A ideia era sair de Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo, para cursar mestrado em Zootecnia em Porto Alegre. Mas a pandemia trouxe empecilhos ao agroecólogo Carlo Guiehl, 29 anos. Após viver em uma Capital acelerada, distante da família, pressionado pelos estudos, isolado em casa e ansioso por causa das mortes por covid-19 e da falta de vacina, foi tomado por uma falta de perspectiva. A angústia se transformou, aos poucos, em depressão. Em busca de melhora, voltou a morar com a mãe no Interior. A mudança no quadro surgiu quando Carlo começou acompanhamento psicológico. Hoje, ele vive com a namorada e trabalha como auxiliar de produção na indústria fumageira. É um duplo sobrevivente: além de lutar contra a depressão, perdeu o pai, um plantador de tabaco, para o suicídio, 10 anos atrás.
— Com terapia, minha qualidade de vida cresceu muito. Tem que deixar o preconceito de lado e encarar. Quem está com depressão não consegue sair sozinho. Consigo agora olhar e encarar coisas que eu não conseguia antes. Eu estou em um caminho de melhora. Estou bem melhor do que há seis meses. E espero melhorar ainda mais. Um dia, talvez, eu volte para o doutorado — diz Guiehl, sentado na sala de sua casa em Venâncio Aires.
Ao longo dos últimos dois anos, psicólogos e psiquiatras alertaram que o mundo viveria uma onda de problemas de saúde mental por conta da pandemia, o maior desastre sanitário do último século que, além de mortes e isolamento, causou desemprego e crise econômica. A expectativa se concretizou, em parte.
Houve de fato aumento nos casos de depressão. Estudo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) mostrou que a doença era presente em menos de 10% dos brasileiros antes da pandemia e passou a ser realidade de 13,5% da população no primeiro trimestre deste ano. No Rio Grande do Sul, eram quase 13% antes da pandemia e, agora, são 16%.
Mas os suicídios, que cresciam ano a ano, mantiveram-se em níveis estáveis durante a pandemia, ainda que em número elevado — são quase 14 mil ao ano no país, ou 38 por dia, segundo dados do DataSUS analisados por GZH. A depressão avançou em todas as faixas etárias, mas o maior aumento foi entre indivíduos de 18 a 24 anos. A piora da saúde mental de jovens preocupa: no Brasil, o suicídio é a quarta maior causa de morte entre brasileiros de 15 a 29 anos, após acidentes no trânsito, tuberculose e violência interpessoal.
— Depois (do início) da pandemia de covid, tivemos a pandemia da ansiedade e da depressão. A ansiedade disparou, e o Brasil já era o país com maior índice de ansiedade do mundo. Mas as pessoas não se dão conta da gravidade. Entre jovens dos 15 aos 19 anos, a maior causa de morte é o suicídio. Morrem mais pessoas nessa faixa etária do que por aids — diz o médico psiquiatra Ricardo Nogueira, coordenador do Centro de Promoção à Vida e Prevenção ao Suicídio (CPV).
O aumento de depressão entre jovens não surpreende quem atende em consultório: a juventude, movida a sonhos de futuro, foi forçada a olhar apenas para o espelho e se encarar sem perspectivas diante da exigência de ficar em casa, de ver familiares morrerem por covid-19, de estudar na frente do computador, de não ter com quem dividir angústias de forma presencial e da dificuldade de obter um emprego.
— Parou a vida noturna, parou poder namorar e flertar, pararam os prazeres que fazem parte da vida "desresponsável" de jovens. A experiência não podia acontecer em nome de manter a saúde de todos à sua volta. Era a ideia de que o tempo parou, de que o jovem estava perdendo tempo na vida e não fazendo nada de novo. Só que, para os jovens, o que é importante é o que está por vir, e é preciso sair de casa para viver sua vida — explica Maria Ângela Bulhões, integrante da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e psicóloga no Hospital Psiquiátrico São Pedro.
Há formas de identificar pessoas com depressão, ainda que muitas escondam bem a tristeza. São comuns alterações na rotina: o indivíduo fica mais em casa ou no quarto, perde o interesse nos estudos ou no trabalho, muda hábitos alimentares ou de sono e perde desejos que costumava ter. Vê-se sem sentido, como se estivesse isolado por uma redoma de vidro, na metáfora da escritora Sylvia Plath. Indivíduos da comunidade LGBT+, rejeitados pela família, e indígenas são mais vulneráveis.
No caso do suicídio, são comuns relatos de que a vida está muito difícil, de que a pessoa gostaria de dar um fim em tudo, de que não vê saída para os problemas e que, por vezes, pensa em morrer. Podem aparecer comportamentos de risco, como uso de drogas, brigar na rua ou beber antes de dirigir. Entre adolescentes, surgem marcas de automutilação.
Lente da realidade embaçada
A auxiliar de cozinha Joseane Leismann, 41 anos, já tentou o suicídio mais de uma vez. Traz na bagagem um histórico de crises familiares, casamento conturbado e sofrimento com preconceito por ter crescido com pele escura em uma região de pessoas loiras e de olhos azuis. A depressão deixou marcas na família: dois primos tiraram a própria vida. Mas o acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Venâncio Aires ajudou a encarar a vida com outros olhos. Hoje, casada em um relacionamento saudável e com uma filha, sente que alcançou melhor saúde mental. Tornou-se evangélica, e a fé lhe dá força nas crises.
— Ganho mais atenção e carinho, me sinto amada e elogiada. Isso mudou minha vida. Quando eu tentava o suicídio, pensava que o mundo ficaria melhor sem mim. Mas hoje sei que isso não é verdade. Se tivesse conseguido, seria uma dor que ficaria para minha família e que nunca passaria. Eu nunca teria conhecido meu netinho. Me considero uma vitoriosa — afirma.
As pessoas se suicidam quando estão muito infelizes e em sofrimento muito intenso, aí sentem que vão se aliviar. Esse sofrimento é cumulativo, e uma gota d'água pode provocar o ato final. Mas já havia muita coisa antes."
STELA NAZARETH MENEGHEL
Professora de Saúde Coletiva
Indivíduos com risco de suicídio merecem atenção. Via de regra, a pessoa sente um sofrimento tão grande que não consegue ver outra saída para seu problema. É como se a lente da realidade estivesse embaçada. A ideação pode estar associada a problemas de saúde mental, como depressão, transtornos de humor ou por uso de drogas ou de álcool, esquizofrenia, transtorno de personalidade ou de ansiedade, entre outros, destaca a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Para essas pessoas, dizem especialistas, é preciso lembrar que para tudo há solução — e que ninguém está sozinho no mundo.
— As pessoas se suicidam quando estão muito infelizes e em sofrimento muito intenso, aí sentem que vão se aliviar. Esse sofrimento é cumulativo, e uma gota d'água pode provocar o ato final. Mas já havia muita coisa antes — diz a médica sanitarista Stela Nazareth Meneghel, professora de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que estudou o suicídio entre gaúchos.
Como ajudar uma pessoa com depressão
- Mostre-se à disposição para escutar e tenha a mente aberta.
- Ouça sem julgamentos e não minimize o sofrimento da pessoa.
- Evite frases como "não é tão grave assim", "já passei coisa pior" ou "você não se esforça o bastante".
- Não demonstre pena e evite frases como "é difícil sua vida mesmo, não sei como você aguenta".
- Não coloque o foco em você. Durante a escuta, não fale sobre você. Escute.
- Reforce o quanto você gosta e ama a pessoa e destaque que ela é importante para você.
- Incentive a pessoa a buscar ajuda de uma psicóloga ou psiquiatra.
- Mantenha o contato periódico para saber como a pessoa está.
- Mostre que você está presente com frases como "estou do teu lado", "estou aqui para conversar" e "tua vida é muito importante".
- Pergunte de que forma você pode ajudar e se prontifique.
- Você enfrenta um momento difícil: ligue para o 188, voluntários do Centro de Valorização à Viva (CVV) estão disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana.
- Se uma pessoa próxima expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério (a maioria das pessoas fala sobre a vontade antes do ato) e encaminhe a pessoa para ajuda de um psicólogo ou psiquiatra.
Procure ajuda
Se não estiver confortável em falar sobre o que sente com alguém de seu círculo próximo, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. O CVV (cvv.org.br) conta com mais de 4 mil voluntários e atende mais de 3 milhões de pessoas anualmente. O serviço funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil (confira os endereços neste link).
Você também pode buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde mais próxima de sua casa, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, ou em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado. A lista com os endereços dos CAPS do Rio Grande do Sul está neste link.
Leia também