Elissandro Spohr, o Kiko, um dos sócios da boate Kiss — que incendiou em 2013, matando 242 pessoas e ferindo outras 636 — tem pressa em ser julgado. Não aguenta mais a espera e a falta de perspectiva quanto ao futuro.
No mês passado, ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiram que os quatro acusados pela tragédia deveriam ser submetidos ao Tribunal do Júri. Kiko aceitou não recorrer, em acordo costurado entre as defesas e a acusação, mas há um detalhe que pode atrasar o julgamento: ele não quer sentar no banco dos réus em Santa Maria.
Durante uma hora e 10 minutos, Kiko Spohr recebeu GaúchaZH no escritório do seu advogado, Jader Marques, na zona sul de Porto Alegre.
Por que o senhor decidiu não recorrer da decisão do Superior Tribunal de Justiça, que confirmou julgamento pelo Tribunal do Júri?
O advogado me ligou e disse: chegou aquele momento em que, se não recorrermos, vai baixar para o júri. Então vamos ao júri, respondi. A gente vinha conversando sobre essa hipótese havia algum tempo. Não é fácil dormir e acordar com isso. Está todo mundo cansado, os pais também, psicológica e emocionalmente. Ninguém aguenta mais, a gente tem de resolver isso. Falam que a defesa fica protelando, não é verdade. Há recursos de todos os lados, da acusação também. Mas o processo vem se estendendo até pela denúncia: se fosse culposo, como acreditamos, já teria se resolvido. Mas não, vai virar doloso (no entendimento do STJ, houve dolo eventual, quando os acusados assumem o risco de matar), como se a gente quisesse matar alguém. Então, a gente tem de resolver isso.
O júri deve ser marcado para ocorrer em Santa Maria. Vocês concordam?
Precisamos de um júri o mais imparcial possível. Não tenho como ir a Santa Maria e enfrentar um júri. Não posso andar lá, não posso ser visto. Não tem lógica! Quem não perdeu amigo no incêndio? Perdi amigos lá. Como serão imparciais em Santa Maria? Não acredito.
Alguma vez o senhor voltou a Santa Maria?
Às vezes tenho de voltar, minha sogra mora lá. Deixo a mulher e saio. Não tenho como ficar lá. Acho até perigoso, na verdade.
Já foi reconhecido na rua, na Capital, como “o cara da Kiss”?
Bastante. Sei que me olham e ficam com vontade de perguntar se sou eu o cara. Algumas reconhecem, ficam surpresas, como se tivessem visto um fantasma. Dia desses, uma pessoa ficou me olhando no mercado. Vi que ela queria me perguntar alguma coisa. Apurei e saí.
Como foi a sua vida nesses seis anos? O senhor não é um homem de posses. Como se manteve, com filho nascido depois da tragédia e tendo que pagar advogado?
Fiquei bastante tempo parado e agora voltei para o ramo da minha família, pneu. Coleto pneus, faço reciclagem, vendo usado. Moro em Porto Alegre desde que saí da cadeia, em 2013. Vivo cada dia de uma forma. Estou casado, tenho uma filha de seis anos (gravidez na época do incêndio da Kiss) e outra com três anos. Tudo tem altos e baixos, nem sei como descrever. Durmo e acordo discutindo comigo mesmo sobre a Kiss. Cada etapa do processo vem uma coisa na cabeça. Antes de dar depoimento dormia e acordava “discutindo” com o juiz, lembrando o caso.
O senhor toma tranquilizante?
Tomei bastante, não tomo mais durante o dia. Estou com o psicólogo maior, que é Deus. Estava muito dependente de remédio, me consultei, vi que precisava parar. Ainda tomo para dormir. Sobre a Kiss, é uma tristeza. Todo dia e toda hora penso nisso.
Os números do processo são impressionantes. Como o senhor se sente sendo processado por 242 homicídios e por mais de 600 tentativas?
Nossa. Sinto um peso. É horrível, é inexplicável.
O senhor se sente injustiçado, um bode expiatório?
Não é questão de ser injustiçado, não sei se essa é a palavra. É que tenho certeza que não sou um assassino. Não desejava isso, ninguém ia desejar. É uma coisa fora do normal.
Como está sua relação com os familiares de vítimas? O senhor foi testemunha de defesa deles.
Não tenho relação com a associação de familiares. Tem um pai, que era meu conhecido, que tive contato. Uma irmã de vítima, também.Com a associação, não. Fui testemunha de defesa da associação quando responderam processo.
Desde o incêndio tiveste algum contato com o seu ex-sócio Mauro Hoffmann e os integrantes da banda?
Com o Luciano (Bonilha), da banda, mantenho contato. Desde a cadeia. Quando batia o aperto, de madrugada, a gente chamava um ao outro para conversar. Para tentar respirar, porque não consegue nem respirar. Com Mauro também converso, mas não temos convívio.
O senhor pensou em voltar a trabalhar na noite, de alguma forma? Afinal, era músico e dono de boate.
Não. Gostava e gosto muito de música. Tinha muitos amigos nesse meio. Vendi alguns shows, tentei vender bandas, mas é como se fosse uma extensão da Kiss. Não é, mas é parecido. Não fica confortável.
O senhor já falou que a boate tinha documentação, alvará, TAC com o Ministério Público, reformas realizadas a pedido dessa instituição. E que todos têm responsabilidade no caso: prefeitura, bombeiros, MP. Como vê isso hoje, já que nenhum outro órgão foi apontado por responsabilidade, além de alguns bombeiros condenados?
Falam que o Mauro ou que eu teríamos feito um jeitinho para aprovar licenças. Não, de forma alguma. A boate foi inaugurada em 2009 e já comprei ela, no final de 2010, com todas as liberações. Assinamos um Termo de Ajustamento de Conduto (TAC) com o MP, que foi cumprido plenamente. Vistoriado e aprovado. Dos bombeiros, a mesma coisa. Renovamos os diversos alvarás: localização, sanitário, ambiental. Quando aconteceu o incêndio, eu era número 700 na fila para vistoria de renovação do alvará.
Entrevistamos dois ex-seguranças da Kiss que disseram que a boate serviu para lançamentos de candidaturas do MDB ou de secretários do então prefeito Cezar Schirmer que desejavam virar vereadores. Isso foi de graça? O senhor tinha relação com prefeito e vereadores?
Não tinha relação com gente da prefeitura. Não fiz festa e muito menos campanha. Eu era de Santa Rosa, não conhecia ninguém em Santa Maria, muito menos o prefeito Schirmer. Creio, mesmo, que todos falharam: prefeitura, MP, bombeiros. Nada de jeitinho.
O inquérito policial apontou cancelas fora do padrão e janelas bloqueadas. Em algum momento alguma autoridade apontou problemas?
As cancelas eram para organizar a entrada e as pessoas serem revistadas. Para ninguém entrar armado. Nunca foi para evitar saída de clientes que não pagam, como chegaram a dizer. As janelas foram bloqueadas para evitar propagação do ruído até a rua. O MP aprovou no TAC.
E a capacidade da boate? Conforme autoridades, estaria com mais gente que o permitido.
Quem mediu isso? A informação que eu tinha, de boca, dita por bombeiro, era de duas pessoas por metro quadrado. A Kiss tinha 690 metros quadrados. Caberiam todas que dizem que estavam lá. Mas nem isso tinha de pessoas, lá. Não tinha mais de 800. Não existia documento dizendo capacidade oficial.
Como o senhor vê a perspectiva de voltar à prisão?
É uma coisa em que durmo e acordo pensando. Não é simples. Cadeia não foi feita para o ser humano. É uma coisa séria, tão séria quanto o que aconteceu. Eu entendo, as pessoas confiaram em mim e na boate, ao deixar suas famílias irem. Mas eu também confiei! Minha mulher grávida, minha filha não nascida, também estavam lá. Conversei com o Mauro Hoffmann (que era sócio da Kiss com Kiko). Ele disse que achava que era experiente, agora pensa: "Não era experiente. Mesmo tendo feito tudo que fiz, estou agora respondendo por isso, estou para ir preso, velho, sem saúde e sem idade". Fui em outras boates, era do mesmo jeito. Então vamos presos e vai estar tudo resolvido? Vai estar bem tudo por aí, sem espuma? Os bombeiros garantem tudo por aí? Então podem me prender.