Imagine trabalhar como operário, de sol a sol, morando num barraco junto a quase uma dezena de pessoas. Receber salário mínimo e poupar quase tudo, mensalmente, para tentar trazer sua família desde outro país. Pagar pelos documentos e passagens para depois descobrir que seu investimento sumiu, sem que o serviço contratado fosse prestado. Pois essa é a situação de centenas de haitianos que residem em Porto Alegre e cidades vizinhas.
Os haitianos enviaram dinheiro a uma entidade que prometia mobilizar agências de viagens e consulados para trazer seus parentes, a uma quantia de R$ 11 mil por pessoa — uma fortuna para os padrões desses imigrantes radicados no Brasil. A associação não cumpriu o prometido e também não devolveu os valores investidos pela maioria dos clientes. Alega uma série de contratempos diplomáticos, jurídicos e financeiros que seriam causadores da inadimplência.
A reportagem de GZH ouviu 17 haitianos radicados no bairro Rubem Berta, na Zona Norte, que desembolsaram todas as suas economias para trazer seus familiares ao Brasil e ficaram sem o dinheiro — e sem o serviço prometido. Eles e entidades que os auxiliam relatam que o número de vítimas é bem maior e que centenas de compatriotas radicados no Rio Grande do Sul foram prejudicados. Uma lista de 142 pessoas que sofreram o prejuízo foi repassada à prefeitura de Porto Alegre, por grupos de auxílio aos haitianos. Eles tentam alguma mobilização diplomática e ajuda financeira.
Cada um dos haitianos diz que perdeu, no mínimo, R$ 11 mil, mas há relatos de prejuízos bem maiores. É o caso de Saint Rilus Etiénne, auxiliar de pedreiro, que mora no bairro Rubem Berta. Ele está há nove anos no Brasil e mostra comprovantes de que repassou R$ 40,5 mil para uma entidade que congrega haitianos no bairro Floresta, a Associação de Integração Social (Ainteso), sob promessa de que pagariam a uma agência de viagens para providenciar a viagem de quatro familiares seus: mulher e três filhos. O dinheiro foi depositado em quatro parcelas numa conta bancária fornecida por esses intermediários. Com a cópia do repasse bancário em mãos, Etiénne embarga a voz ao comentar o fim dessa história:
— Nunca mais vi eles, só por chamada de WhatsApp. Aguardo há quase um ano. Voltei várias vezes na associação, sempre diziam que a viagem seria no outro mês. E no outro, e no outro. Aí já não me atendem mais, nem no telefone. Devem ter bloqueado meu número.
Amigo de Etiénne, Lejan Jacques também trabalha em obras e está desde 2013 no Brasil. Voltou a passeio ao Haiti, namorou, casou e trouxe a esposa a Porto Alegre. Tentava conseguir agora que sua filha de seis anos viesse para a capital gaúcha — ela ficou com avós em território haitiano. O operário desembolsou R$ 11 mil para a associação de ajuda a haitianos do bairro Floresta.
— Pelo contrato, a menina deveria estar no Brasil em 90 dias. Faz mais de ano e ela não veio. Estive várias vezes na sede da associação. Agora ela fechou. Não atendem mais o celular. Fiquei sem nada — desabafa Jacques, que repassou todas as suas economias para a entidade, vinculada à suposta agência de viagens.
Ouça o depoimento de Lejan Jacques:
Um dos líderes dessa comunidade de haitianos do bairro Rubem Berta é o professor Renel Derilus, que está há sete anos no Brasil e aqui atua como montador, na construção civil. Ele também foi vítima da viagem prometida e não concretizada. Conheceu o pessoal da associação e diz que pagou R$ 22 mil para trazer dois familiares: um filho e uma irmã que deixou no Haiti. Os familiares não vieram. Ele reclamou e diz que, agora, os integrantes da Ainteso não respondem suas mensagens e não atendem telefonemas.
Ouça depoimento de Renel Derilus:
Todos esses casos foram registrados na Polícia Civil como estelionato pelas vítimas. Neusa Batezini, da Associação Família Imigrante, que ajuda mais de 300 famílias de haitianos e venezuelanos, no Centro Vida, na zona norte de Porto Alegre, atua há oito anos nesse tipo de auxílio e diz que a situação dos ludibriados é muito grave. Ela organizou visitas de imigrantes ao prefeito Sebastião Melo e ao arcebispo, Dom Jaime Spengler, e à Defensoria Pública da União, em busca de auxílio.
Neusa estimulou ainda que sete haitianos registrassem queixas na Delegacia da Intolerância. Outros quatro foram na 17ª Delegacia de Polícia Civil, no Centro, que responde pela área onde fica a associação que prometeu as viagens.
A situação deles é desesperadora. Uns até venderam imóveis para pagar a viagem dos parentes. Outros pegaram dinheiro com bancos e até com agiotas. Agora ficaram sem nada e com dívidas.
NEUSA BATEZINI
Associação Família Imigrante
— A situação deles é desesperadora. Uns até venderam imóveis para pagar a viagem dos parentes. Outros pegaram dinheiro com bancos e até com agiotas. Agora ficaram sem nada e com dívidas. É bem triste — descreve Neusa.
O cenário de penúria é confirmado por Mário Fuentes, diretor da Unidade de Povos Indígenas e Migrantes, órgão da prefeitura de Porto Alegre. Ele diz que intermediou reunião do vice-prefeito, Ricardo Gomes, com a Cúria Metropolitana e com o Itamaraty para conseguir ajuda humanitária aos haitianos. A prioridade seria trazer suas famílias. Ou, pelo menos, conseguir algum dinheiro para repor as perdas deles.
Imigrantes imploram ajuda, de repartição em repartição
Na chuvosa tarde de 19 de setembro, um grupo de 17 famílias de haitianos ficou parado em frente à sede da Justiça Federal em Porto Alegre — a reportagem testemunhou o ato. Tentavam obter ali ajuda para processar a associação que lhes prometeu trazer familiares desde o Haiti. E, também, se inteirar dos processos judiciais a respeito.
Foram informados, lá, de que o fluxo imigração de famílias haitianas, mesmo que com ajuda governamental, esbarra num impasse jurídico. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu uma decisão que permitia aos cidadãos haitianos virem para o Brasil sem necessidade de visto. Fez isso justamente por suspeitar que gangues, muito poderosas no Haiti, tenham transformado a viagem de seus compatriotas numa forma muito lucrativa de tráfico humano.
Até o primeiro semestre de 2022 os haitianos não precisavam do visto. Conforme funcionários da Justiça Federal explicaram aos queixosos, 14 processos tramitam na 6ª Vara da Justiça Federal em Porto Alegre solicitando viagens sem visto. Nas ações, sustentam que gangues em Porto Príncipe estariam cobrando propina daqueles que querem acessar a embaixada brasileira, com valores que alcançam US$ 500. Além disso, os agendamentos são difíceis e a internet cai com frequência, impossibilitando a emissão de vistos. Por isso imploram pela dispensa da autorização diplomática.
A 6ª Vara julgou procedente em primeiro grau um desses processos que pedem dispensa de visto: uma ação civil coletiva assinada por várias associações de integração de brasileiros e haitianos (incluindo a Ainteso). Só que, após essa decisão, o STJ decidiu bloquear as vindas do Haiti em duas decisões, em março e julho, prejudicando a associação que organizava as viagens em Porto Alegre.
Dirigentes da Ainteso alegam que já tinham comprado passagens e gasto em vistos para haitianos irem até a República Dominicana — de onde embarcariam ao Brasil. Aí, segundo eles, ficaram sem o dinheiro para devolver aos investidores.
Além de ajuda diplomática e judicial, os haitianos querem providências policiais. Alguns vão na PF, outros na Polícia Civil. Agem de forma desordenada. Há registros de estelionato contra a Ainteso na 3ª Delegacia de Polícia Civil de Porto Alegre, na 17ª DP e também na Delegacia da Intolerância.
A 3ª DP mandou os casos para a 17ª delegacia, onde o delegado titular, Thiago Bennemann, tenta resolver um dilema: a maior parte das vítimas é haitiana e os organizadores das viagens que não saíram, também. Alguns residem no Haiti. O policial civil está em comunicação com a PF para ver se a investigação vai para a área federal.
Uma das suspeitas a serem investigada é se uma rede de coiotes (traficantes de pessoas) atuou junto à Ainteso. Outra é menos complexa: a de que apenas tenha havido desorganização financeira por parte da associação, que comprou passagens e agora está impedida de trazer haitianos sem vistos ao Brasil.
Entidade que prometeu as viagens está fechada
A entidade que arrecadou dinheiro para trazer haitianos ao Brasil — e não cumpriu o acertado — fica na Rua Hofmann, 307, no bairro Navegantes, na Zona Norte. É a Associação de Integração Social (Ainteso), presidida pelo professor haitiano James Derson Sene Charles.
Nas redes sociais, é possível ver fotos e notícias de encontros dele com integrantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Igreja Católica e da prefeitura de Porto Alegre. Ele e outros dirigentes da entidade são o principal alvo das queixas dos migrantes que pagaram e não conseguiram trazer parentes do Haiti.
GZH esteve na sede da Ainteso duas vezes desde dia 4. Encontrou o prédio fechado. Vizinhos falam que desde o início do ano é raro encontrar a sede da entidade aberta. O fechamento seria para evitar represálias de quem enviou dinheiro para pagar as viagens dos familiares e não conseguiu revê-los.
A reportagem tentou diversas vezes contato com James Derson, via telefone — que estava sempre desligado — e no seu endereço residencial, no bairro Rubem Berta. Depois de algumas tentativas, Derson concordou em conceder entrevista, intermediada por seu advogado, Paulo Duarte de Oliveira, um especialista em tratados de imigração e direito internacional.
O presidente da Ainteso disse que ela foi criada, entre outras razões, para tentar viabilizar o reagrupamento familiar de haitianos. A associação ingressou com ação civil coletiva para garantir a vinda de haitianos a Porto Alegre e região. Mediante a cobrança de R$ 10 mil por pessoa — para arcar com transporte, alimentação e vistos —, a entidade conseguiu organizar um voo fretado em que vieram cidadãos do Haiti que têm parentes na capital gaúcha. Isso aconteceu em 25 de julho de 2021.
O objetivo era organizar mais voos. Chegou a reunir mais de 500 interessados e cerca de 200 pagaram pelas viagens, mas elas não aconteceram, por três motivos. O primeiro é que muitas empresas aéreas desistiram de fretar voos do Haiti para o Brasil, porque o território haitiano estava instável politicamente e também havia problema de vistos falsificados.
Aí Derson afirma ter conseguido que haitianos fossem pegar voo regular na República Dominicana (não fretado), mas para isso precisavam de visto do Haiti. Ele diz ter pago US$ 500 para cada documento. Aí aconteceram outros imprevistos, envolvendo overbooking —mais passageiros do que vagas — e os voos foram adiados. Por último, ocorreram duas decisões do STJ que suspenderam voos de haitianos para o Brasil, sem vistos.
Há uma promessa de vistos humanitários, que ainda não se concretizou. Com isso, a viagem das famílias até Porto Alegre ficou inviabilizada
PAULO DUARTE DE OLIVEIRA
Advogado da Ainteso
— Não pode viajar sem visto e, ao mesmo tempo, não estão sendo concedidos vistos para haitianos, pelo Itamaraty. Há uma promessa de vistos humanitários, que ainda não se concretizou. Com isso, a viagem das famílias até Porto Alegre ficou inviabilizada — resume o advogado da Ainteso.
O advogado diz que já realizou audiências no STJ, no Supremo Tribunal Federal (STF), no Senado e no Ministério da Justiça, alertando que a exigência de visto criou um problema social enorme e um racha na comunidade haitiana do Rio Grande do Sul, que não se conforma em ter pago por viagens que não foram realizadas.
A Ainteso já tinha coletado o dinheiro dos associados em Porto Alegre. Numa reunião, foi acertado por Derson que o dinheiro seria devolvido, na medida em que houvesse disponibilidade de valores.
— Só que a empresa aérea retornou, em créditos, apenas 20% do valor gasto pela Ainteso com as passagens compradas e não utilizadas — reclama o haitiano.
Derson estima que devolveu dinheiro — cerca de R$ 1 milhão — a mais de 80 compatriotas que pagaram pelas viagens e não conseguiram rever os parentes. Ele mesmo admite que mais de 200 pessoas pagaram para trazer familiares, sem conseguir, e que precisa organizar os voos ou restituir os valores que arrecadou. O grupo de credores da Ainteso que procurou a reportagem afirma que são 300 pessoas as pessoas prejudicadas, o que daria R$ 3 milhões devidos. Isso ainda não foi calculado pelas polícias que investigam o caso.
Derson chegou a prestar depoimento na 17ª DP e foi questionado da razão de existir uma conta bancária da associação e outra dele, Derson. Ele afirmou que isso ocorre porque a conta da Ainteso não possui Pix. Ele afirmou, no interrogatório, que transfere os valores para a conta própria para fazer pix aos associados.
Ouça a entrevista com James Derson:
O titular da 17ª DP, delegado Thiago Bennemann, afirmou que não sabe se Derson será indiciado por apropriação indébita, por estelionato, se o caso será arquivado ou passará para a esfera da Polícia Federal. Isso porque há muitos prejudicados que residem no Haiti e, como remeteram dinheiro ao Brasil, pode haver crime transnacional. Há também uma questão internacional, envolvendo vistos, que fundamenta tanto as queixas quanto a defesa dos envolvidos.
A Polícia Federal também abriu procedimento para investigar o caso, mas até o momento não identificou a prática de crime de atribuição federal.