No dia Dia da Consciência Negra, milhares de pessoas se reuniram em frente ao Carrefour do bairro Passo d’Areia, na zona norte de Porto Alegre. O ato marcou a reação ao assassinato de João Alberto Freitas, 40 anos, o Beto, homem negro morto espancado e asfixiado na noite anterior por seguranças do supermercado.
Ao longo de duas horas, o protesto foi pacífico, tomado por famílias, idosos e jovens. Mas, a partir das 19h, um grupo pequeno de manifestantes rompeu o portão, invadiu o estacionamento do hipermercado e deflagrou um confronto com a Brigada Militar (BM).
Os policiais, que esperavam os invasores de dentro do estacionamento, emitiram alerta com som de sirene e, após alguns minutos, reagiram com bombas de gás lacrimogêneo para dispersar a multidão. Famílias e idosos foram embora, e o protesto, com o cair da noite, adquiriu contornos violentos, apenas com a presença de jovens.
Uma loja da Avenida Plínio Brasil Milano teve duas vidraças quebradas com pedras e foi invadida. Um colchão queimava no meio da rua. Contêineres com lixo em chamas também estavam espalhados pela avenida. Por volta das 21h30min, os atos se encerraram.
Do confronto, pelo menos três pessoas chegaram feridas ao Hospital Cristo Redentor, segundo a assessoria de imprensa do Grupo Hospitalar Conceição: um com ferimento de bala de borracha, outro com pedrada na cabeça e um por respirar gás lacrimogêneo. Todos estavam fora de perigo.
Protestos pelo país
O assassinato de Freitas chocou o país, conclamou autoridades e governo a se posicionar e mexeu com o dia de milhões de brasileiros. #JustiçaPorBeto foi um dos temas mais comentados do Twitter na sexta-feira.
Houve protestos em diversas cidades pelo país. Em São Paulo, na região da Avenida Paulista, uma marcha teve o trajeto alterado para passar por um estabelecimento do Carrefour, onde houve invasão e depredação. Em Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro, Curitiba e Osasco (SP), unidades da empresa também foram alvo de encontro para atos. Nas redes sociais, usuários organizavam boicotes e registravam críticas e xingamentos contra a companhia.
A manifestação na capital gaúcha foi convocada pelas redes sociais para as 17h, em frente ao hipermercado onde Freitas foi morto. Desde o meio-dia, já havia pessoas com cartazes em frente ao hipermercado. Quando o dia estava claro, o clima era de revolta e tristeza com a morte, mas sem tumulto.
Questionamentos
A maioria das pessoas era negra, usava máscara e, em comum, relatou ter sido alvo de racismo. Grupos políticos e sindicatos faziam bandeiraços e discursavam em alto-falantes. Cartazes denunciavam o sofrimento de ser negro no Brasil:
“Nossas vidas não estão em oferta”, “E se ele fosse branco, estaria vivo?” e “Carrefour tem as mãos sujas de sangue”.
A dona de casa Regina Pacheco da Silva, 66 anos, foi sozinha, no meio da tarde, movida pela incredulidade e revolta:
– Estou aqui pela covardia que fizeram. Assassinos devem ser presos. Se é uma pessoa negra que entra no mercado, já ficam no teu pé.
Centenas de carros que passavam em frente ao hipermercado, pela Avenida Plínio Brasil Milano, buzinavam em apoio aos manifestantes. Comerciantes estenderam na rua faixas com frases como “Onde é que vamos parar?”.
A assistente de atendimento Mariana Ferreira, 32 anos, moradora próxima, foi com a filha de três anos e a mãe, a costureira Claudete Ferreira, 57, pela necessidade de demonstrar insatisfação.
— Meu marido é negro, meu irmão é negro. Poderia ser um deles. Estou com minha filha porque está tranquilo e quero que ela presencie – diz Mariana.
— Encheu o copo e a água transbordou. Não dá mais. Só é triste estar aqui no Dia da Consciência Negra – acrescentou Claudete.
A estudante Caroline Araújo, 32 anos, participou do ato porque sentiu “dor física” ao saber da morte do cliente do Carrefour.
— É muito ruim ver mais um corpo preto deitado no chão. Não é o primeiro e não será o último – lamentou ela.
Como foi o protesto à tarde
Manifestantes protestaram na tarde desta sexta-feira em frente ao hipermercado Carrefour no bairro Passo D’Areia, zona norte de Porto Alegre. Manifestantes paravam o trânsito e recebiam apoio dos motoristas que trafegam pela Avenida Plínio Brasil Milano.
Moradores da região colocaram velas e uma flor com um cartão: “Não te conhecia, mas sinto a sua dor". Foi neste hipermercado que João Alberto Freitas morreu após ser agredido por seguranças e um policial militar temporário fora do horário de trabalho.
— Chega de virar número, chega de virar estatística! Chega! Chega! A gente vai reagir se não vamos ser mortos, vamos ser dizimados! Não tem justificativa! — gritava um mulher em meio aos carros parados enquanto a sinaleira estava fechada.
Michele Schwingel, coordenadora de um bar, mora na esquina do hipermercado. Ela, a mãe e a irmã são clientes do Carrefour. Nesta sexta-feira, deixaram uma muda de kalanchoe e velas em frente ao local.
— Fizemos uma pequena homenagem para ele. Se fosse com um pessoa branca isso não teria acontecido — disse Michele.
Gleison Brum, 54 anos, funcionário público, ficou sabendo desde cedo da ocorrência. Veio com uma camiseta escrito “não consigo respirar”, em referência ao que foi dito pelo americano George Floyd antes de ser morto pela polícia.
— Nós precisamos reagir, mostrar que a nossa vida tem valor. Muita gente acha que não tem racismo, mas nós negros sabemos o que é isso — afirmou.
O que diz o Grupo Vector
Nota de esclarecimento
O Grupo Vector lamenta profundamente os fatos ocorridos na noite de 19/11/2020, no Carrefour de Porto Alegre, se sensibiliza com os familiares da vítima e não tolera nenhum tipo de violência, especialmente aquelas decorrentes de intolerância e discriminação.
Comunica que rescindiu por justa causa os contratos de trabalho dos colaboradores envolvidos na ocorrência. Não obstante, a empresa tomará as medidas cabíveis, estando à disposição das autoridades e colaborando com as investigações para apuração da verdade.
Para esclarecimento, informa também que a empresa não atuava na área de vigilância do supermercado, mas sim na fiscalização de prevenção e perdas.
Por fim, ressalta que o Grupo Vector, fundado em 1993 e com cerca de 2.000 funcionários, submete seus colaboradores a treinamento adequado inerente às suas atividades, especialmente quanto à prática do respeito às diversidades, dignidade humana, garantias legais, liberdade de pensamento, bem como à diversidade racial e étnica.
O que diz o Carrefour
"O Carrefour informa que adotará as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso. Também romperá o contrato com a empresa que responde pelos seguranças que cometeram a agressão. O funcionário que estava no comando da loja no momento do incidente será desligado. Em respeito à vítima, a loja será fechada. Entraremos em contato com a família do senhor João Alberto para dar o suporte necessário.
O Carrefour lamenta profundamente o caso. Ao tomar conhecimento deste inexplicável episódio, iniciamos uma rigorosa apuração interna e, imediatamente, tomamos as providências cabíveis para que os responsáveis sejam punidos legalmente.
Para nós, nenhum tipo de violência e intolerância é admissível, e não aceitamos que situações como estas aconteçam. Estamos profundamente consternados com tudo que aconteceu e acompanharemos os desdobramentos do caso, oferecendo todo suporte para as autoridades locais."
O que diz a Brigada Militar
Imediatamente após ter sido acionada para atendimento de ocorrência em supermercado da Capital, a Brigada Militar foi ao local e prendeu todos os envolvidos, inclusive o PM temporário, cuja conduta fora do horário de trabalho será avaliada com todos os rigores da lei.
Cabe destacar ainda que o PM Temporário não estava em serviço policial, uma vez que suas atribuições são restritas, conforme a legislação, à execução de serviços internos, atividades administrativas e videomonitoramento, e, ainda, mediante convênio ou instrumento congênere, guarda externa de estabelecimentos penais e de prédios públicos.
A Brigada Militar, como instituição dedicada à proteção e à segurança de toda a sociedade, reafirma seu compromisso com a defesa dos direitos e garantias fundamentais, e seu total repúdio a quaisquer atos de violência, discriminação e racismo, intoleráveis e incompatíveis com a doutrina, missão e valores que a Instituição pratica e exige de seus profissionais em tempo integral.