Imagine viver em uma metrópole, mas em uma comunidade onde não há farmácia, não há praça, o ônibus não entra, aplicativos de transporte recusam corridas, tele-entregas descartam pedidos, o único acesso alaga em dias de chuva e o posto de saúde mais próximo fica a dois quilômetros. Para os moradores da Vila dos Sargentos, no bairro Serraria, na zona sul de Porto Alegre, esse não é um exercício de imaginação, é a realidade.
— Quando digo que moro lá, já muda tudo. A maior parte é trabalhador. Mas sofre preconceito de viver num lugar mal-visto — conta uma moradora, que cresceu no local.
O posto de saúde fechou há dois anos em razão de episódios de violência. Os funcionários se diziam acuados pelo tráfico. Por isso, os pacientes agora são atendidos no bairro Guarujá. Há quem faça o trajeto a pé. Na quarta-feira (28), um rapaz aguardava havia três horas por atendimento. A nova unidade está em construção no acesso à vila e, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, deve ser inaugurada até dezembro.
— É difícil. A gente tem de se deslocar de lá. Cheguei aqui antes de o posto abrir. Pior é em dia de chuva — reclama.
O único acesso à comunidade, no topo do morro, inunda quando chove. Entrar ou sair da vila se torna um martírio. O problema é motivo de reivindicação há anos. Há quem se arrisque a cruzar com água na altura dos joelhos. Improvisam cobrindo os pés com sacolas plásticas. Outros ficam em casa e perdem o dia de trabalho. A prefeitura está limpando o local para melhorar o escoamento.
— Os professores, que são de fora, não conseguem entrar em dia de chuva. Ou tem de enfrentar um "rio" para chegar. Fazem anos que é assim — reclama a mãe de uma aluna da Escola Estadual de Ensino Fundamental Custódio de Mello, que fica na Vila dos Sargentos.
O transporte é um dos problemas enfrentados pelos moradores. Desde janeiro, quando um ônibus foi incendiado no ataque de uma facção rival, a linha que atendia a comunidade mudou o trajeto. Agora é preciso caminhar cerca de 300 metros entre o antigo terminal até a parada mais próxima. A comunidade chegou a fazer abaixo-assinado para ter o coletivo de volta. Alguns motoristas de aplicativo também não entram na comunidade. Consideram o local área de risco.
— Os moradores pedem para largar no fim da linha de ônibus. Não aconselham entrar. Eu mesmo largo no fim da linha (antes de entrar na Vila). O pessoal pede para deixar ali que eles entram a pé — argumenta o presidente da Associação Liga de Motoristas de Aplicativos (Alma), Joe Moraes.
Com a dificuldade de entrar e sair, moradores tentam recorrer aos serviços de entrega. Mas nem todos aceitam atender pedidos dentro da comunidade. A única farmácia que havia fechou após o proprietário ser morto. As encomendas de medicamentos também têm de ser feitas fora.
— A vila ficou com fama. Uma noite dessas pedimos uma pizza, e eles não queriam entregar. Tivemos de ir lá na frente do quartel (no 8º Esquadrão de Cavalaria Motorizado) buscar. Só tem uma farmácia que faz entrega aqui. Dizem que têm medo — diz uma dona de casa.
A moradora também reivindica espaços de lazer para a comunidade, que não tem praça. A mais próxima fica no bairro Guarujá.
— Tem uma quantidade enorme de jovens aqui. E não tem uma praça, nada. A gente ficou esquecido. Em dia de chuva, ficamos ilhados dentro da vila. É surreal — reclama uma moradora, que prepara a mudança.
A oscilação, entre moradores que vendem suas casas, e outros que chegam é rotina na comunidade. Placas anunciando venda ou aluguel de imóveis são comuns. Mas há quem não tenha planos de deixar a Vila dos Sargentos. Só quer que o local receba mais atenção.
— Adoro o lugar e não pretendo sair daqui. As crianças brincam na rua, tem escola, creche e agora vai voltar a ter posto no bairro. Isso é muito bom. Mas precisa de melhorias e fiscalização — conta uma jovem.
"Tem de voltar os olhos para os vulneráveis"
Juiz da 3ª Vara Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre, Charles Maciel Bittencourt acredita que a ausência de serviços básicos impacta diretamente nas comunidades conflagradas e que isso reforça a ação do crime.
— O Estado e o município têm de voltar os olhos para os vulneráveis. São eles que sofrem as consequências do crime de forma direta. Se as pessoas não têm o básico, saneamento, distribuição de água, educação, dificulta tudo. A ausência do Estado faz com que cresça esse estado paralelo, que é o crime organizado, que toma espaço e faz cobranças descabidas de uma população carente — afirma.
Bittencourt acredita que investimentos em cultura, lazer, educação e saúde são essenciais para impedir, por exemplo, que jovens sejam cooptados pelo crime.
— É preciso ter oportunidade de lazer, com qualidade e segurança. Não só na escola, mas no entorno. Centros de juventude deveriam ser ampliados. Não apenas em territórios conflagrados, mas em outros, até para evitar que o crime migre. A sensação de segurança também precisa se fazer presente. É essencial investir na prevenção e em oportunidades — defende.
Contrapontos
Alagamentos - A Secretaria de Serviços Urbanos informou que o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) está realizando a limpeza e retirada de resíduos da vala que drena o acesso à Vila dos Sargentos para melhorar o escoamento da água. Segundo o departamento, os resíduos são descartados irregularmente pela população, o que causa problemas às redes de drenagem.
Ônibus - A Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) informou que a Prefeitura trabalha para executar uma obra que possibilite a alteração solicitada pela comunidade. É preciso adequar a via para a estocagem dos ônibus, após a mudança do itinerário.
Posto de saúde - Segundo a Secretaria de Saúde, o novo posto dentro da Vila dos Sargentos deve ser inaugurado até dezembro. O custo da obra é de R$ 1,4 milhão. Como contrapartida ao Exército, que cedeu o terreno, a Prefeitura construiu um muro no local.