Por sete anos, uma moradora de Canguçu, no sul do Estado, aguardou pelo desfecho do caso que relatou à polícia. Aos 40 anos, ela é uma das pacientes que acusa o ginecologista Cairo Roberto de Ávila Barbosa, 65 anos, de crimes sexuais. O médico, que nega as acusações, tornou-se réu por violação sexual mediante fraude contra quatro mulheres – um deles é o caso dela – e segue sob investigação. Nos últimos dias, pelo menos mais 16 registros foram realizados na Polícia Civil.
No fim da manhã de 26 de março de 2014, ela saiu direto do consultório de ginecologia e obstetrícia na Rua General Câmara, para a Delegacia de Polícia. Lá, contou ter sido abusada pelo médico durante uma consulta cerca de uma hora antes.
— Carreguei por anos isso comigo, contei somente para minha família. Tive crises de choro, depressão. A gente fica extremamente impotente. Não é fácil. Não consigo entender porque levou sete anos. Quantas pessoas poderiam ter sido evitadas nesse meio tempo? Eu, pelo menos, penso nisso. Ele foi abusando de outras pessoas — diz a mulher.
O caso de 2014 não é o primeiro registrado contra o médico. Antes dele, segundo o delegado César Nogueira, que investiga o médico desde setembro do ano passado, quando assumiu a DP local, houve outro em abril de 1999, mas o delito prescreveu sem que a investigação avançasse.
— O que chama atenção neste caso de 2014 é que ela saiu direto do consultório para a delegacia. Ela teve muita coragem — diz o delegado.
Ao longo dos últimos anos, a investigação passou por delegados titulares. Em julho de 2019, a delegada Walquiria Meder procurou uma das rádios locais, falou sobre a investigação em aberto e pediu que as vítimas do médico buscassem a delegacia. Duas vítimas tinham feito registros recentemente, em junho daquele ano. Uma quarta registrou o fato em 12 de julho de 2019. Elas afirmaram ter sido vítimas em 2012, 2014, 2016 e 2017 — duas delas em dois momentos.
— Ainda estávamos investigando, então não podíamos citar o nome dele, mas eu tinha certeza que havia mais vítimas (o médico investigado na época foi citado de forma genérica). Por isso, fiz esse pedido para que elas denunciassem. Tinha já na época convicção de que era uma prática reiterada porque resgatamos mais uma ou duas ocorrências bem mais antigas — recorda.
A delegada saiu direto da rádio para atender um caso de um irmão que havia assassinado a irmã, cadeirante, a tiros.
— Casualmente, minutos depois da minha fala, teve esse crime de grande repercussão na cidade. O meu pedido ficou abafado. Ainda não estava pronto para remeter o inquérito, tinha que fazer diligências. Acabei saindo de lá e ficou pendente, não sei por quanto tempo, o andamento — explica.
Quando chegou em Canguçu no ano passado, Nogueira deu continuidade à investigação e concluiu pelo indiciamento do médico. O fato de serem quatro mulheres relatando as mesmas cenas, o mesmo modo de agir, pesou na investigação.
— Essa unicidade de depoimentos, nas declarações, é o elemento probatório mais robusto. Nesse tipo de crime, de violência sexual, violência doméstica, crimes praticados na intimidade do lar ou do consultório médico, a palavra da vítima precisa ter e têm um valor probatório maior. E é isso que temos. É a palavra da vítima, só que não é só uma vítima, são muitas vítimas — afirma o delegado.
O ginecologista foi indiciado pela Polícia Civil e denunciado pelo Ministério Público (MP) neste ano. Depois da repercussão do caso na cidade, mais mulheres começaram a relatar supostos abusos. Até esta sexta-feira (4), pelo menos 16 registros já tinham sido realizados.
A ex-paciente diz que espera que o médico não volte a atender mais mulheres. Ela relata que, nos últimos anos, tinha conseguido deixar as imagens para trás, mas com a repercussão do caso tudo voltou à tona.
— Muitas vezes me perguntava: será que eu fiz a coisa certa? Hoje, tenho uma filha adolescente, então me sinto aliviada por saber que ela nunca vai cair na mão desse homem, mas, ao mesmo tempo, é muito difícil. Estou há noites sem dormir, comecei a reviver tudo. Quando eu durmo, eu ainda sonho com as cenas, com o médico. É uma coisa que não tem como esquecer — afirma.
Outros relatos
GZH ouviu outras mulheres que também contam terem sido abusadas pelo mesmo médico. Elas descrevem cenas semelhantes, que teriam acontecido tanto na clínica particular na área central da cidade quanto no Hospital de Caridade de Canguçu, onde atendia para a prefeitura. Por determinação da Justiça, ele está afastado da casa de saúde e a partir deste sábado (5) não pode mais realizar atendimentos particulares, enquanto responder ao processo. O pedido de prisão do médico foi negado.
Jovem de 21 anos afirma ter sido abusada em junho de 2020
"Ele aproveita da vulnerabilidade das mulheres, que se encontram num momento difícil. Cheguei no hospital com contrações. Mas não estava dilatando. Ele disse que precisava fazer o exame de toque. Mas começou a me massagear, da forma errada. Vi que aquilo ali não estava certo. Me disse que, no momento da masturbação, as contrações vêm em ritmo mais acelerado. Achei estranho, mas não relatei. Pedi para chamar minha mãe. E ele disse que não, não poderia minha mãe entrar. Nisso, me fez exame de toque muito a fundo, acabou machucando minha placenta e deixando com sangramento. Tinha muito medo de ele fazer com outras pessoas. E angústia de ter que segurar aquilo, não falar por vergonha, por achar que podem te julgar. A gente nunca sabe o pensamento dos outros."
Mulher de 43 anos diz ter sido abusada em 2017
"Não tinha notado nem que ele estava sem luva. Estranhei que mandou tirar toda a roupa e não mandou colocar camisola. Aquela maca na sala dele me chamou atenção, do lado da mesa dele. Sendo que a cadeira ginecológica mesmo ficava na outra sala. Quando ele faz o exame da cadeira, a secretária está junto, é normal. Ele disse: então tu fica bem relaxada, que vou fazer um exame de toque, tu precisa te lubrificar para a gente ver se não tem nenhum fungo. A gente confia. E dali ele começou a alisar, com a mão direita fazendo o toque, e com a outra mão ele me alisava demais, fazendo carícias, ele não estava me examinando. Estava me acariciando. Percebi que ele ficou no clitóris, masturbação, agora eu já não me sinto mais envergonhada de falar isso, já me senti muito. Ele dizia assim para mim: relaxa, tu está com o corpo duro. Eu comecei a insistir se já tinha terminado. Quando ele se afastou, olhei para a mão e vi que estava sem luva. Ele vai, lava as mãos e até hoje eu sinto o cheiro do sabonete. Voltou e sentou na minha frente, como se nada tivesse acontecido."
Mulher de 44 anos conta ter sido vítima em 2014
"Ele me mandou deitar na maca, toda despida, sem camisola, sem nada. Deitei, começou a me examinar, sem luva. Conversando comigo, puxando outros assuntos. Comecei a notar que aquele exame estava demorando demais. Até que ele disse: tu tem que sentir orgasmo. Quando ele disse, arregalei os olhos e tive vontade de sair correndo dali, não podia olhar para ele. Quando ele viu, que me constrangi, tirou a mão, notei que estava sem luva. Foi lavar as mãos na pia. Enquanto isso, me vesti. Sentou na mesa, conversando normal. Qual mulher que iria denunciar se não tivesse mesmo acontecido? Não ia mexer com um médico grande. Nós nem nos conhecíamos. O que influenciou foi a história do João de Deus. Se uma não começar, quantos outros casos devem ter. Então vamos fazer a nossa parte e ver no que dá."
Como denunciar
O contato com a Polícia Civil sobre este caso do ginecologista deve ser feito pelo telefone fixo da delegacia (53 3252-7876) ou pelo celular funcional do delegado (53 98424-2253, inclusive por WhatsApp).
Outros casos de violência contra a mulher podem ser comunicados por meio da Delegacia Online, nas delegacias especializadas ou diretamente na delegacia mais próxima.
O que diz a defesa do médico
Quando foi ouvido pela polícia, o médico negou as acusações. Em relação aos novos registros, ele ainda precisará ser ouvido pela polícia, mas não há data para esse depoimento. GZH entrou em contato com o advogado Gustavo Goularte, que afirmou que mantém a manifestação encaminhada na semana passada. Na nota, o advogado afirma a inocência do cliente e diz que já ingressou com recurso.
Confira a nota na íntegra:
"As acusações são bem graves. Não existe prova da ocorrência. A defesa que foi apresentada nesta quarta-feira, no processo, já traz em caráter preliminar fortes elementos da inocência do nosso cliente. Os fatos são inexistentes. Uma das exigências do doutor Cairo é que o processo tramite o mais rápido possível para que a verdade se estabeleça."