Na noite de 26 de agosto, uma comerciária de 30 anos curtia a expectativa das férias que estavam prestes a começar e do avanço da gravidez. Faltavam poucos minutos para a meia-noite e ela retornava de mais um dia de trabalho, em Porto Alegre. O ônibus da linha Integração da empresa Vicasa, no terminal Mathias Velho, em Canoas, em que ela estava já era a terceira condução da noite no périplo para chegar em casa. Sentada no fundo do coletivo, a mulher recém abrira a bolsa para pegar o telefone quando ouviu os gritos de "desce, desce, desce".
Mas não teve tempo de sair, assim como os outros passageiros. Enquanto berrava, o homem espalhou combustível e deu início ao fogo. As chamas correram da frente do ônibus — próximo à catraca — para o fundo, onde a porta ficou fechada, impedindo que os passageiros descessem. As luzes começaram a estourar e as pessoas gritavam: "vamos morrer aqui"!
Grávida do terceiro filho, na escuridão, a comerciária não sabia mais onde estavam as janelas ou as portas. Lembra que as pessoas se debatiam desesperadas e ainda recorda ter ouvido barulho de vidro sendo quebrado. Enfraquecida por respirar fumaça, ao perceber um vulto passar por ela e sumir na escuridão, arriscou o mesmo caminho e saltou para a vida. Caiu deitada na rua. Foi arrastada por uma desconhecida poucos segundos antes de uma explosão no coletivo.
A comerciária ficou 11 dias internada, sendo cinco deles em coma induzido. Ainda em recuperação, com férias canceladas e afastada do trabalho para tratamentos, a mulher, que está com 15 semanas de gravidez, atesta: "Viraram a minha vida do avesso". Ainda assim, diz que perdoa o agressor: "Deus me deu uma nova chance, por que vou querer o mal dele?".
A Delegacia de Polícia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Canoas, comandada pelo delegado Thiago Carrijo, indiciou por tentativas de homicídio e associação criminosa os quatros suspeitos do ataque e já prendeu dois. Um dos presos é o que foi identificado como o homem que entrou no coletivo para jogar combustível e atear fogo. Confira acima trechos da entrevista em vídeo a GaúchaZH.
Contraponto
O que diz Rogério Moraes, gestor operacional da Vicasa:
A informação oficial é de que a empresa prestou todo o apoio e acompanhamento médico necessários aos passageiros. Quanto ao motorista, ele está muito abalado psicologicamente, fazendo reciclagem, pois foi um choque inesperado. Ele não lembra se tentou acionar a porta ou não. Isso servirá como exemplo nas nossas palestras de reciclagem.
Confira a entrevista na íntegra:
Em que momento a senhora percebeu o ataque?
Foi tudo muito rápido. Quando vi ele já estava perto da catraca. Eu sentei, baixei a cabeça para pegar o celular, antes de levantar a cabeça, ele já estava gritando "desce, desce todo mundo" e jogando o combustível e já ateou o fogo, tanto é que ele mesmo acabou se queimando. Ele disse desce todo mundo, mas não deu a opção de a gente descer.
Como as pessoas reagiram?
Quando ele ateou o fogo, já começou a subiu a fumaça preta. Ninguém enxergava nada. O motorista saiu e nós ficamos trancados. Eu entendo que tenha sido o instinto dele de tentar se salvar, até porque ficou encharcado com combustível, mas acho que as empresas deviam dar treinamento específico para os funcionários sobre isso. Ele perderia dois segundos para apertar o botão da porta para a gente sair.
O que a senhora sentia?
Começou a entrar fumaça e eu não conseguia respirar. E tudo escuro dentro do ônibus. A gente não enxergava alavanca de emergência da janela para puxar, a porta estava fechada. O pessoal gritando, foi muito desesperador. As pessoas diziam "a gente vai morrer, ajuda pelo amor de Deus, esse cara está louco". Alguns corajosos começaram a quebrar os vidros a socos e chutes. Foi desespero grande, o pessoal lutou pela vida mesmo.
Como a senhora saiu?
Eu senti que passou um vulto por mim. Senti, não vi. E eu pensei: vou morrer aqui. Fui e me joguei atrás. Me joguei. E era uma janela. Caí do lado de fora deitada, mas não tinha forças para levantar sozinha. E teve uma senhora que me arrastou para longe do ônibus. Quando ela me largou, o ônibus explodiu. Foi questão de segundos. Eu não teria conseguido sair sozinha.
Que ferimentos a senhora teve?
Tive queimaduras nas vias respiratórias, tive edemas, me colocaram em coma induzido. Os médicos disseram que eu resistia muito à sedação. No meus inconsciente acho que eu pensava que ainda estava no ônibus. Me sedaram e me entubaram.
E como foi quando acordou no hospital?
Foi um desespero grande. Achei que ia ficar vegetativa. Acordei usando fralda, com um monte de eletrodo no peito, me alimentando por sonda, máquina por tudo que é lado e amarrada, para minha segurança. Entrei em pânico. Tive um atendimento muito bom, excelente (no Hospital Universitário da Ulbra, foram 11 dias de internação, sendo cinco em coma induzido). Foi divulgada nota pela empresa de ônibus dizendo que estava prestando todo o atendimento para as vítimas. Não é verdade. Se não tivesse o plano de saúde da minha empresa, estaria esperando pelo SUS.
Com que médicos a senhora está se tratando?
Psicólogo, psiquiatra, obstetra com mais frequência, mais exames do que o comum. Fonoaudióloga. Tudo isso me gera custo de deslocamento, tenho que andar de ônibus. Os médicos são no centro de Porto Alegre.
Como foi voltar a pegar ônibus?
Foi bem complicado. Fiquei com pânico. Qualquer um que entra com as feições do cara que tocou fogo já dá um pânico e eu acompanho de canto de olho até a pessoa sentar, e vejo o que vai fazer. Tenho que pegar o diretão (ônibus) daqui até o centro de Porto Alegre, e é bem demorado. Ou fazer alguma outra baldeação, porque eu não consigo chegar ali na estação Mathias e pegar o ônibus e descer no mesmo lugar. Não tive coragem.
A senhora está com dificuldades para se manter?
Estou afastada do trabalho, não recebi ainda pelo INSS, meu sogro ajuda. Estou tendo muito gasto com passagem. Quando saí do hospital, mandaram uma mensagem para meu marido perguntando como eu estava e nunca mais entraram em contato. Estamos só com o salário dele. Eu ia tirar férias, não pude. Viraram minha vida do avesso.
A senhora está fazendo tratamento para pânico?
Estou tomando medicação que o psiquiatra receitou. Mas está bem complicado. Quando eu paro e lembro de tudo, tipo assim, Deus me deu uma nova chance de viver. Se me perguntar como consegui sair daquele ônibus, não sei explicar. E daí me vejo tendo que ir para consulta e tudo mais, é complicado.
A senhora achou que ia morrer?
Eu pedi a Deus pela minha vida. Pedi: "Meu Deus, não me deixa morrer desse jeito, nessa situação". Achei que ia morrer ali. Não tinha forças sozinha para sair daquele ônibus.
Além do medo, que sintomas a senhora tem?
Fiquei com bastante tosse, sinto dores pelo corpo. Não quebrei nada, mas tive contusões. O nenê vai crescendo, vai apertando mais. A minha voz ainda está debilitada. Eu sinto o gosto, o cheiro daquela borracha queimada, daquela fumaça. Ainda sinto. Passa um filme pela cabeça da gente. Não consigo esquecer. Eu ainda não sou a mesma pessoa que era antes.
Qual seu sentimento em relação a quem fez isso?
Eu perdoo ele. Ele também é filho de Deus, por mais que tenha errado. Se Deus me deu uma chance de viver, por que vou julgar ele? Não cabe a mim fazer isso. Vai ser julgado pela Justiça, vai pagar pelo que fez. A Justiça de Deus também cobra. Não cabe a mim querer o mal dele. Com tudo que aconteceu, me aproximei mais de Deus.