Nove golpes de faca de açougue, ferimentos nas mãos, nas costas, em um braço, seio e pescoço. Jugular rompida. Uma semana de internação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Foi o que a técnica em enfermagem Thais Hipólito, 37 anos, sofreu em uma tentativa de feminicídio praticada pelo ex-marido, pai de seus três filhos. Ele e atual companheira foram presos pela 1ª Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (1ª Deam). Thais sobreviveu. Caso encerrado.
Mas não. Para a vítima, foi apenas uma etapa de tantas que ainda terá de enfrentar para alcançar a recuperação física e emocional dela e da família. Usando o caso de Thais como exemplo, a Polícia Civil alerta para as dificuldades que vítimas têm de receber atendimento de saúde.
O ataque foi em 2 de maio. Três meses depois, a técnica em enfermagem só conseguiu atendimento psicológico e psiquiátrico graças à intervenção da polícia. A assistente social da 1ª Deam a colocou em contato com a ONG Themis, que a encaminhou para atendimento em um serviço da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Thais fez três consultas por WhatsApp. Mas ainda faltam os filhos: uma jovem de 15 anos e os gêmeos de quatro anos (um deles, segundo a mãe, tem traços de autismo).
Pelo convênio que tem, ela somente falaria com um psiquiatra pela primeira vez ao longo do mês de agosto. O plano só lhe garantiu, até agora, sessões de fisioterapia, três vezes por semana. Por impulso de policiais, conseguiu consultar com uma dermatologista que fará, gratuitamente, o tratamento das cicatrizes dos cortes.
_ A polícia resolve apenas um problema, o criminal. E depois? Essa mulher precisa de tudo, tem que estar na rede do SUS. É preciso também esse olhar para as vítimas de violência. A polícia já tem ido além do trabalho na parte criminal _ destaca a chefe da Polícia Civil, delegada Nadine Anflor, que autorizou as equipes a darem caronas de viatura para Thais.
Foi falando desse tipo de dificuldade com a cunhada Aline Anflor, que Nadine conseguiu o tratamento dermatológico, uma alternativa para resgatar a autoestima da vítima, que carrega no corpo as marcas da violência do ex-marido.
Nadine também acionou o vice-presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers), Eduardo Neubarth Trindade. Thais foi levada de viatura ao Cremers. Trindade a encaminhou para atendimento com um cirurgião especialista em mãos.
_ É difícil entrar no sistema, tem muita burocracia. São mil e uma dificuldades. Se uma pessoa que sofreu um caso com essa repercussão tem essa dificuldade, imagina o resto? Me incomoda isso. É preciso que se reveja. O atendimento tinha que ser natural, mas a gente sabe que sempre vai travar em algum lugar _ diz o vice-presidente do Cremers.
A delegada Jeiselaure Rocha de Souza, diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam) e titular da 1ª Deam, afirma que o ingresso das vítimas nessa rede de proteção é bem deficitário em Porto Alegre:
_ Há casos de policiais terem de pagar passagens para essas vítimas voltarem para casa. A Defensoria Pública está no plantão para atender o agressor, mas não há um olhar para tudo que essa vítima precisa, como o atendimento aos filhos, saúde, pensão. É preciso um acolhimento global.
Em fevereiro, a delegada e colegas estiveram reunidas com o prefeito Sebastião Melo e secretários para discutir o fortalecimento da rede de atendimento às vítimas de violência doméstica na Capital.
"Um dia vou superar. Nunca vou esquecer"
A técnica em enfermagem Thais Hipólito, 37 anos, sabe que vai curar as dores decorrentes do ataque que sofreu do ex-marido. Mas precisa antes se fortalecer psicologicamente:
_ O emocional é complicado de recuperar. Não consigo andar sozinha. Fui na lotérica perto de casa e vi uma pessoa com casaco parecido ao dele (do agressor no dia do crime). Me faltou ar, tive crise pânico. Tive que ser acudida. As meninas da lotérica me reconheceram e me acalmaram. Foi perturbador. Sei que ele está preso, mas não consigo controlar.
Por intermédio da assistente social da 1ª Deam, que fez contato com um posto de saúde, Thais conseguiu que os filhos consultassem com uma médica da família, mas o atendimento psicológico ainda não veio. Apenas um dos gêmeos está com encaminhamento.
_ A resposta é demorada para tudo, não há um olhar diferenciado _ diz a mulher que tinha dois empregos e agora sobrevive com os filhos com pouco mais de um salário mínimo.
Thais teme não poder retomar o trabalho como técnica em enfermagem, em função dos ferimentos que sofreu nas mãos.
_ Vou ter que me reinventar, mas preciso estar forte. O que me deixa em pé são meus três filhos e a chance de abraçar essa causa da violência doméstica. É fundamental denunciar e não ter vergonha. Eu tive sorte e a mão de Deus. Mas não dá para contar com a sorte de que vai sobreviver a um ataque deste tipo _ desabafa.
Contraponto
O que diz Deyse Cardoso, coordenadora dos Direitos da Mulher da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social:
"Temos casos recorrentes como esse da Thais, em que a pessoa não chega onde tem o atendimento. A Thais esteve na rede, internada por uma situação grave e essa rede não a manteve, não a encaminhou para seguir o atendimento. É uma dificuldade enorme de comunicação. Estamos construindo estratégias para que isso não ocorra mais, para aprimorar a comunicação dessa rede. Já temos um grupo de trabalho discutindo estratégias em que participam prefeitura, Governo do Estado, Polícia Civil, Defensoria. Também será publicado um decreto que vai instituir essa rede de forma a criar protocolos que não vão mudar quando responsáveis pelos setores trocarem".
O que diz a Defensoria Pública:
"A Defensoria Pública reconhece que, atualmente, ainda não possui plantão para atendimento das vítimas na Delegacia da Mulher, em Porto Alegre. De acordo com a Administração Superior da Defensoria, a falta de defensores públicos no atual quadro da instituição é um dos motivos para a não realização do plantão. No entanto, a instituição, através do Núcleo de Defesa da Mulher, está trabalhando em um projeto para implantar a curto prazo um sistema de plantão virtual (remoto), para que a vítima, quando necessário, receba o atendimento de um defensor. Além disso, no mês de agosto, o Núcleo fará um mutirão de atendimento junto à Delegacia da Mulher. O objetivo é verificar o fluxo e a quantidade de demandas de mulheres que necessitam do atendimento da Defensoria Pública no local. Nesse trabalho, também serão repassadas informações referentes a ajuizamentos, ações de guarda, encaminhamentos para abrigos, entre outras coisas".