O caso envolvendo um entregador de aplicativo que disse ter se ferido após ser perseguido por um Voyage branco – investigado por outras perseguições a ciclistas em Porto Alegre – sofreu uma reviravolta. Segundo a Polícia Civil, em depoimento, ele confessou ter mentido sobre o caso e se acidentado sozinho. Um novo inquérito foi aberto para apurar a conduta de Cleiton Rangel, 21 anos. Ouvido por GZH, o rapaz admitiu a farsa, alegou que passa por problemas financeiros e não tinha como adquirir outra bicicleta para trabalhar após o episódio.
O caso é investigado também pela Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil, responsável pela apuração do caso do Voyage. Segundo o delegado Marco Antônio Duarte de Souza, a polícia estava trabalhando no episódio em busca de pistas do atropelamento que o rapaz alegava ter sofrido. Alguns detalhes no depoimento do entregador chamaram atenção porque tinham certa incongruência, como a velocidade e como teria caído.
— Havia esses pontos divergentes, mas a vítima pode apresentar uma percepção diferente da realidade, se confundir um pouco, em razão do trauma. Em razão da gravidade do fato, até por ter sido o único no qual havia resultado em lesão, com efetivo atropelamento, começamos a buscar mais elementos — detalha.
A polícia pediu, por exemplo, que o jovem entregasse o quadro da bicicleta, que havia teoricamente sido danificado no acidente. Mas, segundo o delegado, o rapaz apresentava certa resistência em fazer isso. Alegou inicialmente que havia ficado com um amigo para conserto — mesma versão dada em entrevista a GZH — e depois disse ter jogado fora. A situação começou a intensificar as suspeitas da polícia de que o episódio poderia não ser totalmente verdadeiro.
A equipe acabou localizando em um estabelecimento comercial próximo de onde o entregador afirmava ter sido atropelado uma imagem de câmera de segurança. Conforme o delegado, o vídeo apresentava baixa qualidade, e, por isso, passou por um processo de depuração. Quadro a quadro, os policiais foram analisando as semelhanças entre o caso do jovem e o vídeo.
— Era alguém com as mesmas características, de bicicleta, que caiu sozinho. Era uma coincidência absurda. Melhoramos um pouco a imagem, e começamos a ver os detalhes. Havia uma informação de um machucado no tornozelo esquerdo. Percebemos que a pessoa desse vídeo dava atenção a um tornozelo esquerdo, após a queda. Buscamos informações sobre as roupas que ele usava e o baú de entregas de comida. Tudo isso nos deu indícios robustos de que aquela imagem se tratava da nossa até então vítima _ descreve.
A partir dessas informações, o entregador foi chamado mais uma vez para prestar esclarecimentos sobre o caso, no fim da semana passada. Segundo o delegado, inicialmente ele manteve a versão de que havia sido perseguido pelo condutor de um Voyage branco. Mas, ao ser confrontado com as provas, confessou que a versão não era verdadeira. Assim, o jovem passou de vítima a investigado.
— Ele começou a chorar e resolveu admitir que efetivamente tinha criado uma história fantasiosa. Explicou que estava envergonhado, mas que naquele momento passava por problemas financeiros e tomou a decisão de inopino, para buscar alguma vantagem financeira, depois de ter visto a repercussão dos fatos do caso do Voyage — explica o delegado Souza.
“Fiz errado e peço perdão”
GZH entrou em contato novamente com o entregador por telefone. Ele admitiu que a história relatada não era verdadeira e alegou repetidas vezes que passa por problemas financeiros.
— Não me sinto orgulhoso do que eu fiz. Me sinto arrependido. Fiz errado e peço perdão. Mas eu não sou uma pessoa ruim. Estava trabalhando, não sabia o que fazer — disse.
O rapaz contou que teve a ideia de usar o fato do Voyage em razão da repercussão do caso e porque não tinha condições de adquirir uma nova bicicleta para trabalhar após o acidente.
— Ninguém gosta de mentir. Foi a questão financeira mesmo. Eu sou pobre, não tenho recursos, vi que poderia conseguir uma bicicleta. Essa moça acabou me doando e talvez ela até queira de volta agora. Não tinha condições, estou numa situação financeira muito difícil. Peço perdão — afirmou.
A mãe do jovem, Luciana Rangel, 48 anos, também entrou em contato por telefone com GZH. Ela disse que o filho está envergonhado do episódio e confirmou que a família passa por problemas financeiros.
— Estamos vivendo um momento muito complicado. A minha mãe faleceu recentemente. Isso nos desestruturou de certa forma. E o Cleiton estava trabalhando para nos ajudar. Ele não fez isso por mal. Está arrependido. É uma situação muito difícil. Foi um desespero para conseguir uma bicicleta e não ficar parado. Ele vai devolver a bicicleta, se a pessoa que fez a doação quiser de volta — disse a mãe.
Os crimes apurados
Conforme a polícia, o inquérito aberto investiga os crimes de estelionato (por conta do suposto objetivo de obter vantagem com o caso) e denunciação caluniosa. O segundo fato se dá por conta de que, no período em que o rapaz alegou ter sido atingido por um Voyage branco, em situação semelhante à dos demais ciclistas, já havia um condutor suspeito identificado e sob investigação.
— Ele se colocou como vítima do Voyage, que já tinha uma pessoa investigada e identificada. Colocou-se como vítima de uma pessoa específica. Ele tinha conhecimento do caso. Naquele ponto, o caso já tinha alguma repercussão. E ele obteve vantagem financeira no caso, com a doação da bicicleta. O estelionato é levar alguém a erro com intuito de obter vantagem indevida. Não depende da representação da vítima — diz o delegado.
A polícia pretende ainda finalizar a análise do vídeo do momento da queda e de outras provas, antes de finalizar o inquérito.
A investigação do Voyage
A investigação continua em andamento, agora apurando 10 episódios nos quais os ciclistas relatam ter sido perseguidos pelo mesmo motorista. O condutor de 44 anos teve a carteira nacional de habilitação apreendida, assim como o veículo. A polícia aguarda a finalização de uma perícia no Voyage, para então decidir por quais crimes o motorista deve ou não ser indiciado.
— O fato principal é que esse crime específico não pode ser atribuído ao motorista do Voyage. A polícia investiga a verdade. Não somos um órgão de acusação. Buscamos a verdade dos fatos. Fazemos uma análise apurada fato a fato. Nesse fato específico ele não era autor, era uma mentira. A declaração do entregador inclusive, naquele momento, gerou ainda mais insegurança no meio do pessoal que usa bicicleta. Sendo o motorista do Voyage uma pessoa conhecida, poderia até ter resultado em alguma represália — afirma o delegado Souza.