Enquanto era agredida e ofendida, uma transexual de 18 anos avisou que chamaria a polícia e que aquilo se tratava de um crime. Segundo o relato da jovem, o familiar respondeu que isso não daria em nada e que ela nunca seria uma mulher. Michele* não se intimidou e procurou a Polícia Civil no mesmo dia. No fim desta semana, o caso dela se tornou o primeiro inquérito por transfobia remetido ao Judiciário pela Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância, inaugurada no início no mês de dezembro em Porto Alegre.
— Senti uma diferença enorme. Eu me senti ouvida na delegacia. As travestis e meninas trans muitas vezes se sentem excluídas, deixadas de lado. Lidamos com o preconceito o tempo todo. Mesmo quando buscamos a polícia, isso muitas vezes acontece, até por falta de preparo. É um projeto muito importante, que deveria ter em outras cidades e Estados (Minas Gerais , Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí e Paraíba, além do Distrito Federal já possuem) — avalia a auxiliar administrativa.
O caso que levou Michele a buscar ajuda da polícia aconteceu no início do ano na zona leste da Capital. Ao tentar intervir em uma briga, foi ofendida pelo tio por ser transexual e agredida com um soco no rosto. Unhas também foram quebradas e arrancadas no momento em que tentou se defender das agressões com uma barra de ferro. O familiar foi indiciado por transfobia e lesão corporal leve.
— Na minha família todos sabem que sou menina trans. Ninguém interfere. Tenho meu trabalho, compro minhas coisas, não dependo de ninguém. Mas ele sempre foi preconceituoso. E, assim que pararam as agressões, começaram os xingamentos machistas e preconceituosos. Quando disse que iria na polícia, ele respondeu que transfobia não existe — diz a jovem.
Michele conta que chegou a acionar a Brigada Militar, que esteve no local, mas o caso teria sido tratado como briga familiar. Depois disso, ela decidiu ir até a Polícia Civil, onde foi orientada a buscar a delegacia especializada. A partir daí, os envolvidos foram ouvidos e a investigação finalizada nesta semana e remetida ao Judiciário.
Investigação
O caso da jovem é o quinto remetido pela delegacia para o Judiciário. Segundo a polícia, a vítima foi submetida a exame de lesão corporal e o familiar foi ouvido, assim como outras testemunhas.
— É o primeiro caso de transfobia que estamos remetendo. Ele fez piadas sobre gênero e se referia a ela como uma pessoa do sexo masculino e não como uma mulher, que é como ela se sente fisicamente. Isso é uma ofensa, é transfobia, por não aceitar que a pessoa se enxerga de outra forma. Essa foi a primeira vez que houve agressão, mas ele já manifestava o preconceito. Hoje é o Dia da Visibilidade Trans, é um dia emblemático. Acho que o fato de uma investigação chegar ao fim, resulta num empoderamento das vítimas — afirma a delegada Andrea Mattos, titular da DP.
Fazer com que as vítimas saibam que devem denunciar os casos e procurem a polícia é um dos desafios de quem atua no combate a esse tipo de crime. A delegada explica que a transfobia pode se manifestar por meio da violência física, moral ou mesmo psicológica.
— Nem sempre se manifestará pela fala. Citando a decisão do Supremo (Tribunal Federal), a transfobia e homofobia constituem uma espécie de gênero de racismo. É uma ideologia que prega a inferioridade de um grupo e superioridade de outro. Pode se manifestar ao impedir ou recusar o acesso de alguém a um estabelecimento, negar inscrição em estabelecimento de ensino. Existe uma subnotificação, em cenário nacional, que evidencia a marginalização dessas vítimas. Quanto mais houver conhecimento de que é crime, de que se deve denunciar, fortaleceremos a rede como um todo — avalia.
Até o momento, a delegacia tem cerca de 40 casos em andamento, com inquéritos instaurados. Os casos envolvendo preconceito racial são os que mais chegam ao conhecimento do órgão. O primeiro inquérito concluído foi, inclusive, uma injúria discriminatória racial. Em segundo lugar, está o preconceito em razão de orientação sexual.
Com cerca de 40 mil seguidores nas redes sociais, Michele agora está usando a internet como forma de divulgar a atuação da Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância:
— Na internet, muitas vezes sou alvo de preconceitos. Pessoas preconceituosas me escrevem para dizer “nunca vai ser mulher, é homem”. Citam biologia, religião. Os argumentos são sempre os mesmos. Muitas travestis e meninas trans não são ouvidas pela sociedade. A palavra travesti já é criminalizada, quando se fala, pensam em prostituição. Essa é a visão que a sociedade deu. Muitos sofrem agressão, mas pelo fato de a sociedade ser preconceituosa, acabam se calando. Estou divulgando o trabalho deles, para que as pessoas busquem ajuda.
Contraponto
Segundo a Polícia Civil, em depoimento o suspeito negou as acusações e afirmou que não sabia que a familiar é transexual. Nesta fase do caso, ele não apresentou advogado.
* O nome usado é fictício, para preservar a identidade da vítima.
Campanha contra a transfobia
Nesta sexta-feira (29), Dia da Visibilidade Trans, a Polícia Civil divulgou uma cartilha com informações sobre a transfobia. Numa linguagem acessível, o conteúdo traz informações como a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero, as definições de travesti e transexual, além de frases preconceituosas para tirar do seu vocabulário e dicas de filmes e livros para entender melhor sobre o tema. Acesse aqui a cartilha.
Confira algumas dicas:
- Orientação sexual indica como uma pessoa se sente atraída, seja física, romântica e/ou emocionalmente, podendo ser, por exemplo, heterossexual, homossexual, bissexual ou mesmo assexual
- Identidade de gênero se refere ao gênero com que alguém se identifica. Quando nascemos somos identificados como homem ou mulher, mas, durante o crescimento, a pessoa pode não se adequar ao gênero designado no nascimento e sentir a necessidade de se adaptar a sua verdadeira identidade, são as pessoas transgêneros (travestis e transexuais)
- Travesti – pessoa que nasceu do sexo masculino, mas que, por ser reconhecer em uma identidade de gênero feminino, adota formas de expressão de gênero femininas e não necessariamente deseja mudar suas características biológicas
- Transexual – pessoa que não se identifica com o gênero designado quando nasceu e busca ou passa por uma transição social que pode incluir tratamentos hormonais ou cirúrgicos a fim de se assemelhar com sua identidade de gênero
Como denunciar
É possível registrar o caso em qualquer Delegacia de Polícia com plantão ou pela Delegacia Online. Em Porto Alegre, de segunda a sexta-feira, o registro pode ser feito diretamente na Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância, do Departamento Estadual de Proteção aos Grupos Vulneráveis. A DP está localizada na avenida Presidente Franklin Roosevelt, 981, no bairro São Geraldo. O horário de atendimento é das 8h30mnin às 12h e das 13h30min às 18h. O telefone de contato da Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância é 51 98595-5034 .