— Sim, ela tá falando com a minha mãe ali.
Essa é a frase dita por uma criança em um áudio recebido no celular do pai de Rafael Mateus Winques, 11 anos, na noite de 15 de maio de 2020 – a investigação apontou que, neste momento, o menino já estava morto. O impasse, após a Justiça negar a realização de perícia na gravação, levou ao cancelamento do júri pelo assassinato do garoto em Planalto. De um lado, a defesa da mãe Alexandra Salete Dougokenski, 34, afirma que a voz é de Rafael, e, por isso, precisa ser periciada. De outro, a acusação sustenta que o material não tem relevância para o caso e que a ré matou o filho.
Neste contexto, tanto defesa como acusação seguem caminhos para tentar esclarecer as dúvidas sobre esse áudio. O Ministério Público afirma que está reunindo informações para fazer um esclarecimento oficial. A banca de defesa garante que irá contratar perícia particular para comprovar que é a voz de Rafael e ingressar com habeas corpus no Tribunal de Justiça na próxima semana. O intuito é pedir que seja determinada análise pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP).
— Ao longo do processo, demos mais atenção para os áudios maiores. Como era um áudio bem curto, acabamos vendo somente muito perto do júri — alega Jean Severo, um dos responsáveis pela defesa.
O criminalista liderou a banca de advogados que decidiu abandonar o plenário na última segunda-feira (21), após 11 minutos de sessão. A decisão se deu após a magistrada Marilene Campagna negar o pedido para a perícia, por entender que os prazos para esse tipo de solicitação já haviam se encerrado.
Dois pontos principais precisam ser esclarecidos em relação ao áudio: se a voz é mesmo de Rafael e quando foi feita a gravação. Sabe-se, segundo os dados da extração, que o pai recebeu a mensagem naquela data às 20h33min. Uma das possibilidades levantadas pela acusação é que esse áudio tenha sigo gravado antes e encaminhado ao pai naquele momento, justamente em razão do desaparecimento do menino. O sumiço de Rafael foi comunicado à polícia e a notícia se espalhou pela cidade na manhã do dia 15.
Grupos de buscas à criança foram formados em Planalto, inclusive de coleguinhas de escola, que se empenhavam em tentar localizar Rafael. Uma das suspeitas é que esse áudio tenha circulado em algum desses grupos até chegar ao celular do pai. Delegado que investigou o caso, Ercílio Carletti afirma recordar de ter ouvido áudios compartilhados por colegas do menino durante a apuração. O policial suspeita que a gravação possa ser uma dessas.
— Esse áudio apontado está à disposição da defesa desde antes de eu concluir o inquérito policial. Está descontextualizado e pode ter sido recortado e enviado por qualquer grupo. Não existe como saber a data de gravação, apenas de envio ou recebimento — diz o delegado.
Outro ponto que precisa ser respondido é de qual celular partiu a mensagem em questão. O resultado da extração é uma mídia, com arquivos de áudios, onde é possível acessar informações como data e hora. Mas a extração realizada não detalha, por exemplo, de qual aparelho foi enviada a mensagem nem indica quando a gravação foi realizada originalmente.
Uma das alternativas para esclarecer se essa mensagem foi mesmo enviada por Rafael seria verificar o celular do garoto e conferir se algo foi enviado na noite de 15 de maio, ainda que o menino pudesse ter usado outro telefone. O aparelho dele permaneceu em casa quando ele sumiu, e foi encaminhado para perícia na semana seguinte. Segundo o Ministério Público (MP), esse cruzamento foi realizado durante a investigação e nada foi localizado.
— Não tinha nada no celular do Rafael. Nenhuma mensagem para o pai. Temos todos os relatórios do Rafael, Alexandra e Rodrigo, e a primeira coisa que se faz é esse cruzamento. Foi tudo um grande engodo da defesa — rebate a promotora Michele Dumke Kufner.
Análise da voz
A defesa, por outro lado, diz ter convicção de que o áudio é de Rafael e que isso poderia mostrar que a acusação estava equivocada ao afirmar que o menino morreu entre a noite de 14 de maio e o início da madrugada de 15 de maio.
— Mostrei esse áudio para toda a família dele, conhecidos, e todo mundo disse que é a voz dele. A Alexandra chorou quando ouviu. Eles reconhecem com absoluta certeza como sendo dele — afirma Severo.
Fonoaudióloga e perita em identificação humana forense, Maria Inês Beltrati Cornacchioni Rehder explica que identificar uma voz não é algo tão simples assim. Com 35 anos de profissão, 15 deles com experiência em perícia vocal, considera que só é possível determinar se a voz é mesmo de alguém após série de etapas de análises.
— Nesse contexto, toda a cautela é importantíssima. Não dá para dizer “todo mundo disse que a voz é do Rafael”. A gente não faz pericia de voz dessa forma — afirma a perita.
O primeiro passo para conferir se a voz é realmente de Rafael seria obter uma amostra padrão, que se tenha certeza que é dele. Como se trata de um caso de uma pessoa morta, essa amostra poderiam ser áudios ou vídeos gravados no celular do menino. Desde que se tenha absoluta certeza que é dele o material. A perícia reuniria diversos trechos gravados por ele para avaliar as características da fala e voz.
Seriam necessários de 10 a 15 dias para analisar o material. O primeiro passo seria a verificação dos metadados, que são as informações sobre a gravação. Na sequência, iniciaria a análise da voz com a comparação auditiva, depois da linguística, com os sons usados, e, num terceiro momento, da acústica, que analisa, por exemplo, a frequência da fala.
Nesse contexto, toda a cautela é importantíssima. Não dá para dizer “todo mundo disse que a voz é do Rafael”. A gente não faz pericia de voz dessa forma
MARIA INÊS BELTRATI CORNACCHIONI REHDER
Perita de voz
— Essas três análises têm que estar combinadas. As três têm que apontar: sim, é a voz do Rafael, ou não, não é — afirma a perita.
Maria Inês ressalta, no entanto, que há uma dificuldade no caso, que é o fato de o áudio debatido ser uma frase curta, que indica ser resposta dentro de uma conversa.
— Essa frase com poucos segundos seria praticamente impossível apontar se é ou não a voz do Rafael. Ao menos que tenha alteração de fala específica ou frequência de fala. A amostra é muito pequena. É um recorte. Se eu tiver a conversa completa, posso ter uma amostra que propicie a avaliação desse áudio. Essa frase única, na minha opinião, seria muito difícil — explica.
A defesa afirma ter consultado perito que indicou ser possível realizar a análise.
As versões da mãe
Se Rafael estivesse vivo na noite de 15 de maio, como cogita a defesa da mãe, as versões apresentadas por Alexandra até o momento, tanto na fase policial como no Judiciário, seriam enganosas. Isso porque em todas elas a mulher cita o período entre a noite de 14 de maio e a madrugada de 15 de maio de 2020.
Na última versão, quando foi ouvida na Justiça durante instrução do processo, Alexandra acusou o ex-marido Rodrigo Winques de matar Rafael na madrugada de 15 de maio. Afirmou que a morte aconteceu de forma acidental e que ela forjou o sumiço do caçula por medo e para proteger o outro filho adolescente. Neste caso, segundo a própria ré, ele não poderia estar vivo na noite de 15 de maio.
Alexandra procurou o Conselho Tutelar e a Delegacia de Polícia de Planalto na manhã de 15 de maio, ou seja, antes de o áudio em questão ter chegado ao celular do pai. A mensagem, supostamente atribuída a Rafael, inclusive cita a mãe. Severo diz que, caso a perícia confirme que se trata do garoto, outras possibilidades devem ser estudadas pela defesa.
— Isso muda tudo. Não sabemos se não teve outro crime antes do homicídio. Inclusive implicaria que o processo fosse julgado pela juíza como júri. Vamos supor que tenha havido sequestro, cárcere privado, seguido de morte. Quem julga é a juíza, não o júri, muda tudo — alega.
O pai do menino diz não recordar que gravação é essa nem se o áudio é mesmo do filho. A polícia e o MP, na época, permaneceram cerca de 30 dias com o aparelho, que posteriormente foi devolvido. Assistente de acusação, que representa o agricultor no processo, Daniel Tonetto refuta qualquer possibilidade de o áudio ter sido encaminhado por Rafael ao pai naquela noite.
— É um absurdo. É claro que o menino não mandou o áudio naquele momento porque estava morto. O áudio estava no processo em 2020. Se tivesse que pedir pericia, que fosse no prazo legal. Certamente esse áudio não foi enviado naquele horário. Isso é obvio. O que pode é ter sido áudio reencaminhado ou ser de outra criança — alega o criminalista.
O pai chegou a ser investigado durante a apuração, mas a investigação apontou que ele não estava em Planalto no momento em que teria acontecido o crime. Para a acusação, Alexandra dopou o filho com medicamentos, depois asfixiou Rafael sozinha dentro do quarto dele. O corpo da criança foi encontrado 10 dias depois, após ela mesma indicar onde estava o cadáver.
Desdobramentos
Após o cancelamento do júri, uma nova data para o julgamento precisará ser agendada pela Justiça. Não há, ainda, previsão de quando isso irá acontecer, até porque o júri em Planalto exigiu planejamento. O Tribunal de Justiça informou ter gasto mais de R$ 160 mil com contratação de empresa para organização do evento e outras estruturas (internet, link de transmissão, banheiros químicos, transporte etc).
Nesta quinta-feira (24), o MP pediu à Justiça que os advogados da ré sejam condenados ao pagamento de multa pelo abandono do plenário e ao ressarcimento dos cofres públicos pelos gastos. Se a defesa ingressar, como adianta que irá fazer, com pedido no Tribunal de Justiça pedindo a realização da perícia, a decisão sobre nova data do júri só deve sair após a manifestação dos desembargadores.
Caso o TJ negue o pedido da perícia, a defesa garante que irá ao julgamento com o resultado da perícia particular.