Desarmar gradualmente o país é um consenso entre os integrantes da equipe de transição que trabalha para o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Uma das ideias é revogar portarias e decretos implantados ao longo da gestão de Jair Bolsonaro (PL), que permitiram que o arsenal em mãos de cidadãos civis mais que triplicasse em quatro anos.
O assunto, por ser polêmico, é tratado com bastante cautela. Há quem defenda que o desarmamento se torne política de governo desde o primeiro dia, num "revogaço" das medidas bolsonaristas que facilitaram a aquisição de armas. Outros não dão prazo e preferem tentar garantir que o país rume primeiro para a calmaria pós-tensão enfrentada nestes dias subsequentes à mais acirrada eleição vivenciada desde o retorno da democracia, nos anos 1980.
Quando Lula foi presidente pela primeira vez, de 2003 a 2006, o Brasil vivia um período desarmamentista, tanto que no primeiro ano de governo dele, em 2003, foi aprovado o Estatuto do Desarmamento, que estabeleceu controle rígido sobre venda de armas: a concessão de porte ficou exclusivamente a cargo da Polícia Federal, tornaram-se obrigatórios cursos de manejo de armamento e teste psicológico, bem como foi exigido do candidato a comprador ausência de antecedentes ou de processos judiciais.
O lulismo ainda tentou uma cartada mais ousada, um referendo realizado em 2005 que perguntava se o eleitor queria a proibição da venda de armas e munição no país. A maioria disse não (63,68%), mas as restrições de 2003 continuaram valendo.
Tudo mudou a partir da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Em sucessivos decretos e portarias, ele priorizou os que consideram armas uma boa forma de garantir segurança. Conforme levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma ONG que estuda violência, foram editados no atual governo 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções e três instruções normativas, todas no sentido de facilitar a aquisição de armamento. Sobretudo por parte dos caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), que não dependem de licença da PF para possuir arsenais — nestes casos, o controle é feito pelo Exército.
Antes de 2018, cada CAC podia ter até 16 armas, 40 mil projéteis e quatro quilos de pólvora (em casos excepcionais, quando apresentava justificativa como uma competição, o limite podia aumentar). Desde então, portarias garantiram que um atirador, por exemplo, possa ter até 60 armas (30 de calibre comum e 30 de calibre restrito, como fuzis), 180 mil cartuchos e 20 quilos de pólvora.
Com as facilitações, o número de CACs cresceu de 117 mil em 2018 para 673 mil em 2022. Já o número de armas dessa categoria subiu de 350 mil para mais de 1 milhão no mesmo período. Em média, a cada 24 horas um grupo de 450 pessoas obtém licença para se armar. Um dos defensores do direito do uso de armas de fogo para defesa pessoal, o advogado Fabrício Rebelo, que é diretor do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança, admite que ocorreu facilitação, embora já existissem brechas para o sujeito que desejasse comprar armamento.
— De um modo geral, o que as normas fizeram foi nivelar a aquisição de arma e munição pela máxima necessidade dos desportistas, de modo a que não se tornassem tão frequentes os requerimentos ao Exército para compra de maiores quantidades do que as previstas por padrão — explica Rebelo.
Essa facilidade começou a ser cortada ainda antes da eleição. O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu, em setembro, liminares a três ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) que suspenderam recentemente decretos que facilitavam a aquisição de armas. A decisão permite as compras somente para pessoas que demonstrem concretamente efetiva necessidade de se armar, por razões profissionais ou pessoais. Está suspensa também a aquisição de armas de fogo de uso restrito (como fuzis), que serão autorizadas apenas "no interesse da segurança pública ou da defesa nacional, não em razão do interesse pessoal".
O assunto ainda não foi votado pelos demais ministros do STF, mas no grupo de transição para o governo Lula a pressão será no sentido de aumentar ainda mais as restrições impostas por Fachin.
— Ainda não detalhamos, mas o tema de campanha é revogar decretos que facilitam o acesso a armas e munições — resume o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), que integrou o grupo responsável por discutir propostas para a segurança pública.
Dirigente do Fórum de Segurança Pública, a advogada Isabel Figueiredo considera que, mais importante que rever os decretos é controlar o arsenal já existente. E que hoje o Exército não consegue controlar esse armamento dos CACs.
A maioria das medidas pode ser cancelada pelo novo presidente, sem necessidade de passar pelo Parlamento. Uma das providências em estudo é revogar a licença para transporte — os CACs podem levar as armas de um imóvel a outro. Outra ideia é sobretaxar o ICMS das armas, com destinação de recursos para o Fundo de Combate à Pobreza (Funcop).
O sociólogo Rodrigo Azevedo, coordenador do Observatório de Segurança Pública da Escola de Direito da PUCRS, defende essa taxação. Já defensores do direito de se armar, como o advogado Rebelo, lamenta que mudanças radicais sejam efetivadas na legislação. Ele considera que um "revogaço" pode gerar um imenso descontrole do armamento em circulação, uma vez que muitos possuidores podem optar ficar com as armas clandestinamente, para não terem o prejuízo de seus altos investimentos.
— Isso ocorreu quando o Estatuto do Desarmamento foi publicado, fazendo com que um total de mais de 8 milhões de armas registradas nas secretarias de Segurança Pública dos Estados caísse para aproximadamente 650 mil. Poucas foram doadas, o resto ficou clandestina mesmo. Sem falar no prejuízo de quem comprou as armas e não poderá usar — analisa Rebelo.
Os bolsonaristas argumentam que no período da atual gestão, de maior facilidade para adquirir armamentos, o número de assassinatos no país diminuiu. Estudioso do assunto, Rebelo reconhece que não é possível afirmar que exista uma relação de causalidade entre esse maior acesso às armas e a redução dos homicídios, pois esse último é um fenômeno social complexo. Mas ele considera que as estatísticas demonstram que a maior circulação de armas, por si só, não causa mais mortes.
— E, na análise do fenômeno criminal, sobretudo na clássica Teoria Econômica do Crime, a ação de um bandido sempre é resultante de uma ponderação entre riscos e benefícios. Logo, se, para ele, o risco de uma reação da vítima aumenta, a consequência tende a ser que seu julgamento pessoal o desestimule a investir contra ela — acrescenta Rebelo.
Azevedo, na contramão desse raciocínio, sustenta que não há qualquer relação entre mais armas e menos mortes, fenômenos vivenciados no governo Bolsonaro.
— O fato desses fenômenos terem ocorrido ao mesmo tempo não necessariamente os liga. Até porque o perfil das pessoas vítimas de assassinato no Brasil não é de gente que tem acesso a armamento. Talvez, com o tempo, a facilitação de compra de armamento traga aumento nos homicídios.