A depressão é um transtorno mental de múltiplas causas que resulta de uma complexa interação entre fatores socioambientais e características genéticas dos sujeitos. Os transtornos depressivos são condições médicas frequentes na população mundial, marcados por sintomas de tristeza profunda, diminuição ou perda do interesse ou prazer nas atividades, alterações no padrão de sono e apetite, sentimentos de culpa e inutilidade, pensamentos de morte, atenção diminuída, além de marcado prejuízo no funcionamento social e outras áreas da vida.
Nos últimos anos, diversas pesquisas foram desenvolvidas a fim de identificar os principais fatores biológicos associados à depressão. Em recente publicação na revista Nature Aging, um estudo de pesquisadores brasileiros e franceses identificou uma possível causa neurobiológica da depressão: a redução na capacidade de “reciclagem” dos neurônios.
Sob a coordenação conjunta do Professor Pierre-Marie Lledo, do instituto francês Pasteur, e do psiquiatra e pesquisador Flávio Kapczinski, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi conduzido um estudo que evidencia uma possível conexão entre a depressão e a incapacidade dos neurônios em se renovarem por meio do processo de autofagia neuronal, ou seja, a destruição programada e reciclagem de seus componentes danificados ou envelhecidos.
Os processos bioquímicos envolvidos na autofagia celular são complexos e envolvem várias reações químicas. Os professores Lledo e Kapczinski têm se concentrado em um fator específico, o fator de diferenciação do crescimento 11 (GDF11), que pode influenciar o funcionamento dos neurônios. Este fator tem sido associado ao desenvolvimento cerebral em estágios iniciais da vida, bem como em outros órgãos, mas sua produção tende a diminuir com a idade — em especial na velhice. Em 2014, a pesquisadora Lida Katsimpardi, também do Instituto Pasteur, demonstrou que o GDF11 é capaz de estimular a formação de novos neurônios em ratos, o que sugere que ele pode ter o potencial de reverter o processo de envelhecimento.
Níveis reduzidos de GDFf11 estão associados a depressão em jovens
Durante sua carreira como pesquisador, o psiquiatra brasileiro Flávio Kapczinski publicou diversos artigos científicos que evidenciam uma relação causal entre a neuroprogressão — um processo de envelhecimento acelerado e danos estruturais às células neuronais — e episódios depressivos sucessivos. Em parceria com Lledo e Katsimpardi, pesquisadores dos grupos brasileiro e francês conduziram estudos para investigar o papel do GDF11 na depressão e no envelhecimento. Um quadro crônico de depressão pode resultar em diminuição do volume de certas áreas do cérebro, acelerando o declínio cognitivo e aumentando o risco de outras doenças psiquiátricas, destacando a importância do estudo da neuroprogressão.
Na mais recente publicação do estudo mencionado anteriormente, os pesquisadores obtiveram resultados altamente promissores. Ao administrar GDF11 semanalmente em roedores idosos, eles observaram que a substância teve efeitos protetivos contra a perda de memória e comportamentos depressivos, segundo modelos animais de depressão. Surpreendentemente, os efeitos do GDF11 não foram atribuídos apenas à neurogênese — a formação de novos neurônios — mas também à estimulação da liberação de outras proteínas possivelmente relacionadas ao fenômeno. Além disso, o trabalho demonstrou que níveis reduzidos de GDF11 estão associados à depressão em adultos jovens. Na pesquisa, os cientistas mediram os níveis de GDF11 no sangue de adultos jovens com depressão e observaram uma diminuição em comparação com indivíduos saudáveis. Essa descoberta sugere que a regulação dos níveis de GDF11 pode ser um possível caminho terapêutico para o desenvolvimento de novas estratégias de tratamento da depressão.
De acordo com os autores, a aplicação de GDF11 teve benefícios significativos devido principalmente à estimulação da autofagia celular programada, que permitiu a “reciclagem” dos componentes deteriorados e desgastados dos neurônios. Isso resultou em células mais ativas e capazes de estabelecer conexões interneurais mais eficazes. Essas descobertas fornecem uma compreensão mais profunda dos processos de envelhecimento e depressão, abrindo caminho para possíveis avanços no diagnóstico e tratamento de transtornos mentais. O estudo também expande a compreensão atual da depressão como uma condição biológica que envolve a falta ou ineficiência de neurotransmissores.
Apesar da grande importância de seus resultados, o professor Kapczinski enfatiza que a criação de uma terapia com base no GDF11 para uso em humanos ainda não é uma possibilidade iminente. Embora o GDF11 possa ser visto como um alvo molecular promissor no tratamento da depressão, seus efeitos em estudos clínicos ainda não foram completamente compreendidos. Além disso, o GDF11 possui atividade em vários órgãos e tecidos do corpo, não tendo um efeito específico nos tecidos cerebrais. Portanto, é necessário obter uma compreensão mais ampla sobre o efeito geral dessa proteína no organismo humano.
Segundo Bruno Montezano, do grupo de Psiquiatria Molecular do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (ligado à UFRGS), pesquisas adicionais devem contemplar os níveis da proteína antes e depois de tratamentos antidepressivos em humanos. Os mecanismos celulares de ação dos antidepressivos e da autofagia podem revelar a intrigante possibilidade de que um novo mecanismo antidepressivo tenha sido descoberto. Igualmente, Montezano refere que estudos em grupos populacionais, não clínicos, podem informar sobre correlações entre índices gerais de saúde e os níveis do GDF11, em especial em pesquisas de desenho longitudinal.
O artigo na íntegra pode ser acessado neste link.