Um soldado homem, branco e gaúcho, com Ensino Médio completo e católico, que leva até 30 minutos para se deslocar de casa para o quartel. Além disso, está satisfeito com o salário, pretende seguir na corporação, mas já se envolveu em confronto armado e foi ferido. Apesar de se sentir valorizado, esse militar está descontente com o plano de carreira. Este é o perfil da maioria dos quase 18 mil policiais militares revelado pelo primeiro e único censo entre as forças militares estaduais do país.
Mais do que um retrato meramente quantitativo, o trabalho divulgado nesta sexta-feira (18) busca mostrar que existe uma diversidade crescente entre os servidores. Tanto é que 16% foram vítimas de racismo no exercício da função. Por isso, o chamado censo brigadiano será usado para que se coloque em prática políticas públicas para melhorar o atendimento aos profissionais, visando também a qualificação do atendimento à população do Rio Grande do Sul.
— Ninguém pode se denominar comandante se não conhece a sua tropa — diz o comandante-geral da Brigada Militar (BM), coronel Rodrigo Mohr.
As palavras de Mohr resumem o trabalho que começou a ser desenvolvido a partir de julho pelo Departamento Administrativo da corporação. Com metodologia semelhante à do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e dividido em três etapas, mais de 240 PMs envolvidos no censo ouviram 17.952 pessoas entre 1º de setembro e 23 de outubro. Os dados foram analisados, e a primeira pesquisa desse tipo nos 183 anos da BM foi divulgada com a finalidade única de conhecer a tropa, diagnosticar o ambiente de trabalho e familiar, conhecer a valorização e as dificuldades enfrentadas. Um dos pilares da corporação é a qualificação interna em busca da qualificação externa.
— O bem estar do policial é o bem estar da sociedade gaúcha — afirma o vice-governador e secretário da Segurança Pública do Estado, Ranolfo Vieira Júnior.
Atualização do censo
O diretor administrativo interino, tenente-coronel Márcio de Azevedo Gonçalves, diz que a pesquisa surgiu de uma necessidade antiga entre os militares. Segundo ele, a próxima etapa será realizar a análise qualitativa — até 21 de abril do próximo ano — dos dados e relacionar com outras polícias e com a população em geral.
A ideia, além de fazer um futuro censo, tornando-o periódico, é realizar ações com o governo e parcerias privadas em busca da melhor valorização possível da tropa. Tanto é que o trabalho já indica duas propostas que o coronel Mohr pretende encaminhar ao Executivo. Uma delas é o plano de carreira de nível médio, já que 77% dos entrevistados disseram estar insatisfeitos em relação a isso. A outra é acertar todos os detalhes sobre moradia própria, como possíveis financiamentos habitacionais, bem como questões envolvendo viaturas e equipamentos em geral.
Perfil
— Os dados propiciam identificar quem somos em busca do aprimoramento — diz a coronel Cristine Rasbold, chefe do Estado-Maior.
A primeira mulher no alto escalão da BM diz ainda que, como representação do segmento feminino, identificar questões que permeiam as mulheres são fundamentais na consolidação de um referencial que vai completar 35 anos de existência. Mas o censo, segundo a coronel Cristine, é um marco ao revelar relações interpessoais e os anseios de todos.
Após 100% do efetivo ouvido pelos recenseadores, os dados mostram que a BM tem 84% de integrantes do sexo masculino (15.092), e 16%, do sexo feminino (2.860). Outros 44,82% têm nível médio escolar, e 32% possuem no mínimo um curso superior. O trabalho destaca que 6,4% dos brigadianos se deslocam por meio de transporte coletivo, e 8,8% a pé, sendo que 72% deles levam até 30 minutos da casa para o quartel.
BM de quase todos os Estados
Outro dado surpreendente é que a corporação tem integrantes de quase todas as unidades da federação: 25 Estados e Distrito Federal. Só não há policial de Roraima. Ao todo, 840 são de fora do Rio Grande do Sul, ou seja, 4,7%. Outros 95,3%, um total de 17.112, são gaúchos.
A maioria é soldado, são 12.385, seguidos de 1.814 2º sargentos. Um dado curioso é que há apenas 18 coronéis, o que também é motivo de insatisfação relacionado ao plano de carreira.
O presidente da Associação de Oficiais da BM, coronel Marcos Beck, ressalta justamente esta questão. Ele diz que o censo foi uma ótima iniciativa e espera que o governo tome as providências. Porém, Beck diz que o estudo mostra o óbvio também: existem vagas em aberto porque o quadro não está sendo reposto.
— Quem atua, atua sobrecarregado e precisa ter garantias de uma carreira na corporação. Já o efetivo, este precisa ser aumentado e com salário mais qualificado. Na década de 90 éramos sete milhões de pessoas em 185 municípios com cerca de 34 mil brigadianos. Hoje somos mais de 11 milhões de habitantes em 497 cidades e com um efetivo de menos de 18 mil integrantes — ressalta Beck.
O comandante-geral, coronel Mohr, diz que o censo é justamente para mostrar essas questões, sem receios. Segundo ele, o trabalho agora é proporcionar políticas públicas e projetos para sanar essas insatisfações e necessidades.
Diversidade de raças e credos
O censo mostra que 6% se declararam negros, 13,7% pardos e 0,1% — cada — amarelos e indígenas. Ao todo, 80,1% são brancos. Além disso, 16% da tropa foi vítima de racismo no trabalho, e 14%, durante o período de folga. Sobre religião, a maioria é católica, 56% do total. Outros 20% são evangélicos e 11% não têm religião. Ainda há 7% de espíritas, 3% de umbandistas e 1% de outras religiões. Além disso, 1% é ateísta.
Integrante do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Rio Grande do Sul (Codene), Ubirajara Carvalho, ressalta a importância de um trabalho técnico e científico na instituição, mas diz que as condições de trabalho e equipamento, atendimento médico e avaliação, são fundamentais para se ter um policial preparado para o futuro. Segundo ele, alguém que exerça grande responsabilidade na área de segurança e que saiba tratar da diversidade que existe no país.
— Precisamos de um policial do século 21, com o Estado dando atenção a esses trabalhadores, com reconhecimento da diversidade da tropa, mas também da sociedade — explica Carvalho, fazendo referência ao racismo estrutural na sociedade que precisa ser combatido.
Para ele, o policial que precisa dessa atenção é o mesmo que não pode diferenciar um cidadão do bairro Moinhos de Vento de outro da periferia.
Valorização
— O censo reforça nossas angústias no decorrer dos anos com insatisfação do pessoal, com plano de carreira que deve ser atualizado — enfatiza o presidente da Associação de Praças da BM, Aparício Santellano.
Se por um lado 77% pretendem seguir atuando na BM, 23% não querem. Reflexo disso é o que diz Santellano, já que 77% estão insatisfeitos com o atual plano de carreira. Deste percentual, 34% do efetivo se disse muito insatisfeito com a questão. Por isso, esse é um dos projetos prioritários do comando.
Ao todo, 67% da tropa têm menos de 15 anos de trabalho, e só 4% têm 35 anos ou mais. Parte dos praças, de acordo com Santellano, entra soldado e sai soldado. Ele ainda destaca que o salário deveria ser atualizado anualmente e que, independentemente do governo, quem paga o salário é a comunidade, e o policial também deve esta satisfação para a população, ou seja, atender bem a sociedade, mas com as necessidades garantidas.
Sobre a jornada de trabalho, 74,6% se dizem satisfeitos, e 54% estão contentes com o salário, sendo que 64% se sentem valorizados pelo comando.
Rotina de Trabalho
Apesar de satisfações e insatisfações, os brigadianos têm um trabalho de risco que é traduzido em números, não só em confrontos, mas que envolve injúrias e fatos ocorridos antes mesmo de chegar ao quartel, no deslocamento de casa para a corporação. Segundo o censo inédito, 28,9% foram agredidos física ou psicologicamente, e 33,5% foram vítimas de injúria, difamação e calúnia. Outros 34% foram ameaçados no serviço, e 5% durante as folgas, sendo que 15% tanto nas folgas quanto no trabalho.
Também 56,2% do efetivo já esteve envolvido com confrontos com criminosos, e 46,5% ficaram feridos. Traduzindo em números absolutos, são 8,3 mil pessoas feridas. Além disso, 40% já atenderam ocorrência no deslocamento, e 16% sofreram algum tipo de acidente.