— Pelo amor de Deus, tenta tirar a gente daqui. Por favor, tenta tirar a gente daqui, pelo amor de Deus mesmo, por favor, por favor mesmo.
O apelo desesperado é de um morador da Vila Nazaré, na zona norte de Porto Alegre, onde criminosos ameaçam famílias que aceitaram ser reassentadas em dois condomínios disponibilizados pela prefeitura da Capital. A área vai ser atingida pela ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho, e quem vive ali precisa sair do local.
GaúchaZH teve acesso a mensagens que traduzem o medo e o desejo de se mudar da região dominada pelo tráfico de drogas. As conversas gravadas circulam entre moradores e chegaram às autoridades a partir de abril, quando agentes da prefeitura começaram a fazer o cadastramento das famílias. A situação foi estopim da Operação Nasa, desencadeada pela Polícia Civil na última quarta-feira (10).
De 1,3 mil famílias, pelo menos 300 vivem em dois becos que estão bloqueados pelo crime. Questionários socioeconômicos não puderam ser aplicados ali e os moradores estariam proibidos de colaborarem com informações para a prefeitura.
Nos últimos dias, famílias que querem conhecer os condomínios Senhor do Bom Fim e Irmãos Maristas, para onde a prefeitura propõe removê-las, estão saindo da Nazaré escondidas por temer represálias dos traficantes que tentam manter moradores na região. Desde que agentes públicos e privados passaram a circular pela vila, há um clima hostil.
Adolescentes exibem tranquilamente facas. Pessoas ligadas a organizações de moradores tentam brecar o avanço do trabalho alegando que qualquer agente só pode entrar no local com autorizações do Ministério Público (MP) e da Defensoria Pública.
No começo desta semana, mais uma vez, agentes da prefeitura tentaram ingressar nos becos Pepino e Lampião para cadastrar as famílias. Desta vez, levaram um ofício da Procuradoria-Geral do Município explicando que o próprio MP está cobrando em ação judicial a conclusão do cadastramento.
Um representante de moradores, que tem refutado a proposta de mudança para os dois condomínios, rasgou o documento e impediu a entrada dos servidores do Departamento Municipal de Habitação (Demhab). Conforme revelado em uma das mensagens gravadas, em um determinado dia, quando a empresa contratada pela Fraport — concessionária que administrada o Salgado Filho — foi ao local para fazer cadastramentos, crianças foram pagas por criminosos para arranhar os carros com pedras.
Conforme o delegado que coordenou a Operação Nasa, Cristiano Reschke, da 4ª Delegacia da Polícia Civil, a vila vive uma espécie de Show de Truman, ou seja, toda a movimentação é monitorada pelos criminosos. E a chegada de agentes da prefeitura, da Fraport e da Brigada Militar — que tem acompanhado algumas ações —, desagradou o comando do tráfico.
Como apuramos esta reportagem?
A partir do acompanhamento do processo de remoção de famílias da Vila Nazaré, soubemos que estavam ocorrendo ameaças por parte de traficantes para que moradores não aceitassem ser removidos. Conversamos com moradores, com a Polícia Civil e com servidores da prefeitura para entender o problema. Foi dessa forma que obtivemos as gravações.
Quais cuidados tomamos?
A fim de não colocar moradores em risco, fizemos distorções nas mensagens gravadas para alterar as vozes. Também editamos trechos que pudessem, de alguma forma, levar à identificação do interlocutor.
Outro episódio que motivou a irritação de criminosos e de supostos representantes de moradores foi uma reunião feita pela prefeitura a fim de esclarecer as famílias sobre como funcionaria o cadastramento. O encontro ocorreu em uma ruela da Nazaré. E quem compareceu foi cobrado.
Um homem explicou em conversa gravada o motivo de evitar frequentar encontros promovidos por grupos de moradores:
— Por que não vou nessas reuniões? Tem motivo de maior de gravidade. Quando a pessoa pensa ao contrário deles, eles ficam indignados. Ficam brabos quando tem pergunta de pessoas que querem sair (da vila).
O chamamento de 128 famílias para assinar contrato com a Caixa Econômica Federal (CEF) também causou mal-estar. GaúchaZH apurou que pessoas que haviam sido selecionadas para esta primeira etapa de remoção desistiram de comparecer no ato de assinatura por causa de ameaças.
— O cara aqui tá revoltado pra caramba, tá bufando. Se ele pudesse matar todas as pessoas que foram ontem da comunidade para ir na Caixa assinar o contrato, se pudesse, mandava matar. Ele faz parte da milícia do tráfico. Ele não sabe o que vai fazer para criar caso e tentar embargar as coisas — desabafou um morador em mensagem.
O homem a quem ele se refere é um dos que têm dito que a entrada no local só pode ser feita com autorização do MP e da Defensoria Pública. A reportagem questionou esses órgãos sobre o assunto.
A Defensoria respondeu que "o cadastramento pelo Demhab é recomendado para que haja possibilidade de que todos os cidadãos tenham acesso às alternativas propostas. O cadastro é meio importante para saber quantas famílias existem em cada comunidade. Não há orientação contrária a isso".
A Promotoria de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística nega qualquer orientação no sentido de proibir o cadastramento.
— É evidente que não temos esse tipo de restrição. O que é preciso fazer é que as polícias devem ter ações permanentes de combate ao tráfico para evitar essas situações. Nossa preocupação é que essas famílias sejam reassentadas com dignidade. Estamos pedindo que a Fraport conclua o cadastramento, buscamos que todos possam ser cadastrados. Um assistente social ou qualquer pessoa não pode ser impedida de entrar lá. Se para completar o cadastro for necessário entrar com força policial, isso a empresa ou o poder público municipal podem solicitar — diz o promotor Heriberto Roos Maciel.
O delegado Reschke disse que as investigações da Operação Nasa prosseguem:
— Estamos apurando notícias que dão conta de ameaças que os moradores da região vêm sofrendo em razão do iminente reassentamento. Assim como investigamos a influência de organização criminosa envolvida com tráfico e crimes contra o patrimônio. A Polícia Civil deflagrou a Operação Nasa na última quarta, quando foi apreendida considerável quantidade de drogas, mas a ação não para por aí, pois as investigações continuam.