Gilson Ferreira da Silva Junior, 27 anos, completou neste sábado (20) quatro dias algemado numa caminhonete da Brigada Militar. Nesse período, dormiu sentado no assento da viatura, junto com outros quatro presos, cada um numa poltrona. Outro, considerado mais sortudo, estava abrigado na "cachorreira", a gaiola para guardar os detidos, situada na parte traseira do veículo.
Até dois anos atrás, esse tipo de cenário era raro no Rio Grande do Sul. Virou rotina. Já não há dia ou noite sem que viaturas virem celas ambulantes, paradas em frente às Delegacias Policiais de Pronto Atendimento (DPPAs, para onde são conduzidos os presos em flagrante e suas vítimas). Sobretudo na Região Metropolitana de Porto Alegre, mas não apenas nela.
No Sábado de Aleluia, véspera da Páscoa, Gilson comeu com as mãos. Ele e os outros sete presos que dormem e se alimentam algemados nas viaturas da BM estacionadas em plena calçada de uma das mais movimentadas esquinas da Capital, a Ipiranga com João Pessoa, no Palácio da Polícia, sede da Polícia Civil gaúcha. Ali fica a principal DPPA de Porto Alegre.
Neste sábado (20), a DPPA contava com 16 presos, um número até baixo para os padrões usuais. Oito deles estavam em celas, sete nas viaturas da BM (usadas como cadeia) e um no hospital. Todos deveriam estar no sistema penitenciário, mas por falta de vagas, ficam sentados nos carros. Comem com as mãos o arroz, frango e massa que lhes são fornecidos, de marmita, pelos presídios — o uso de talheres não é permitido, por segurança. Quando precisam ir ao banheiro, pedem aos PMs. Não recebem visitas, até porque, oficialmente, não estão num estabelecimento penitenciário e as DPPAs não contam com locais apropriados. Não deitam, dormem sentados. Não veem TV, nem ouvem rádio, nem lêem. Nada da rotina usual que costuma marcar os presídios. Vivem num limbo.
Situação, aliás, muito parecida com a dos PMs que guarnecem os presos. Eles também passam pelo menos seis horas sentados nas viaturas, cuidando dos detidos, como se fossem carcereiros. Comem ali mesmo, via de regra sanduíches comprados com o próprio dinheiro. Sem talheres.
— A diferença em relação aos presos é que não estamos algemados e, terminado o dia, vamos para casa. Mas aqui em frente ao Palácio da Polícia temos rotina muito parecida com a dos ladrões que prendemos — resume um soldado.
O PM teme por sua saúde. Há dois dias, ao escoltar um dos presos para ir ao banheiro, viu que ele tossia muito e descobriu: o rapaz está com tuberculose. Outro temor é ainda pior: o de que algum dos presos seja importante na geopolítica do crime e a quadrilha tente um resgate.
Gilson está há quatro dias sem banho, sentado ao lado de Cristiano Strapasson da Silva, 30 anos, preso há três dias. Ambos eram foragidos, ambos eram procurados por roubo. Ambos trabalhavam no centro de Porto Alegre: Gilson no camelódromo, Cristiano numa sauna.
A situação nas celas do Palácio da Polícia é um pouco melhor. Os presos não ficam algemados, podem deitar no chão e têm acesso a banheiros, precários. Conseguem até um "luxo" impensável para os que estão presos nas viaturas: os detidos no xadrez tomam banho. É de mangueira, dado pelos policiais civis da DPPA. Tomam de roupa e tudo, mas em dia de calor é um alívio.
Nas celas tem gente que está há nove dias preso. É irregular. O regulamento do "xadrez" da Polícia Civil é que ninguém fique ali mais do que 12 horas. A realidade, no momento, é bem outra.
Gilson e um outro preso nas viaturas, S. (ele pediu para não se identificar) não podem ir para as celas. É que ambos estão relacionados como integrantes de uma facção, a dominante na Zona Leste de Porto Alegre. Gilson diz que não é filiado, mas ficou um tempo nas celas gerenciadas por essa quadrilha no Presídio Central e, agora, está marcado como se fosse afilhado deles. Não pode cruzar com presos de outras facções, sob risco de vida. E no xadrez do Palácio da Polícia tem gente de tudo que é lugar e bando. Mais um risco, para eles e para os policiais.
S. está preso por acusações graves. Responde por seis homicídios. Entrevistado por GaúchaZH, ele foi sincero:
- Sou matador. Mato para uma facção. Sabe onde isso me levou? Nada de bom. Agora tô aqui, nesse lixo. Dois filhos para criar, cheio de inimigos. Dormindo na viatura. Com todo respeito, mas policial não tem de ser babá de preso, até eu reconheço. Mas sei que estou pagando pela vida que escolhi. No crime, a gente fica sem alma, seu... - desabafa ele, preparado para passar a Páscoa encolhido na "gaiola" da viatura policial.