Enquanto estava em licença maternidade, no ano passado, a capitã Mariana Tigik Hoffmann, 37 anos, recebeu a ligação de colegas da Brigada Militar (BM). Do outro lado da linha, avisavam da abertura do edital de seleção para o curso de aviação da corporação. Era a primeira vez em oito anos que aquela oportunidade estava posta: duas vagas para piloto de helicóptero e duas para de avião. Mesmo em meio a pandemia e com recém-nascido em casa, a oficial não quis esperar uma segunda chance. Começou a estudar.
Passou no processo seletivo que exigia conhecimentos básicos de aviação e, quando o bebê completou seis meses, ingressou no curso. Mudou-se da zona sul de Porto Alegre para Capão da Canoa para frequentar a Escola de Formação de Aeropolicial da BM. A mãe, seu principal ponto de apoio na guinada de carreira, foi ao Litoral Norte junto com a filha e, após algumas semanas, retornou para a Capital com o neto para Mariana concluir o curso.
A capitã ficou um mês vendo o bebê, hoje com um ano e um mês, por chamadas de vídeo, mas o empenho a destacou: foi a única da turma de quatro alunos a concluir a etapa teórica. Agora, na fase de treinamentos práticos, Mariana já tira a aeronave do chão.
— Foi sofrido, mas eu sabia que seria temporário e precisava focar no curso. Era um sacrifício, sim, mas não tinha outro momento para fazer isso — conta em conversa com GZH no hangar da BM no aeroporto Salgado Filho.
Mariana flertava com a aviação desde os tempos do colégio mas o alto valor do curso a levou para o Direito. Formada pela PUCRS, foi para o Ministério Público e o gosto por segurança pública a motivou a ingressar na BM em 2014. Como capitã, atuou em São Leopoldo, na Corregedoria e no 9º Batalhão de Polícia Militar (BPM), em Porto Alegre, até ser fisgada pela oportunidade que tanto queria.
— Quando entrei na BM, sempre tive muita prioridade pelo Batalhão de Aviação, sempre foi muito atrativo. E tinha convicto para mim que quando surgisse o processo seletivo, eu iria me inscrever e iria participar. Era uma questão minha, que eu iria tentar. Sentia que precisava disso para completar minha carreira — diz.
Discreta, Mariana prefere não solenizar o próprio papel, mas sabe que ao mesmo tempo em que realiza o próprio sonho faz história na BM: é a primeira mulher a fazer o curso de piloto da tropa. A falta de exemplos e de um ambiente feminino não intimidou a porto-alegrense.
No batalhão de aviação, com unidades em Porto Alegre, Capão da Canoa e Caxias do Sul, são 71 homens e Mariana. A chegada da oficial provocou adaptações estruturais nos espaços que agora ela frequenta, pois nenhum dos quartéis tinha banheiro feminino.
— É um fato singular como foi o ingresso das primeiras mulheres na BM em 1986. E é consequência também da mudança do perfil dos oficiais da BM como um todo. Esse é um quartel masculino há muito tempo, sempre foi. Nunca tivemos uma mulher. Disse para ela nos ajudar, foram feitas pequenas mudanças de infraestrutura para recebê-la de uma forma confortável e digna, mas o treinamento é absolutamente o mesmo — afirma o major Rodrigo Brinco Schneider, subcomandante do Batalhão de Aviação da BM e instrutor da oficial.
Vencida a etapa teórica e as provas de meteorologia, teoria do voo, regulamentos, conhecimentos técnicos de aeronave e navegação, avaliação que obedece parâmetros da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a capitã conduziu pela primeira vez uma aeronave em 22 de junho acompanhada do instrutor, major Schneider. O avião decolou do aeroporto Salgado Filho e foi até Capão da Canoa. No dia 25, fez o trajeto de ida e volta de Porto Alegre a Águas Claras, em Viamão. Nesta sexta-feira (2), GZH voou com a capitã até Capão da Canoa. Nesta primeira fase, sempre acompanhada do instrutor.
— Estou vivendo um namoro com a aeronave, tenho que conhecer cada pedacinho dela, ter uma familiarização muito grande. Entender cada botão de olho fechado. Voar é a parte mais prazerosa de tudo isso. Estar lá em cima e ouvir o instrutor falar: "Viu, guria, tu está voando. Tu consegue voar, Mariana!". O primeiro voo é bem impactante, no segundo já se consegue assimilar aquilo tudo e entender as coisas. É algo que me deixou muito feliz e me fez ter certeza que é isso que eu quero — detalha.
Até se tornar a primeira mulher formada piloto na BM, Mariana vai percorrer pelo menos três anos de treinamento, ser avaliada em cada hora de voo e passar por uma série de provas da Anac. Quando completar as primeiras 30 horas de voo, o que deve ocorrer em 40 dias, fará a primeira condução solo do Embraer modelo carioca, com espaço para piloto e mais três pessoas — uma espécie de avião autoescola usado pela oficial. O primeiro voo sozinha na aeronave acontece quando o instrutor entender que a aluna está pronta, em data que ela não sabe qual — Mariana só será avisada instantes antes.
— O voo solo será a consolidação do meu relacionamento com a aeronave. Depois dele, estou apta a ser avaliada para ser piloto inicial. Faço outra prova e novas horas de voo. É uma escadinha. É um mundo totalmente novo, são disciplinas que fogem do policiamento e do Direito. São passinhos lentos e graduais — descreve.
Por ser considerada uma atividade de risco maior que a comercial, a aviação de segurança pública exige que os voos tenham dois pilotos: o comandante de aeronave e o copiloto. Quando estiver formada, Mariana guiará o avião da BM para oito passageiros. A aeronave faz transporte de tropa, de órgãos de transplante, pacientes, governador e autoridades. Até lá, o processo de aprendizagem é minucioso e lento e, não raro, provoca desistências de alunos.
— Voar é legal e fazer alguém voar dá trabalho. Desgasta, dá stress, a gente se incomoda, mas voar é a recompensa. E é muito satisfatório voar ensinando alguém. É como retribuir aquilo tudo que outras pessoas te deram. É gratificante ver a pessoa que entra não sabendo nada e, meses depois, conseguindo fazer a manobra, decolando um avião — conta o major Schneider, que foi aluno do coronel Vanius Santarosa, atual comandante-geral da BM.
A oficial não tem brigadianos ou pilotos na família. Para dar essa guinada na carreira, Mariana contou com o suporte da mãe e do marido. Não fosse a rede de apoio, a capitã afirma que não teria condições sequer de concluir a parte teórica. No hangar da BM, passa horas dentro da aeronave conhecendo como funciona cada comando. Em casa, faz exercícios simulados para se preparar para as provas da Anac que ainda estão por vir.
No futuro, não descarta também se capacitar para conduzir helicópteros, as aeronaves mais usadas em operações policiais e ocorrências de assalto a banco, tomada de refém e levantamento de inteligência. E, por ser a primeira mulher a exercer essa função, também deseja inspirar outras policiais:
— Requer dedicação e capacidade de aceitar um desafio para sair da zona de conforto. É um mundo novo dentro da BM. Para quem já fez policiamento em Porto Alegre à noite, não é mais arriscado que isso. E estou muito feliz, quero evoluir e fazer todo esse investimento pessoal, de estudo, com criança e na pandemia, valer a pena.