Considerado alternativa para cumprimento de pena, o uso de tornozeleiras eletrônicas por presos cresceu nos últimos cinco anos no Rio Grande do Sul. Entre 2014 a 2018, o número de aparelhos instalados saltou de 1.143 para 2.607, uma elevação de 128%. Os dados foram obtidos por GaúchaZH via Lei de Acesso à Informação (LAI), encaminhados pela Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe).
Uma das explicações para o aumento é a implementação do sistema em mais regiões do Estado. Em um primeiro momento, em 2014, as tornozeleiras foram instaladas em Porto Alegre, nas regiões Metropolitana, Central, Norte e na Serra. No ano seguinte, foi implantada nos Vales do Taquari e Rio Pardo. Por último, entre 2017 e 2018, os aparelhos chegaram à região sul do Estado.
Apesar do aumento, ainda há apenados aguardando pela instalação das tornozeleiras. Atualmente, são 600 presos esperando pelos equipamentos, conforme a Susepe. A expectativa do governo do Estado é zerar esse número com os novos aparelhos, que estão em fase de testes e passaram a ser colocados no final de maio em detentos de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, e Pelotas, no sul do Estado. A nova leva de equipamentos, contratada com a Georastreamento Inteligência e Logística, de Domingos de Martins, do Espírito Santo, prevê uso de até 10 mil tornozeleiras, conforme a necessidade, a custo que pode chegar a R$ 40 milhões para o Estado.
A expectativa do promotor de execução criminal Alexander Thomé é que, com estes novos equipamentos, os presos que deveriam estar cumprindo pena, mas não estão por falta de tornozeleira eletrônica, passem a ser monitorados.
— Temos pessoas que constam como presas, mas não estão vinculadas a nada. Estão na chamada nuvem. Esperávamos que esse novo processo abarcasse esse contingente de imediato. Queremos um sistema que seja confiável. A disciplina nesse processo é fundamental. Se o apenado quebrar a confiança, tem de ter uma resposta penal — explica.
O aumento no número de apenados com tornozeleira eletrônica tem relação com a situação das casas prisionais do regime semiaberto, segundo o secretário de Assuntos Penitenciários (Seapen), Cesar Faccioli.
— Temos um déficit muito grande — reconhece.
A falta de casas prisionais para apenados do semiaberto também é apontada pelo juiz da Vara de Execuções Criminais (VEC) Sidinei José Brzuska como motivo para o aumento do uso de tornozeleiras eletrônicas. Ele critica a falta de investimentos em institutos penais e observa que mais de mil vagas foram perdidas na última década com o fechamento de três espaços: em Viamão, Porto Alegre e Mariante.
— Investimento só em tornozeleira não adianta — salienta Brzuska.
Ainda que seja favorável ao uso do equipamento, o magistrado considera que o monitoramento eletrônico não é recomendado para todo o tipo de apenado.
— Funciona para preso que está fora da atividade criminosa, que não precisa de contenção, e para aquele criminoso eventual. Não funciona para preso muito jovem, porque não impede de ir à balada, ir ao motel. Ele acaba rompendo para curtir. Também não funciona para morador de rua, que não tem nem onde dormir, imagina uma tomada para carregar a tornozeleira? — explica.
Crimes reacendem discussão
Dois casos recentes reacenderam a discussão sobre a eficácia do sistema. No final de junho deste ano, um dos presos pela mortes de dois policias militares em um confronto na Vila Maria da Conceição, na zona leste de Porto Alegre, deveria estar usando o aparelho, que não foi colocado porque estava em falta. Poucos dias depois, em 10 de julho, um dos três envolvidos na morte do soldado Gustavo de Azevedo Barbosa Junior, 26 anos, também deveria estar usando o aparelho. A tornozeleira foi rompida duas vezes pelo preso.
Para a professora de Direito Penal da UFRGS, Vanessa Chiari Gonçalves, os casos são considerados exceções, mesma opinião do secretário de assuntos penitenciários. Entre 2015 a 2017, ela coordenou pesquisa que avaliou a eficácia dos aparelhos ao analisar 568 pessoas que estavam sendo monitoradas no Estado. Dos 476 homens acompanhados, 95 acabaram fugindo, o que representa 19,9%. Por outro lado, das 92 mulheres, quatro escaparam (4%). A explicação para diferença por gênero está em características familiares, entende a professora:
— As mulheres normalmente já são mães e têm filhos que dependem, muitas vezes, só delas. Aproveitam a oportunidade para se afastar do crime. Nossa população carcerária é pobre. Muitos crimes se relacionam às necessidades financeiras ou à dependência química. Esta última causa é mais comum entre os homens.
Em setembro de 2017, o promotor recomendou que o sistema fosse aprimorado, o que foi atendido no novo contrato. Entretanto, acredita que o processo de colocação dos novos aparelhos ainda está demorado.
— Hoje, a tornozeleira é usada como cumprimento de pena, o que é uma anomalia, gerada pela falta de vagas. Essa ferramenta não foi concebida para isso. Ao mesmo tempo em que aumentou o contingente de apenados, constataram-se inúmeros problemas. Tanto no dispositivo, quanto no software. Temos um sistema com muitas falhas. O Estado levou em conta nossos apontamentos na nova contração de empresa. Mas o cronograma, na nossa visão, está muito moroso. Tinha expectativa que fosse melhor atendido num espaço de tempo menor — avalia.
Integrante da comissão dos aprovados no concurso da Susepe, Gustavo Vieira Pereira considera o equipamento eficaz. Mas entende ser necessário convocar mais agentes penitenciários do último certame que, entre outras responsabilidades, cuidam do sistema de monitoramento eletrônico. A comissão estima que 500 aprovados aguardam para serem chamados.
— O sistema é interessante, dá fluidez para casas prisionais, mas é necessário contratação de pessoas para monitoramento — observa Pereira.
Hoje, segundo os concursados, parte dos servidores que monitoram o sistema são policiais militares aposentados. Pereira classifica a situação como um desvio de função, considerada até mais onerosa do que a contratação de um agente penitenciário.
— Os valores oscilam entre 50% do salário do servidor. Acaba gerando um ônus tão grande quanto da contratação de um agente penitenciário — avalia o concursado.
Questionado sobre a situação, Faccioli disse desconhecer da existência de PMs aposentados trabalhando na central de Porto Alegre e Região Metropolitana. Sobre a contratação de novos agentes, explicou que o assunto está sendo discutido com o governador Eduardo Leite.
Novas tornozeleiras
Hoje, 770 novas tornozeleiras estão em funcionamento em Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, e em Pelotas, no Sul. As operações ocorrem em fase de testes. A escolha por Santa Cruz do Sul ocorreu por ser a segunda cidade com o maior número de apenados com o aparelho. Já em Pelotas, ocorreu pelo destelhamento da casa prisional de Rio Grande onde estavam os apenados.
À prova d'água, as novas tornozeleiras são feitas de titânio e suportam até 500 quilos de pressão. A antiga era feita de aço e fibra ótica. Outra alteração está na forma de carregar a bateria. Antes, era necessário estar próximo de uma tomada. Agora, o novo aparelho vem acompanhado de uma espécie de carregador portátil. Outra novidade é que, se o sensor ficar 24 horas parado no mesmo lugar, um alerta é disparado para a central de monitoramento. As novas tornozeleiras custam R$ 338,95 por apenado — R$ 78 mais caro que as antigas.
Como obtivemos os dados?
A reportagem solicitou à Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) o número de tornozeleiras eletrônicas colocadas no RS nos últimos cinco anos, via Lei de Acesso à Informação (LAI). Para realizar a comparação, foram considerados os anos inteiros, de 2014 a 2018. O número do primeiro semestre de 2019 já se aproxima do total do ano de 2018, mas não foi usado na comparação.