Exausto de ouvir ofensas de uma familiar sobre as filhas, pelo fato de serem negras, um morador da zona sul de Porto Alegre decidiu procurar a polícia em fevereiro deste ano. O caso dele é um dos que passou a ser apurado pela Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância (DPCI) — inaugurada em 10 de dezembro na Capital.
Nesses primeiros quatro meses, 169 casos passaram a ser investigados pela unidade. Os dados apontam que mais da metade das ocorrências envolve justamente o preconceito ou discriminação relacionado à cor.
— Isso vinha de muito tempo, há anos. Ofendia minhas filhas, dizia coisas que magoava. Como pai, tinha que defender minhas filhas. Não suportei mais essa humilhação. As pessoas precisam entender que não podem fazer isso. Por isso, fui até a delegacia e registrei — conta o homem, de 48 anos, que pediu para não ser identificado na reportagem.
No momento em que foi relatar o caso na delegacia, entregou também as mensagens e áudios enviados pela familiar com ofensas às três filhas adolescentes. Nas mensagens, palavras pejorativas e racistas eram usadas para se referir à cor das meninas.
Preservar as provas é uma das orientações dadas pela Polícia Civil para esse tipo de caso. Isso porque, em geral, são crimes que não deixam vestígios. Mas mensagens de texto, áudios e prints da internet podem servir como embasamento para a investigação. O caso foi remetido ao Judiciário pela delegacia como injúria discriminatória.
— Só tenho a agradecer e elogiar as forças policiais, pela competência e agilidade. Espero que continue assim e que as pessoas lutem pelos seus direitos. Não só dos seus filhos, como no meu caso, mas de qualquer familiar ou seu mesmo —diz o pai.
Das 169 ocorrências, em pelo menos 94 ficou evidenciado que o crime foi motivado pelo preconceito de cor — 55% do total. No racismo, de 13 ocorrências, oito foram em relação à cor da vítima — o racismo também pode ser por questões religiosas ou étnicas, por exemplo.
O delito com maior número de apurações na nova DP é a injúria discriminatória. Foram 111 ocorrências e, dessas, em 86, ou seja 77%, a motivação está vinculada à cor da vítima. Mas também há outras formas de injúria, como a que ofende a religião, orientação sexual ou mesmo deficiência.
— A injúria discriminatória ofende a pessoa de maneira individual. Enquanto o racismo atinge a coletividade. Por exemplo, uma pessoa no trabalho xinga um colega. Acontece bastante nessa relação entre colegas ou vizinhos. Isso é injúria discriminatória. E o racismo é quando essa ofensa ultrapassa a questão individual. Como, por exemplo, a proibição de que negros entre num elevador ou pagar salário menor para funcionário negro —explica Andrea Mattos, titular da DPCI.
A delegada acredita que esse número maior de registros relacionados às questões raciais pode estar relacionando, por exemplo, ao fato de que o tema tem sido bastante debatido, inclusive em programas de televisão, como o Big Brother Brasil. Isso, em seu entendimento, encoraja às vítimas e faz com que as pessoas entendam que há crime nesse tipo de comportamento.
— Outro fator que chama a atenção é que grande parte das ofensas vem pela internet. Seja pelas redes sociais ou WhatsApp. É importante que, nesses casos, além do print, a pessoa nos traga a URL da página (endereço) ou do perfil da pessoa que fez a publicação. É importante também que se faça o registro antes de qualquer manifestação nas mídias, para que a pessoa não apague a publicação —orienta.
No trabalho
A questão racial não é a única que motiva as ocorrências por discriminação, embora, por vezes, os temas estejam interligados, como no caso da intolerância religiosa. Foi o caso de uma das vítimas, de 38 anos, que buscou a delegacia após ouvir ofensas de uma colega em Porto Alegre, no fim do ano passado, sobre sua religião de matriz africana.
—Me senti constrangida, acuada. Não sabia o que fazer, o que dizer para a pessoa. Como me defender. Comecei a pesquisar, foi aí que descobri a delegacia. Fui super bem atendida. Às vezes, por necessidade, a gente prefere se calar, até para não se incomodar.E se ouve muito que não vai dar em nada. No meu caso, tentaram me calar. Sabia que tinha até risco de perder meu emprego. Mas segui. Espero que as pessoas entendam que devem sim procurar seus direitos —afirma.
O trabalho, assim como o ambiente familiar, está entre os locais onde mais acontecem esses crimes na Capital. Das ocorrências registradas, metade teve esses ambientes como cenário.
Em 28% dos casos o fato aconteceu entre vizinhos, 17% entre familiares, amigos ou ex-companheiros, 16% no trabalho (colegas ou chefes) e em 25% não havia relação entre a vítima e o investigado. Os demais episódios ainda estão em análise. Em 86% dos casos, a autoria é conhecida.
— Um dos casos que chamou atenção aconteceu em um ônibus. O investigado confessou e se mostrou surpreso pelo fato de que conseguimos chegar até ele. A vítima nos trouxe o trajeto do coletivo, uma gravação, e com isso fomos atrás e conseguimos identificar a pessoa. Ele disse que estava num dia ruim. Muitos se arrependem ou dizem que não sabiam que era crime. Tentam se justificar, dizem que estavam em um dia difícil e que nunca mais vão fazer —relata a delegada.
Registro pela internet
O levantamento sobre os primeiros quatro meses da delegacia traz ainda outras análises. Uma delas é o perfil das vítimas que buscaram a DPCI, que em sua maioria são mulheres (61%) e pessoas com idade entre 21 e 40 anos (60%).
Outro dado que chama a atenção é que a internet não é somente um ambiente propício para que esse tipo de crime aconteça, mas também serve para facilitar a comunicação dos casos. Foram 72 ocorrências registradas dessa forma, 41 direto na delegacia especializada e o restante em outras delegacias da Capital.
—É importante que as pessoas ao registrarem tentem colocar o máximo de informações possíveis. Algumas ocorrências chegam sem o nome do suspeito, por exemplo, ou com poucos detalhes. Quanto mais informações tiver para a investigação melhor — explica a delegada.
Orientação sexual
Foi justamente por meio da Delegacia Online que um homem transexual de 28 anos procurou a polícia para relatar um caso em janeiro deste ano. Após ir com a companheira fazer compras em um supermercado na zona sul da Capital, conta que foi constrangido no meio dos outros clientes por um dos seguranças do estabelecimento.
—Comprei uma caixa de som e depois fomos no súper. Na entrada, não nos questionaram nada. Minha companheira pegou o carrinho e colocou a sacola dentro. Fizemos as compras e quando estávamos descendo a rampa, saindo do mercado, o segurança veio correndo e me puxou. Gritou comigo, me ofendeu pela minha orientação sexual e disse que queria a nota. Um escândalo. As pessoas na nossa volta, olhando, uma humilhação — relata.
O casal ainda precisou retornar para dentro do mercado para mostrar a nota do eletrônico, que estava na sacola. Revoltado com o episódio, decidiu procurar a polícia. A investigação por injúria discriminatória por orientação sexual está em andamento.
—Foi muito constrangedor. Estou em tratamento para depressão porque sofri muito preconceito na loja onde trabalho. As palavras doem. As humilhações, a forma como acham que a gente é um monstro. Até então, não sabia que existia essa delegacia. Eles que entraram em contato comigo depois que fiz o registro online. Acho muito importante —diz.
Casos como esse ainda são minoria entre os registros que chegam à nova delegacia. A delegada Andrea diz que o número de casos envolvendo orientação sexual ou homofobia ainda estão abaixo do que era esperado. A policial acredita que possa haver subnotificação dos crimes. Por isso, pretende fazer aproximação por meio de conversas com representantes LGBTs para tentar ampliar a divulgação do serviço.
A delegacia
O que investiga?
- Crimes que resultam de discriminação ou preconceito.
Quem é atendido?
- Vítimas de discriminação ou de preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, orientação sexual, identidade de gênero ou em razão de deficiência.
Onde fica?
- Na Avenida Presidente Franklin Roosevelt, nº 981, no bairro São Geraldo, na zona norte de Porto Alegre.
É preciso ir até a delegacia?
- O registro pode ser feito em qualquer delegacia, mas se o caso aconteceu em Porto Alegre será encaminhada para a DPCI.