Depois de 18 horas de trabalho em duas instituições de saúde de Porto Alegre, a técnica de enfermagem Thais Hipólito, 37 anos, estava com pressa para chegar em casa no começo da manhã de 2 de maio. Era domingo e tinha planos definidos para o dia de folga: cortar seu cabelo e dos filhos e levar as crianças para pracinha.
Ao chegar na parada de ônibus da Avenida Teresópolis, na Zona Sul, percebeu o ex-marido se aproximar com óculos e boné. Ele simulou um assalto, ela fez de conta que não o reconheceu. Levantou as mãos para cima e foi atingida com estocadas de facão. Tentou se defender e os dois caíram juntos no corredor de ônibus até que um homem apareceu para ajudá-la. Foi atingida com nove golpes. O agressor fugiu, acabou preso horas depois em Balneário Pinhal, no Litoral Norte, e confessou o crime à polícia.
Durante o ataque, Thais conseguiu defender o próprio rosto, mas sofreu ferimentos na mãos, nas costas, no braço, no seio e no pescoço. Ainda no ponto de ônibus, a técnica orientou o próprio socorro. Atingida na veia jugular, pediu para o homem pegar o seu jaleco para estancar o sangue. Mandou ele a virar de lado para verificar se não havia perfurações nas costas. E dizia para amarrar o tecido forte no local dos ferimentos e mantê-lo firme:
— Eu repetia que precisava voltar para os meus três filhos enquanto ensinava ele como proceder. Meus dedos estavam quase para fora da mão, outro braço estava com tendão exposto. Sabia que se entrasse ar no meu pulmão poderia não sobreviver. Pedia para que não me deixasse morrer ali. Lembro da cena como se fosse agora.
Uma segunda pessoa mandava Thais repetir o nome dos três filhos e tentava mantê-la acordada. Um deles, ligou para o Samu e a mulher que atendeu o chamado era irmã de Thais. Durante a ligação, a técnica reclamava de dor no braço. Do outro lado da linha, a atendente, que sabia que Thais vinha sendo perturbada pelo ex, reconheceu a voz da irmã.
— Ela perguntou qual o nome da vítima e disse: moço, é a minha irmã. Mas em momento nenhum ela se desequilibrou. E eu só pedia para não morrer ali — descreve a vítima.
Thais e a irmã se reencontraram na sala vermelha do Hospital de Pronto-Socorro (HPS). A técnica ficou uma semana na UTI, precisou ser entubada e depois foi encaminhada para o Hospital São Lucas da PUCRS, de onde teve alta no último sábado (15).
— Cheguei com um sangramento abdominal bem importante, sabia da gravidade. O baço também lesionou, tiveram todo o cuidado para fazer as suturas. Por pouco não pegou no coração. Mas pior que todas as marcas do corpo, é a dor na alma. Se ele fez isso comigo, faria contra qualquer pessoa — diz Thais.
Ainda no hospital, pediu para a Polícia Civil gravar um vídeo seu para divulgar como alerta a outras mulheres que sofrem agressões. Na gravação, diz:
— Sou vítima e sobrevivente a um atentado de feminicídio. Peço que todas que sofram algum tipo de agressão, verbal, psicológica, procurem a polícia. Denunciem. Procurem um posto de saúde, procurem ajuda. Isso não é normal. Eles começam verbalmente e depois fisicamente. Nem todo mundo terá a mesma sorte que eu tive de estar viva.
Não imaginei que ele tinha tanto ódio. Não podemos subestimar as pessoas. Ele foi perverso. Levei aquelas facadas com ódio, com violência, ele queria me matar. Ele foi exatamente em partes do corpo que me matariam.
THAIS HIPÓLITO
Técnica de enfermagem
Em casa, Thais se recupera aos cuidados da família. Fará fisioterapia quatro vezes por semana, principalmente para restaurar os movimentos dos dedos da mão esquerda. Recebeu homenagens de amigos e colegas de profissão. Ainda tem dificuldades para comer e sente dores no abdômen. Não sabe quando poderá retornar ao trabalho, mas tem planos de voltar a estudar. Aguarda o acompanhamento médico para verificar se ficará com algum sequela.
— Sou grata pela empatia do próximo que me salvou. Não tenho dúvida que essa pessoa colocou a própria vida em risco para salvar alguém que não conhecia. E a pessoa desceu naquele dia uma parada antes da habitual. Tenho gratidão pela vida e por estar viva. Será uma nova fase para mim e para os meus filhos. Quero que ele seja tratado como um criminoso. Todos os homens que fazem esse tipo de violência contra a mulher são criminosos, mas muitos transferem a culpa para nós.
Thais foi casada com o agressor por 17 anos. Da união, nasceram três filhos. Há três anos, rompeu a relação, o homem saiu de casa, mas três meses após o término, ao visitar as crianças, a técnica sofreu agressões do ex. Registrou ocorrência e teve medida protetiva que impedia o ex-companheiro de se aproximar. No período, também recebia ligações frequentes da Brigada Militar. O procedimento não foi renovado e Thas seguiu sofrendo agressões verbais, psicológicas e ameaças. Ele não pagava pensão e fazia contato com a desculpa de se aproximar dos filhos.
— Ele não aceitava a separação e o fato de eu não voltar para ele. E sempre achava que eu tinha que ter outro homem para não querer voltar. Não imaginei que ele tinha tanto ódio. Não podemos subestimar as pessoas. Ele foi perverso. Levei aquelas facadas com ódio, com violência, ele queria me matar. Ele foi exatamente em partes do corpo que me matariam — diz.
Na noite anterior ao crime, o ex-marido chegou a fazer contato com Thais, pedindo para ver os filhos por ligação de vídeo. A mulher respondeu que estava trabalhando. A polícia acredita que o crime foi premeditado, pois o agressor conhecia a rotina e os horários da vítima. Outra hipótese é a motivação patrimonial, pois Thais tem seguro de vida no nome dos filhos. Na segunda-feira (18), a atual companheira do agressor também foi presa em Balneário Pinhal por suspeita de ser co-autora do crime.
A investigação apurou que a mulher de 39 anos tinha conhecimento do plano do companheiro de matar a ex-esposa, aderiu a sua conduta, organizou detalhes do crime e depois escondeu e eliminou provas, atrapalhando o trabalho da polícia.