A pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) aponta que Porto Alegre é a capital brasileira com mais casos de depressão. Embora o trabalho não relacione os dados apurados com a situação antes da pandemia, é possível dizer que os casos de depressão aumentaram em 2021.
O coordenador da coleta de dados do estudo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rafael Moreira Claro, sugere que a pandemia aumentou, sim, a depressão entre brasileiros.
O estudo apontou que 11,3% dos brasileiros já foram diagnosticados com a doença. Em entrevista a Zero Hora, Claro lembrou que a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 - portanto, antes da pandemia — registrou que 10% dos brasileiros tinham diagnóstico de depressão. Na pesquisa anterior, seis anos antes, em 2013, eram 7,6%.
Só o que mais chamou a atenção dos pesquisadores não foi o aumento na população em geral, e sim que a depressão estava presente em todas as faixas etárias, e não predominante nos adultos mais velhos e em idosos.
— Tradicionalmente, doenças crônicas como depressão e diabete afetam mais pessoas mais velhas. Mas, na Vigitel, observamos aumento de casos diagnosticados em adultos mais jovens, de 18 a 34 anos, algo que é novo. Credita-se que muito disso tenha ocorrido em função desse período prolongado da pandemia, que foi especialmente complicado para adultos mais jovens que começavam a vida, tinham expectativa para esse período e se depararam com dificuldade no mercado de trabalho e na universidade – afirma Claro.
Norton Rosa Jr., presidente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lembra que, até o surgimento da vacina e a melhora da covid-19, a sociedade viveu um difícil período: medo de morrer, luto pela perda de pessoas próximas, sentimento de impotência, ascensão do discurso de ódio, baixa perspectiva de futuro, descrédito nas instituições e crescimento do desemprego e da desigualdade social.
– A crise econômica jogou muitos em condições de indignidade social. Além disso, há o estresse da vida contemporânea, a cobrança pelos ideais de performance e, especialmente, a falta de esperança no futuro – diz.
Quem não tinha problemas de saúde mental enfrentou momentos de ansiedade e desesperança, e quem já sofria de depressão e ansiedade viu os sintomas piorarem, avalia Cristiane Stracke, médica psiquiatra da prefeitura de Porto Alegre. A cidade registrou aumentou na procura por serviços de saúde mental: apenas o pronto-atendimento do IAPI atendeu a quase 9 mil casos de depressão em 2021.
– Na pandemia, tivemos aumento da depressão pelo isolamento, pela perda de estilo de vida, as pessoas se exercitaram menos, mudaram hábitos de vida, enfrentaram luto, perderam emprego e poder aquisitivo. Houve aumento na fila de espera para ingresso no sistema de saúde mental e na procura para acesso às emergências de saúde mental. Também houve aumento significativo no uso de álcool e outras drogas – afirma a psiquiatra.
Você deve lembrar que uma crítica ao distanciamento social afirmava que muitas pessoas perdiam o emprego e se suicidaram na pandemia. A despeito do aumento de depressão, estatísticas oficiais mostram que, na maior parte das capitais brasileiras, não houve aumento de suicídios no período.
Dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, mostram que, das 27 capitais, apenas seis registraram aumento de suicídios de 2020 para 2021 - Porto Alegre, infelizmente, é uma delas.
A capital gaúcha registrou o terceiro maior aumento: 101 suicídios em 2020 e 144 no ano seguinte, crescimento de 42,5%. As maiores altas foram em Boa Vista (incremento de 88%) e Palmas (50%). Na outra ponta, o Rio de Janeiro registrou queda de 80%, Curitiba redução de 49% e Belém, de 35,5%.
A literatura médica aponta que, em tempos de catástrofe, como guerras, o número de suicídios costuma cair porque, frente à ameaça externa, indivíduos veem aflorar o desejo de viver. Mas ainda é cedo para saber como a pandemia impactará a saúde mental dos brasileiros nos próximos anos – e se as taxas de suicídios seguirão em queda na maior parte do país.
Especialistas ouvidos por Zero Hora afirmam que a temida quarta onda da pandemia, prevista como uma enxurrada de novas doenças metais, surgiu, mas não foi um tsunami. Após o aumento de procura por ajuda psicológica no pior momento da covid-19, a prefeitura de Porto Alegre nota estabilização com a melhora da epidemia.
O psicanalista Norton Jr. vê uma luz no fim do túnel: cita a perspectiva de fim da pandemia, a possibilidade da retomada de uma vida mais normal e, em Porto Alegre, o momento de revalorização da autoestima da cidade, com as reformas da Orla do Guaíba.
– A depressão é um sintoma contemporâneo. Precisamos apoiar discursos que deem suporte a diferentes formas de vida e a natureza, que promovam o uso da cidade por todos e o respeito ao outro, além da necessidade de reduzir imperativos de performance e de modelos de felicidade – observa.
Para a psiquiatra Cristiane Stracke, coordenadora da Saúde Mental de Porto Alegre, o trauma da pandemia pode provocar duas reações diferentes na juventude:
– Ou esses jovens adquiriram uma condição muito melhor de lidar com situações de vida complicadas e, daqui para frente, lidarão mais fácil com questões difíceis da vida; ou ficarão com uma marca. Prefiro acreditar na primeira opção: que aprenderam a lidar com a dor. Algo pior que a pandemia, só se for guerra, porque tivemos alta quantidade de mortes e de mudanças na vida. Mas não há como prever – afirma.
Conforme a cobertura vacinal aumentou e a covid-19 abrandou, a advogada Bárbara sentiu uma melhora na saúde mental. Para além de retomar perspectivas de futuro, não está mais, obrigatoriamente, sozinha: se precisa de ajuda e companhia, agora pode buscar o conforto de familiares e amigos, o que lhe era vedado antes, pelo medo de contaminação.
– A companhia e disponibilidade das pessoas é muito bom para mim, isso de saber que tenho uma rede de apoio. Antes, eu não queria me expor nem expor os outros. Talvez a intensidade das crises continue a mesma hoje, mas elas estão mais fáceis de resolver porque tenho para onde recorrer – diz a porto-alegrense.
Homens e mulheres
A Vigitel mostrou que 14,7% das mulheres brasileiras afirmaram já terem sido diagnosticadas com depressão, contra 7,3% dos homens. No sexo masculino, a frequência da depressão cresceu com o aumento da escolaridade.
Em ambos sexos, os cientistas não observaram relação clara entre depressão e idade. Ou seja, não foi identificada uma faixa etária “mais deprimida” –algo incomum, visto que a doença ocorre mais entre os mais velhos.
Norton Rosa Jr., presidente da Appoa, diz que a menor prevalência da depressão em homens esconde a dificuldade masculina em encarar a própria saúde – influência do machismo, que incentiva a esconder vulnerabilidades, algo visto como exclusivo das mulheres.
"Um ponto característico da cultura do gaúcho, e Porto Alegre representa isso, é nosso grau de exigência, crítica e certa intolerância. Em outros Estados, frequentemente se reconhece que o gaúcho é muito trabalhador. Essa rigidez traz consequências psíquicas"
NORTON JR.
PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE (APPOA)
— Mulheres procuram infinitamente mais médicos e vão mais do que homens aos consultórios de psiquiatras e psicanalistas. A possibilidade de diagnóstico de mulheres é muito maior — observa.
A tradutora Fabiana Ribeiro do Nascimento, 30 anos, convive há seis anos com uma “depressão funcional”: é afetada pela doença, mas consegue trabalhar, sair com amigos e interagir socialmente. Ela diz que o isolamento da pandemia a afetou, sobretudo no frio da capital gaúcha:
— Quando começou inverno e falta de sol, fiquei mais recolhida, mais isolada dentro de mim mesma. Não poder sair e ainda estar em momento chuvoso e sem sol baixou meu humor. A pandemia me marcou de forma que eu talvez não mude tão cedo, com essa incerteza e preocupação com a própria saúde, que ainda mantenho. Não sinto que a depressão melhorou pela volta ao “normal”, mas fico feliz de poder ver as pessoas – afirma Nascimento.
Mas isso não quer dizer que homens não sofram. Os dados da Vigitel mostram que a alta prevalência de depressão em Porto Alegre é puxada pelo sexo masculino: é a capital com mais diagnósticos de depressão entre homens e a quinta em mulheres.
Norton acrescenta que outro efeito colateral do machismo gaudério é dificultar que homens admitam as próprias fraquezas e assumam tristezas. Quando o homem ignora traumas e não se sente autorizado a chorar ou sofrer, mais tarde a saúde mental paga o alto preço cobrado pelo esforço em atingir um ideal de “ser homem”.
— Um ponto característico da cultura do gaúcho, e Porto Alegre representa isso, é nosso grau de exigência, crítica e certa intolerância. Em outros Estados, frequentemente se reconhece que o gaúcho é muito trabalhador. Essa rigidez traz consequências psíquicas. Um excesso de cobrança pode estar ligado à depressão: o sujeito coloca um ideal de performance, não atinge, pode ter frustração e melancolia — acrescenta o psicanalista.