Flagrado com 171 porções de drogas prontas para venda, Fernando* havia passado a primeira noite tentando se acomodar no exíguo porta-malas de um Fiesta ao qual estava algemado nos fundos do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF), na zona leste da Capital. Desde 14 de julho, o local se tornou um aglomerado de viaturas que formam uma penitenciária a céu aberto, na emblemática imagem da crise do sistema carcerário gaúcho. Fernando era mais um dos 37 suspeitos de crimes confinados no espaço, todos presos a veículos debaixo de uma marquise em destroços.
Na quarta-feira, 31 de julho, GaúchaZH começou a acompanhar a jornada do traficante reincidente por quase uma semana, desde o dia em que foi detido até o momento em que entrou na Penitenciária Estadual de Porto Alegre. Trata-se de uma rotina de 34 meses de improviso do poder público diante da escassez crônica de vagas nos presídios do Estado. Após o primeiro pernoite no porta-malas do Fiesta, Fernando, de 1m70cm de altura, passou quase todo o tempo em pé, ao lado de uma viatura da Brigada Militar. Vestia calça jeans preta, casaco cinza e tênis Nike rosa.
Aos 27 anos, Fernando havia recém almoçado arroz, farofa e salsichão em uma vianda de alumínio, mas disse que a refeição mais parecia “concreto”. Tinha a mão esquerda presa a uma algema, conectada ao batente da porta, deixando à vista a tatuagem que leva no antebraço: “E mesmo que eu ande pelo vale da sombra e da morte, não temerei mal algum”, um salmo da Bíblia.
Ele havia sido detido na Rua Dona Otília, no alto do Morro Santa Tereza, no fim da tarde anterior. Estava parado em cima de uma moto em um conhecido ponto de tráfico, quando passou a guarnição do 1º Batalhão de Polícia Militar (BPM) que acabaria o prendendo. Tentou acelerar, mas não conseguiu.
Dois brigadianos revistaram a sua mochila, onde encontraram 48 buchas de maconha, 90 pinos de cocaína e 33 pedras de crack. Na cintura, tinha um revólver calibre 38 municiado com quatro cartuchos. A calça comprida escondia a tornozeleira eletrônica que carrega em uma das pernas desde 10 de maio em razão de uma prisão por tráfico. Progredira para o semiaberto, mas seguiu no crime, acumulando a quarta prisão sucessiva desde 2013.
Do Santa Tereza, Fernando foi levado à 3ª Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA), no bairro Navegantes, onde os brigadianos registraram o flagrante. Depois, foi encaminhado ao terreno do IPF. O preso queria falar com o seu advogado, mas visitas não são permitidas no local.
No IPF, passou a dividir a cela improvisada em razão da falta de vagas no sistema penitenciário com outros três homens, cada um, amarrado a uma porta. O mais antigo estava lá havia duas semanas. As viaturas da BM, muitas delas com pedaços de papelão ou sacos plásticos no lugar dos vidros, ficam debaixo de uma estrutura semidemolida. Por lá, os policiais mantêm a organização como conseguem. Sobre os carros, acomodam rolos de papel higiênico, marmitas e caixas de leite, enquanto o lixo se espalha pelo chão. Uma única van tinha sete presos.
Na prisão-viatura, banhos são raridades. Se liberados, limitados a dois minutos na mangueira. Fernando contou que tomou uma ducha de 30 segundos. No terceiro dia, queixava-se do odor do carro e da burocracia para ir ao banheiro. Tinha de chamar um policial para acompanhá-lo até um dos dois sanitários químicos instalados no terreno. Mas, ao lado da viatura, uma garrafa cheia de líquido amarelo denunciava que a bexiga podia ser aliviada dentro do carro.
— Vê o cheiro que tá aqui dentro — disse, apontando para o interior do veículo.
Brigadianos, cuja missão primordial é garantir a segurança nas ruas, acabam deslocados todos os dias para custodiar suspeitos de crimes no IPF. Fernando e os colegas de cárcere obrigavam 15 PMs a fazerem as vezes de carcereiros. Os policiais, indiretamente, também acabam tornado-se “prisioneiros” embaixo da marquise. Igualmente enfrentam dificuldades e precisam improvisar a própria alimentação.
No local, o clima com os detentos é amistoso. Liberaram, por exemplo, a entrada de cigarros e cobertores, quando levados por familiares que chegam a fazer fila em frente ao portão. O pátio recebe os suspeitos de crimes desde que o governo estadual decidiu transferir as viaturas que antes ficavam amontoadas em frente ao Palácio da Polícia.
— Esses policiais poderiam estar patrulhando, mas estão ali, fazendo a custódia para que esses presos fiquem presos — resumiu o comandante-geral da BM, coronel Mário Ikeda.
Fernando ficou seis dias com movimentos restritos, sempre algemado. No último dia 5, uma ensolarada segunda-feira na Capital, a administração da Penitenciária Estadual de Porto Alegre alertou o Departamento de Segurança e Execução Penal (Dsep) que uma vaga abrira. Pela manhã, um dos agentes enviou um e-mail para a 3º DPPA: "Prezados, favor encaminhar o preso".
O Grupo de Operações Especiais (GOE) da Polícia Civil foi acionado. Dois agentes chegaram ao terreno atrelado ao IPF pouco antes das 15h. Seis minutos depois, um deles tirou as algemas de Fernando e o conduziu até o camburão.
Antes que o veículo arrancasse pela Terceira Perimetral, até desembarcar no número 9.999 da Rua São Jorge, no bairro Aparício Borges, Fernando confessou:
— Nunca pensei que fosse ficar feliz de ir para uma cadeia.
* O nome é fictício
Por que não publicamos o nome do preso?
A preservação da identidade foi uma condição da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) ao autorizar que GaúchaZH acompanhasse a rotina de um homem preso desde o flagrante até conseguir vaga no sistema prisional do RS.