Duas jovens do Rio Grande do Sul estão entre as que relatam ter sido vítimas de um suposto esquema de aliciamento e estupro de mulheres pelo qual o milionário Saul Klein, de São Paulo, é investigado. O caso é apurado pela Delegacia da Mulher de Barueri, município onde mulheres de diversos Estados frequentavam condomínio de luxo. Ao menos 32 alegam que foram exploradas e violentadas — o empresário nega.
Cinco anos após a filha viajar a São Paulo para avaliar uma proposta de trabalho como modelo, uma gaúcha convive com os traumas do suposto esquema. Por duas vezes, a jovem tentou o suicídio e segue em tratamento médico. Juliana (nome fictício), uma modelo de classe média, sempre despertou a atenção pela beleza e chegou a ganhar concursos na área. A mãe acredita que o contato foi feito pelas redes sociais — a jovem hoje com 18 anos nunca quis dizer quem a levou até Barueri pela primeira vez.
Após ir ao que dizia ser uma feira de calçados, Juliana passou a viajar semanalmente, alegando o mesmo motivo. Os períodos longe de casa aumentaram e ela passou a demonstrar irritação, além de crises de choro. No primeiro surto, ameaçou se matar e foi internada. Aos poucos, começou a contar o que acontecia nas viagens.
— Não são prostitutas. Ele se apropriou, entrou na vida e na cabeça delas, sabendo que eram psicologicamente frágeis. Ela me dizia: "Não quero mal dele. Ele acha que estamos lá por amor". Esse é o perfil das adolescentes que eles aliciavam. Elas ficaram presas naquela manipulação. Era perverso — diz a mãe.
Era comum, segundo a mãe, que a filha oscilasse momentos em que defendia Klein e nos quais relatava violências e humilhações. Ela nega que a filha tenha ingressado no esquema como sugar baby - versão apresentada pela defesa do empresário de que ele agia como sugar daddy (termo que define um homem que sustenta jovens financeiramente, em troca de favores sexuais e companhia). A jovem relatou que, além de mentir para a família, era treinada para assumir espécie de personagem. No período em que estava no condomínio, deveria mentir a profissão dos pais, a origem e algumas vezes até o nome. Juliana, conforme a mãe, desenvolveu anorexia e submetia-se a tratamentos como aplicação de botox. Até que passou pela segunda tentativa de suicídio, ainda mais grave.
— Os presentes dele eram roupas, sapatos, bonecas, bichos de pelúcia. Ele mexia nessa parte infantil delas. Isso que acho muito cruel. Ele agora se defende com a figura do sugar daddy. Mas está longe disso. É muito triste ver um filho teu se desmanchar. Não sei o que vai ser do futuro dela. Isso arrebentou com a vida dela e da família inteira. Era uma menina, cheia de sonhos. Hoje não consegue se sentir confortável em lugar nenhum na vida. É um dano existencial muito grande — diz a mãe.
Grupo de mulheres
O projeto Justiceiras — que dá suporte a mulheres que tenham sofrido violências — foi responsável por ouvir as mulheres, que passaram a buscar ajuda desde setembro do ano passado. Quatorze procuraram o projeto, alegando terem sido vítimas de Klein após serem chamadas para trabalhar como modelos. Elas passaram a receber assistência e foram ouvidas pelo MP. A Justiça determinou em novembro que o passaporte do empresário fosse apreendido e decretou outras medidas, como a proibição de que ele se aproximasse das vítimas.
No fim do ano, o caso foi revelado pelo jornal Folha de S. Paulo. Na sequência, mais 18 jovens buscaram o grupo. Foi aberto inquérito na Delegacia da Mulher de Barueri e até o momento pelo menos 10 já prestaram depoimento. O inquérito do caso segue em andamento. Em função do segredo de justiça, a Polícia Civil de São Paulo não informou se o empresário já foi ouvido.
Em 24 de fevereiro, a 2ª Vara Criminal de Barueri revogou as medidas cautelares de todas, ao considerar os argumentos da defesa de que Klein seria um sugar daddy. A defesa do empresário afirma que ele contratava empresa para agenciar as modelos e que ele é vítima de um esquema de extorsão.
A advogada Gabriela Souza, de Porto Alegre, que representa as vítimas, nega que a relação se desse desta forma e recorre da decisão. As jovens afirmam que tudo fazia parte de um esquema, onde eram submetidas a humilhações e violências. Em setembro passado, uma dessas modelos, também do RS, cometeu suicídio.
— As vítimas nunca foram sugar babies e Saul Klein não é sugar daddy. Ele se coloca como vítima de um grande complô de mulheres interesseiras. Tinha um staff para cometer crimes. E pessoas muito bem pagas para ficar em silêncio. Esse silêncio culminou na violência sexual sem tamanho que essas mulheres sofreram. O Judiciário coloca em dúvida a palavra de 32 vítimas e não protege a vítima, e sim o agressor. O Estado brasileiro tem o dever de proteger, para que não aconteçam casos em que a palavra da vítima não vale nada — diz a advogada.
As jovens descrevem uma rede no entorno do empresário que aliciaria as modelos: envio de passagens, transporte até o condomínio e realização os pagamentos semanais, de até R$ 4 mil. No período em que estavam na mansão, as modelos afirmam que passavam por controle de peso, tinham de se submeter a intervenções estéticas e mantinham relações sexuais, sem preservativo. Luciana Terra Villar, diretora jurídica do Me Too (movimento que incentiva vítimas de assédio e abuso sexual a denunciarem casos) no Brasil e liderança do projeto Justiceiras afirma que as mulheres que buscavam ajuda relatavam diversas enfermidades derivadas dos supostos abusos.
— As histórias que elas contam são muito pesadas, fortes. As vítimas foram questionadas e ainda estão sendo sobre por que voltavam depois de tantos abusos? Nós conseguimos perceber que essa volta era mais por sobrevivência dessas vítimas que dependiam da questão financeira e também emocional, considerando um ciclo de violência e um relacionamento abusivo. Havia violência psicológica, sexual e física. Não há justificava para nenhum tipo de violência sofrida. Temos vítimas de 10 anos atrás, assim como de um ano atrás. Muitas agora com a denúncia estão conseguindo falar — afirma.
Luciana relata que foram feitos relatórios a partir do atendimento das mulheres por psicólogos, advogados e médicos. O caso foi encaminhado à Ouvidoria da Mulher do Conselho Nacional do MP, que encaminhou o conteúdo ao MP de São Paulo. Luciana diz que as vítimas tinham perfil predeterminado, com vulnerabilidades, por questões sociais ou mesmo emocionais. Elas seriam contatadas a primeira vez pelas redes sociais, por panfletagens ou na porta de escolas. Na sequência, participavam de um teste com o empresário e depois eram chamadas para os eventos no condomínio.
A defesa não nega que Klein tinha relações com as mulheres, em festas e eventos realizados em suas propriedades, mas alega que era consensual. Em geral, cerca de 15 mulheres permaneciam na residência de Klein por quatro dias. Outras, consideradas preferidas, ficavam no local a semana inteira. Uma vez por mês, iam para outro local, uma espécie de sítio que era conhecido como spa, onde chegavam a se reunir 30 a 40 mulheres.
O que diz a defesa do empresário
O advogado André Boiani e Azevedo, responsável pela defesa de Saul Klein encaminhou nota à reportagem, onde nega que as relações não fossem consentidas. O criminalista afirma que o cliente é “vítima de um grupo organizado que se uniu com o único objetivo de enriquecer ilicitamente às custas dele”. Sobre a presença de seguranças armados na propriedade, afirma que eram profissionais que atuavam na área externa dos imóveis, sem intimidar quem quer que fosse. Confira a nota na íntegra:
“No final da tarde do dia 3/12/20 o Sr. Saul Klein tomou conhecimento de que algumas mulheres procuraram o Ministério Público e fizeram absurdas acusações contra ele.
A verdade é que o Sr. Saul Klein se encontra, mais uma vez, na posição de vítima de falsas e criminosas acusações. Precedentes tentativas frustradas de várias das “denunciantes” nas áreas cível e trabalhista comprovam a farsa ora em marcha, que muito impacta a integridade moral e o prestígio social dele.
Iniciativa semelhante já foi devidamente desqualificada e arquivada, a pedido do Ministério Público, após ampla investigação da Polícia Civil. A sobreposição de mentiras e especulações não prosperou em ambiente que preserva a realidade dos fatos, o que novamente acontecerá.
É bom que se saliente: o Sr. Saul Klein jamais manteve relações sexuais não consentidas. Ele também nunca admitiu a presença de menores de idade em seus eventos, tendo sempre sido esse tema pauta de sua agenda de responsabilidade como anfitrião. Seus seguranças eram todos funcionários de empresa especializada que simplesmente garantiam a tranquilidade de todos, atuando na área externa dos imóveis. Eles jamais intimidaram quem quer que fosse.
O Sr. Saul Klein vem sendo vítima de um grupo organizado que se uniu com o único objetivo de enriquecer ilicitamente às custas dele, através da realização de ameaças e da apresentação de acusações falsas em âmbito judicial, policial e midiático. Várias dessas pessoas já conseguiram se aproveitar dele em outras oportunidades, causando-lhe prejuízo milionário, e estavam acostumadas a essa situação. Quando perceberam que esse tempo acabou, passaram a difamá-lo publicamente. Ele sente profunda indignação diante desse quadro, mas se defenderá com toda a tranquilidade, pois tem absoluta confiança na Polícia, no Ministério Público e no Poder Judiciário, que já atestaram sua inocência em investigação anterior e certamente o inocentarão mais uma vez.”
Justiceiras
O projeto foi criado em meio à preocupação com o aumento dos casos de violência doméstica durante o distanciamento social. É uma força-tarefa, com mais de 2 mil voluntários, que oferece atendimento e orientação jurídica, psicológica, socioassistencial e médica para mulheres vítimas de violência doméstica em todo o país. Foi idealizado pela promotora de Justiça de São Paulo Gabriela Manssur, do Instituto Justiça de Saia, em parceria com a advogada Anne Wilians, do Instituto Nelson Wilians e João Santos, do Bem Querer Mulher. O contato pode ser feito pelo WhatsApp (11) 99639-1212 ou pelo site.
O suspeito
Saul Klein é membro da família Klein, fundadora das Casas Bahia. No ano de 2010, a rede foi adquirida pela empresa Via Varejo. Em nota, a Via Varejo informou que o empresário nunca possuiu qualquer vínculo ou relacionamento com a companhia.
Onde mulheres podem pedir ajuda no RS
- WhatsApp Polícia Civil: (51) 98444.0606
- Emergências: 190 (Brigada Militar)
- Disque-Denúncia: 181
- Denúncia Digital 181: ssp.rs.gov.br/denuncia-digital
- Delegacia Online: delegaciaonline.rs.gov.br
Delegacia da Mulher de Porto Alegre
- Endereço - Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias.
- Telefone - (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências)