PROGRESSO, VIDA
LONGE DA SONHADA
A chegada de Edjeams era esperada havia meses no casebre de madeira da Ocupação Progresso. Como a maioria dos cerca de 400 haitianos que moram naquela parte do bairro Sarandi, próximos à Avenida Francisco Silveira Bitencourt, Guerline Joseph adquirira o lote de um brasileiro. Pagou cerca de R$ 1,2 mil. Pensava, como todos os imigrantes que chegavam, estar comprando um terreno. Mas a área é invadida, e as famílias que ali estão foram enganadas. Hoje, é uma das 14 Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis) aprovadas pela prefeitura. A lei ajudou a evitar que as famílias fossem despejadas em 2015, mas o assunto ainda não está resolvido pelo poder público.
A Progresso tem vielas com carcaças de carros abandonados, cães sarnentos à espreita, a maioria das moradias sem água potável e com instalações elétricas irregulares. Mulheres carregam baldes na cabeça por longas distâncias para lavar roupa, enquanto homens, sem emprego, estão sentados em frente às casas.
Guerline chegou com o marido, Jackson, mas ele, decepcionado ao não encontrar trabalho, voltou para o Haiti, deixando para trás a mulher grávida. Edjeams lhe daria segurança. A vinda do filho, Blens, pouco depois, completaria a família que ela começava a reconstruir em Porto Alegre.
Os primeiros meses na capital gaúcha foram difíceis para Edjeams. Sem amigos brasileiros, restringia o diálogo em créole e francês aos vizinhos e a Blens, que falava melhor o português graças às aulas de violão. Nas horas vagas, os dois homens da casa assistiam ao futebol europeu e às novelas brasileiras. Oravam bastante. E Edjeams saía bastante também.
– Ele gostava de caminhar na rua para conseguir um trabalho. Não gostava de ficar em casa sem fazer nada. Todos os dias, levantava, tomava banho e saía para procurar trabalho. Depois voltava, comia e saía de novo – conta o sobrinho.
Em uma dessas saídas, depois de quatro meses no Brasil, Edjeams soube por um vizinho que um empreiteiro de Alvorada empregava haitianos, com carteira assinada e tudo. Procurou o homem em uma obra na Rua Dona Olinda, bairro Floresta. Adriano José Machado Mendes, proprietário da Empreiteira Mendes, lembra de quando chegou aquele homem alto.
– Ele não era de muito papo, mas era forte. Baixava a cabeça e trabalhava – conta Mendes, que chegou a empregar 20 haitianos por quatro anos. Hoje não tem nenhum.
Edjeams foi contratado em 2 de agosto de 2016 por um salário de R$ 1.060, além de 20% de insalubridade. O professor de matemática trabalharia como ajudante de pedreiro. Virava cimento e carregava tijolos na obra da Dona Olinda, onde ficou apenas três dias. Logo, com outros colegas, foi deslocado para uma construção maior, do prédio do Hotel Íbis, em Carlos Barbosa, na Serra. Lá, dividia o quarto de uma casa alugada pela empreiteira com Luis Carlos Menezes Coutinho, 36 anos. Foi, provavelmente, a melhor residência que teve no Brasil. A uma quadra da obra, a edificação abrigava sete haitianos e cinco brasileiros. Uma mulher haitiana foi contratada exclusivamente para cozinhar para os compatriotas. Edjeams não comia carne vermelha. Preferia arroz e feijão misturados. De vez em quando, salsicha. Tudo com muita pimenta.
– O negão era gente fina. Bom colega e ser humano – recorda Coutinho, o colega de quarto.
O haitiano falava pouco, mas se esforçava com o idioma.
– Se tivesse de dar uma nota para o que ele falava de português, de um a 10, ele falava cinco – diz Mendes, o chefe.
Nas conversas, era frequente o plano de voltar para o Haiti ou trazer a família. O trabalho era duro. Edjeams acordava às 6h, subia a lomba e trabalhava das 7h30min às 17h15min. Era pontual. Só estranhava o frio. Acostumado aos 40ºC sob o sol do Caribe, chegou a enfrentar temperaturas abaixo de 10°C em Carlos Barbosa. Mesmo em dias quentes para os padrões gaúchos, protegia-se usando blusão ou camisas de mangas compridas. A partir das 18h, ficava grudado ao WhatsApp com Anaméne até as 22h, quando dormia.
Em outubro, as mensagens se tornaram mais intensas. Foi quando o furacão Matthew passou pelo Haiti com ventos de 230 km/h. Mil pessoas morreram. Dessalines, desta vez, não escapou.
– Ele estava preocupado – revela outro colega da obra.
Do salário do mês, Edjeams enviava cerca de R$ 500 para a família no Haiti. No dia 28 de dezembro, pediu demissão da obra no Íbis. Ficou sabendo das oportunidades que haitianos tinham em Curitiba.
O PROFESSOR RETOMA
AS ESPERANÇAS
Na tarde de 22 de fevereiro, Edjeams está eufórico. Descobriu que na escola municipal Décio Martins Costa, perto da Progresso, há 15 estudantes haitianos. O sonho de voltar à sala de aula ressurge.
Ilisiane Vida Alves, 37 anos, contadora e líder comunitária da ocupação, faz um currículo em português para Edjeams. Ao ver os filhos menores de Ilisiane – Igor, 10 anos, e Iago, oito –, o haitiano lembrou de Dania-Love.
– A possibilidade de dar aulas deixou ele feliz – conta Ilisiane.
Para dar aula no Brasil, é preciso mais do que um currículo em português. Os documentos, entre eles o diploma de licenciatura da Institution Presbytérale Claire Lumière, precisam ser traduzidos por um profissional juramentado. Edjeams não tem o dinheiro suficiente.
Ilisiane oferece:
– Eu posso te ajudar a fazer a documentação para conseguir trabalho. Daí, tu junta dinheiro para fazer a tradução.
Em retribuição, Edjeams ensinava algumas palavras em francês. S'il vous plait. Bonjour.
Naquela quarta-feira, Ilisiane completou o currículo. Ele ainda ajudou a amiga no socorro a um menino do bairro que havia sofrido um acidente de bicicleta, na frente de casa. No dia seguinte, às 17h, ela recebeu o telefonema. Chegou em menos de 15 minutos e viu o corpo do haitiano estirado no chão do casebre da Progresso:
– Um cara com saúde, cheio de vida, de planos. Foi chocante.
De seis a oito homens – três a quatro em cada um dos carros, um deles identificado pela polícia como um Clio – irromperam na ocupação Progresso na tarde da quinta-feira, 23 de fevereiro, véspera do Carnaval.
– É os Bala! É os Bala! – gritavam.
Era por volta de 17h. Portando armas longas e de grosso calibre, os criminosos chegaram para tomar o controle do ponto de drogas do grupo rival. Buscavam também três desafetos. Disparavam em todas as direções.
O bando seguiu pelo beco onde Edjeams morava. Sem trabalho desde que deixara a obra em Carlos Barbosa, o haitiano havia convertido um templo evangélico na Avenida Assis Brasil em sua esperança. Passava horas ali. No dia em que iria morrer, acordou cedo e foi para a igreja. Passou manhã e parte da tarde ajudando nos afazeres do templo. Às 16h, foi almoçar em casa. A ideia era retornar à igreja. Enquanto ele esperava que Guerline esquentasse a panela de arroz e feijão em um dos dois fogões velhos, os traficantes entraram na Progresso, pondo pra correr crianças, que voltavam da escola, e mulheres, que lavavam roupas. No beco, desceram do carro e transpuseram a cerca de madeira da família haitiana. Deram de cara com Edjeams, que ainda tentou se identificar:
– Haitiano! Haitiano!
PÓ! PÓ! PÓ!
Edjeams não era o alvo da caravana do terror. Conforme o delegado Cassiano Cabral, da 3ª Delegacia de Homicídio e Proteção à Pessoa, um outro homem, de 42 anos, acusado de assassinato, estava na calçada em frente de casa no mesmo beco – e acabou encaminhado para o hospital com ferimento no braço. O haitiano morreu na hora: "Hemorragia interna toráxica, ferimento cardíaco, disparo de projétil de arma de fogo. Tipo de morte: violenta", registra o atestado de óbito. Seus matadores continuam soltos.
Às 8h de 8 de março, quarta-feira, Guerline e Blens dão início a uma peregrinação pela Capital para liberar o corpo de Edjeams. Primeiro, foram a um cartório na Zona Norte. Após três horas de trâmites burocráticos, pegaram dois ônibus para irem a um bairro desconhecido por eles: o Santana, onde ficam a Central de Atendimento Funerário (CAF) e, a uma quadra dali, o Departamento Médico Legal (DML).
A promessa é de que o corpo será liberado até as 13h30min. Grávida de cinco meses de um menino ainda sem nome, Guerline está cansada. Para enterrar o irmão, vai precisar faltar ao exame pré-natal marcado para esta tarde. Amiga e líder comunitária, Ilisiane se encarrega da papelada, conversa com um e outro funcionário do cartório e percebe que uma informação do atestado de óbito está errada. A família terá de voltar ao cartório da Zona Norte. Ilisiane calcula a distância entre o DML e o cemitério da Santa Casa, onde Edjeams será enterrado no Campo Santo, área reservada a pessoas cujas famílias não podem pagar pelo sepultamento. São sete longas quadras até lá, com uma lomba na Avenida Professor Oscar Pereira. Guerline não irá aguentar, conclui. E o dinheiro está acabando.
Enquanto espera, Blens retira um papel com o endereço de uma escola de ensino de jovens e adultos no centro de Porto Alegre.
– Conhece? – dirige-se a mim. – Preciso estar estudando para poder buscar trabalho .
O jovem mostra o celular de Edjeams. Em uma das fotos, o tio aparece orgulhoso, vestindo terno bem cortado. Em outra, de camiseta amarela, brinca com sinais típicos de um rapper. Vestia essa camisa quando os traficantes o mataram.
Resolvida a burocracia, mais espera, agora em frente ao DML, na Avenida Ipiranga. Guerline está de cócoras, recostada a uma árvore. O calor reforça o cheiro podre vindo do Arroio Dilúvio, que mãe e filho desconheciam. Em Porto Príncipe, há centenas de córregos fétidos como esse. A maioria, cheios de lixo. Alguns secos, transformados em estradas empoeiradas.
– Familiar do haitiano! – grita a voz de uma vigilante do DML.
O professor de matemática Edjeams há muito deixou de ser conhecido pela profissão. Na obra, em Carlos Barbosa, na igreja da Assis Brasil e agora, no necrotério, é apenas "o haitiano". Guerline levanta-se, mas, ao vê-la grávida, a vigilante faz sinal com a cabeça:
– Ela não pode entrar.
Guerline é privada de ver o rosto de Edjeams pela última vez. A dura missão de reconhecer o corpo do tio caberá a Blens. Não leva mais do que 20 segundos.
BLENS GRAVA AS ÚLTIMAS
IMAGENS DO TIO NA CAPITAL
A cruz de ferro número 1.212 é encravada na terra do Campo Santo do Cemitério da Santa Casa às 15h30min de 8 de março. O caixão de madeira simples, cedido pela CAF, precisou ser confeccionado sob medida. Tem 2m40cm. A altura do morto virou assunto entre os agentes funerários e coveiros.
Com a naturalidade de quem cumpre o ofício todos os dias, mas espantados com o tamanho de Edjeams, os coveiros abrem uma cova maior do que a habitual. Há uma preocupação: não alargar o espaço reservado ao haitiano, para não invadir covas vizinhas.
O corpo de Edjeams pode ficar no Campo Santo por três anos. Depois disso, cabe à família pedir transferência dos restos mortais. Se ninguém reivindicar, irão para um ossuário e serão incinerados.
O caixão chega junto com a família ao Campo Santo. É retirado do carro fúnebre e depositado em uma capela de cimento sem pintura. Guerline, pela primeira vez desde o assassinato, 13 dias antes, está perto do irmão. Desespera-se:
– Jesus! Jesus!
Seus gritos misturam-se a uma espécie de canto, uma reza incompreensível, um murmúrio. Pelas regras, a família tem apenas 30 minutos para se despedir do morto. Os três são alertados de que faltam somente cinco minutos.
– Daqui a pouco, teremos de levá-lo – diz um funcionário.
Pontualmente, os coveiros depositam o caixão sobre a maca de transporte. Blens começa a gravar um vídeo pelo celular. Vai mandar as imagens para os pais de Edjeams, para sua namorada e para a filha no Haiti. Serão os últimos registros de Edjeams em Porto Alegre.
Guerline levanta-se do banco ao lado da capela, seu refúgio. Espia à distancia o caixão pela última vez. Edjeams é depositado no Campo Santo.
Antes de mãe e filho deixarem o cemitério, fogos de artifício explodem no céu. Guerline assusta-se:
– É tiro?
– Não. Desta vez, não é – tranquiliza Ilisiane.
Guerline já havia tomado uma decisão: desistiu de Porto Alegre. Desistiu do Brasil. No dia 28 de março, na 22ª semana de gestação de seu filho, embarcou de volta ao Haiti. Blens ficou. Está convencido de que a vida aqui é melhor do que em seu país natal. E pretende retornar a morar na casa onde viu seu tio morrer.