A psicóloga Denise Helena Escher recorda com afeto dos abraços que recebia de Bernardo Uglione Boldrini nos corredores da escola onde o menino estudava em Três Passos. O garoto se tornou vítima de um crime que marcou o Rio Grande do Sul, em abril de 2014. Foi assassinado, aos 11 anos, em uma trama que abalou o município do norte do RS. O pai, a madrasta e mais duas pessoas acabaram condenados pela morte da criança, em março do ano passado.
Nos últimos dias a comunidade tem, de certa forma, revivido os momentos traumáticos enfrentados há seis anos. A cerca de 120 quilômetros dali, assim como Bê, o menino Rafael Mateus Winques, de mesma idade, o Rafinha, também sumiu de casa em Planalto. Na segunda-feira (25), a confissão da mãe à polícia revelou que o corpo da criança estava escondido a poucos metros da casa da família. Bê foi encontrado morto enterrado em cova rasa no município de Frederico Westphalen - a cerca de 40 quilômetros de Planalto.
A mãe de Rafael diz que o garoto estava agitado e, por isso, deu a ele dois comprimidos de Diazepam. Alega que isso causou sua morte e ela decidiu esconder o corpo. A madrasta de Bernardo, Graciele Ugulini, afirmou também ter medicado o enteado e provocado a morte sem intenção. Os dois casos chegaram à polícia como desaparecimentos, mas os investigadores descobriram os crimes.
Assim como aconteceu com o Caso Bernardo, a comunidade fr Planalto está estarrecida com a morte da criança. Como psicóloga na escola onde Bê estudava, Denise acompanhou os impactos que o trauma da perda da criança, de forma brutal, causou nos coleguinhas e na comunidade. Ela diz que o caso de Rafael trouxe à tona as lembranças e pede, com a experiência de quem passou por isso, que Planalto busque, mesmo em meio ao luto, encontrar formas de lidar com sentimentos como culpa, dor e a revolta.
— Não podemos responder uma violência dessas com mais violência. Isso não vai mudar o fato em si. Temos de responder com união e justiça. As nossas crianças precisam perceber que somos adultos, responsáveis e pessoas equilibradas. Nesse momento, o ódio não é bem-vindo. A união e o amor o próximo, sim. Precisamos reverter o aprendizado em coisas boas, em atitudes melhores — diz Denise, que também atuou no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica) de Três Passos.
Amigas do Bem
Denise integra um grupo de mulheres, que se uniu em Três Passos após o assassinato de Bernardo para criar o Amigas do Bem, em alusão ao apelido de Bê. São vizinhas, professoras e amigas que se apoiam, realizam atividades voluntárias e mantêm viva a memória do menino. Atualmente, são 20 integrantes, que seguem realizando ações no município e região.
Durante o período da pandemia do coronavírus, vêm contribuindo com a produção e distribuição de máscaras para instituições. Além de fazer doações, são elo com aqueles que acompanham o caso em outras regiões do Brasil e até fora do país. Agora, com a proximidade do caso de Rafael, elas se colocaram à disposição também para auxiliar a comunidade em Planalto a encontrar formas de superar a dor.
Confira entrevista com a psicóloga
No caso do Bernardo havia um contexto familiar de conflito. Neste, um ponto que chama atenção é que não havia registro anterior de maus-tratos ou negligência. E isso gera sentimento de revolta na comunidade, como se tivesse sido enganada. Como lidar com isso?
Esse tipo de situação abala todo mundo. Meu conselho, em primeiro lugar, é se livrar um pouco da culpa. As pessoas acabam se sentindo muito culpadas. Por não ter percebido, não terem visto, não terem feito alguma coisa. Nem sempre é possível detectar esse tipo de crueldade e perceber esse tipo de situação familiar. As pessoas devem se unir, as comunidades religiosas, buscar apoio uns nos outros, com muita compreensão e diálogo. Muitas vezes, aparentemente, as famílias são perfeitas. Isso é um ponto que tem de ser visto. Mas claro que as pessoas têm de ficar atentas a qualquer indício de maus-tratos.
Que tipo de reação as crianças, que eram próximas dele, podem ter?
Muitas dessas crianças começam a apresentar insônia, dificuldade de relacionamento, culpa por não terem feito alguma coisa por aquele coleguinha. Outras apresentam muito medo. Porque justamente aquela que seria a figura de proteção da criança acaba se tornando vilão. Acabam por ter medo que os próprios pais possam fazer algo com elas. Em todos esses casos, aconselho pais e professores a conversarem sobre o assunto, explicar que são situações que fogem ao padrão.
O que pode ajudar a superar essa situação?
As pessoas têm de encontrar maneira de continuar vivendo. Isso tem de ser trabalhado com as crianças também. Foi um caso horrendo, mas a vida das pessoas tem de seguir em frente. Podem organizar grupos para fazer orações, conversar, se ajudar, falar sobre seus medos, anseios. A comunidade tem de se unir e encontrar o próprio caminho dela, para que um apoie o outro, e possam juntos superar essa situação. E, principalmente, dar atenção especial às crianças. É uma coisa que tem de ser resolvida, pode ficar uma situação traumática para o resto da vida.
Esse tipo de caso deixa as comunidades mais despertas para perceber casos de violência?
Três Passos ficou mais atenta às manifestações das crianças sobre a violência. As pessoas começaram a entender melhor e se responsabilizar mais. Até que aconteça próximo a nós, a gente pensa que isso não nos pertence. No momento em que acontece com pessoas próximas, começa a repensar a questão da omissão. Até que ponto posso me omitir, posso deixar a situação como está. As pessoas começam a ter visão diferente sobre a própria responsabilidade nessas questões. Precisamos olhar mais não só para a criança, mas para a maternidade e paternidade.