Usada oficialmente no país como tranquilizante anestésico para animais de grande porte, como cavalos, a cetamina (ou ketamina) tem crescido como droga popular para uso recreativo e aplicação de golpes do tipo "boa noite, Cinderela", em que criminosos drogam a vítima para praticar roubos e outros delitos. O Estado de São Paulo teve alta de 78,94% nos exames toxicológicos que detectaram a substância entre 2019 e 2021, segundo dados da Polícia Técnico-Científica obtidos pelo Estadão via Lei de Acesso à Informação. Em abril, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) elevou o grau de risco do produto.
Em 2013, apenas cinco exames feitos pela Polícia Técnico-Científica apontaram ketamina. Já em 2022 foram 34 de janeiro a abril. O aumento no uso e nas apreensões tem sido gradual e atingiu o pico no ano passado, com 102 testes positivos para a droga, só entre casos oficialmente registrados. Em 2019, haviam sido 57. Os números são referentes a provas coletadas em investigações da polícia e enviadas aos institutos de Criminalística e Médico-Legal. Na prática, significa o aumento de apreensões de material do tráfico e de exames das vítimas de abuso.
Em abril, a Anvisa atualizou o status da ketamina e da escetamina na lista de substâncias controladas. Com isso, ela "subiu" um degrau na classificação de perigo e saiu da C1, de "substâncias sujeitas a controle especial", para a B1, de "psicotrópicas" e "sujeitas à notificação de receita 'B'". O órgão disse que a mudança foi motivada "pela necessidade de maior controle" e para "possibilitar o aperfeiçoamento de medidas de combate ao seu uso irregular/recreativo como droga de abuso".
A diferença entre uma lista e outra também é vista no tipo de receita necessária para adquirir o produto. A nova versão exige, além de dados básicos do comprador, fornecedor e emitente, especificações sobre quantidade, forma farmacêutica, dose e posologia indicadas. Essas distinções entre o "tamanho" da dose e a forma da substância são, além do óbvio consentimento, o que diferencia o uso da ketamina para fins recreativos ou para golpes de abuso. No primeiro caso, a quantidade é menor e em pó branco ou colorido, a depender da presença de um corante; no segundo, a dosagem é maior e costuma ser na forma líquida, de fácil dissolução em drinques e bebidas.
— O usuário de forma recreativa utiliza menos, se prepara e fica em ambiente protegido com os amigos. No uso criminoso, a quantidade é maior e a vítima está despreparada, o que faz ela confundir os sintomas com passar mal. O criminoso já atua ao lado para fingir que presta apoio — diz Alexandre Lehart, perito criminal do Núcleo de Análise Instrumental da Polícia Técnico-Científica.
— Em qualquer contexto, a ketamina apresenta sérios riscos e é perigosa, por isso tem de ser controlada.
A substância também é utilizada para fins recreativos no Rio Grande do Sul. Em 2019, a Polícia Civil realizou uma operação na qual prendeu o gerente de uma agropecuária em Canoas. Ele foi acusado de fornecer a ketamina para a produção de entorpecentes. Em Caxias do Sul, um grupo que fabricava, de forma caseira, drogas a partir da substância também foi alvo de ação policial naquele ano.
Subnotificação
Em agosto de 2020, a Polícia Civil de São Paulo deflagrou as primeiras fases da Operação Hypnos. Batizada em alusão ao deus grego do sono, a investigação identificou e prendeu membros de uma quadrilha conhecida por agir em bares, baladas e restaurantes aplicando o golpe do "boa noite, Cinderela" com a ajuda da ketamina. Roberto Monteiro, delegado da 1.ª Seccional Centro, diz que a região sofreu simultaneamente aumento e mudança na forma dos crimes com a pandemia.
— Com a restrição de circulação, tornaram-se comuns os encontros dentro de casa. Sem a possibilidade de ir a locais públicos, muitos acabaram se relacionando por redes sociais e aplicativos, convidando os autores de crime para dentro das suas residências — afirma ele.
Segundo Monteiro, "houve bastante apreensão de ketamina" na pandemia, o que pode significar aumento no tráfico e desvio da droga.
— Isso facilitou para o marginal. Também tivemos muitos casos envolvendo pessoas da comunidade LGBTI+, que são mais vulneráveis nesse sentido.
Em uma ocorrência, conta, a vítima perdeu mais de R$ 150 mil via Pix e o roubo de TV, notebook e até roupas de grife. É comum que casos de "boa noite, Cinderela", com ou sem ketamina, sejam subnotificados. O caráter noturno e/ou sexual do golpe é agravante de culpabilização da vítima, que fica desconfortável para denunciar, por medo de ser desacreditada.
Álvaro Pulchinelli, toxicologista do laboratório Fleury Medicina e Saúde, conta que isso dificulta ainda mais os diagnósticos.
— Às vezes a pessoa fica na dúvida se teve contato com a substância, mesmo sem prestar queixas. Chega confusa e constrangida, porque é uma violência — diz, acrescentando notar "aumento de substâncias como a ketamina".
A janela para identificação da droga em exames é curta. Entre 2 e 6 horas após entrar no organismo, não está mais no sangue. Costuma durar mais na urina, mas não ultrapassa três dias, a depender do tanto ingerido e do metabolismo.
Delegados ouvidos pelo Estadão dizem que a ketamina vem de outros países, mas usuários e peritos relataram que há a compra direta em lojas de produtos veterinários e agrários, com desvios de receita ou da própria substância. Em nota, a Polícia Federal disse não ter encontrado ketamina em nenhum exame toxicológico feito pela instituição.
Já a Anvisa afirma que "não foi localizado registro legal e válido de medicamento contendo a substância" no Brasil. Acrescenta que, com a inclusão na lista B1, a numeração dos receituários - que têm modelo oficial - é concedida pelo órgão sanitário local, o que facilita o monitoramento.
"Ilusão"
Apesar de não ser exclusiva desses espaços, a ketamina é popular nas baladas de música eletrônica por São Paulo, onde é conhecida como "keta", "key", "keyla" ou, se misturada com cocaína, como "c.k." ou "calvin klein". Assim Yan (nome fictício), de 52 anos, foi apresentado à droga.
— Já conhece a keyla? — indagou um amigo em uma balada na Lapa, zona oeste paulistana.
A primeira droga que tomou foi a "balinha" (ecstasy), mas ele conta que depois de um tempo não sentia mais efeito. Aí resolveu provar a ketamina.
— No início, o efeito das luzes e do som era maravilhoso. Mas é tudo uma ilusão, né? — conta.
Na última década, foram três overdoses por cocaína.
— Não sei como sobrevivi.
Ele conta só escapar do vício de ketamina quando não está em São Paulo, onde o acesso à droga é mais fácil.
— Às vezes tenho esses "starts" de jogar fora (vidros de ketamina). Alguns amigos até falam "louco, desperdiçando dinheiro!"
Ele diz pagar de R$ 250 a R$ 350 em um vidro com 50 ml do produto no estado líquido, que ele transforma em pó. Nas baladas, um pacote de 1 grama da droga já solidificada e pulverizada chega a R$ 100. É possível encontrá-la em cores diferentes, com adição de corantes.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.