A depressão no Rio Grande do Sul não surgiu na pandemia. Historicamente, é o Estado com a maior taxa de suicídios do Brasil. Hoje, desponta na liderança deste ranking (12,4 mortes a cada 100 mil habitantes), o dobro da média nacional. Em seguida, estão Santa Catarina (10,6) e Piauí (9,5), segundo dados do DataSUS analisados pela reportagem. As menores taxas são no Rio de Janeiro e no Pará (4,5 em ambos).
Nem o governo do Estado tem segurança ao explicar por que as taxas são mais altas por aqui. O machismo associado à figura do gaúcho que inibe homens de se mostrarem vulneráveis e buscarem ajuda é fator provável, diz Andréia Volkmer, coordenadora do Comitê Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio e principal nome da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) para o assunto.
— A gente acredita que há uma questão cultural, talvez de o gaúcho achar que consegue resolver as questões de forma mais prática, de não querer mostrar fraqueza. Sabemos de casos de homens que nunca mostraram sinal de sofrimento, por ter vergonha de que isso viria à tona, mas chega uma hora que ele não aguenta mais e, com uma dor psíquica insuportável, acha que sair da vida é a melhor coisa — afirma Andréia.
O frio é apontado por alguns especialistas como possível fator - países escandinavos, com invernos prolongados e escuros, têm altas taxas de suicídio, ainda que dados de 2019 da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrem que os piores números são em países com alta desigualdade social, como Guiana, Coreia do Norte e República Central Africana. O Brasil está em posição intermediária.
O frio, portanto, não define o destino de ninguém. A Suécia, aliás, reduziu taxas de suicídio após elaborar um questionário usado como referência no mundo todo para identificar depressão, o que inclui rastrear se houve caso de suicídio na família, grande fator de risco. Em seguida, o país escandinavo focou na prevenção e no apoio psicológico a quem necessita.
Para combater os índices de suicídio, o governo gaúcho desenvolveu um plano com ações de 2022 a 2025. Entre as iniciativas, prefeituras devem elaborar estratégias municipais de promoção à vida e desenvolver campanhas de conscientização.
A medida vem a calhar: no Rio Grande do Sul, há regiões com taxas de suicídio muito superiores às de países escandinavos. Se na Suécia é de 12,4/100 mil habitantes, a região próxima a Três Passos, Tenente Portela e Iraí chega a ser de 28,6. No Vale do Rio Pardo, é de 20. A média nacional é de 6,6.
Em solo gaúcho, Venâncio Aires, município de 72 mil habitantes, tem a maior taxa de suicídios entre todas as cidades com mais de 50 mil habitantes, de acordo com dados compilados pelo governo estadual. Na sequência, estão São Borja e Vacaria.
A baiana Silvanete Honoria, 53 anos, vive em Venâncio Aires e já tentou o suicídio em meio a um relacionamento complicado. Em 1999, ela havia emigrado de São Paulo para Estância Velha, no Vale do Sinos, por amor. Mas ela conta que ficou isolada quando o ex-marido desapareceu com seus documentos e números de telefones de familiares.
Foi apenas três anos depois, quando terminou o relacionamento após uma promessa à Nossa Senhora, que Silvanete rompeu a solidão. Em busca de suas raízes, voltou à casa em que vivia com o ex-companheiro e encontrou a filha do proprietário. Obteve uma antiga conta telefônica na qual constavam ligações para familiares. Ao telefonar para os números listados, houve grande comoção do outro lado da linha:
— Achavam que eu estava morta — diz, emocionada.
Por intermédio de amigos, ela conheceu o atual marido, com o qual tem uma filha de 17 anos. De sorriso alegre e com riso fácil, Silvanete conta que ainda convive com a depressão, mas que o acompanhamento psicológico ajuda a melhorar.
— Tenho minha casa, tenho minha filha, que é tudo para mim. Hoje posso dizer que tenho uma família. O CAPs é que ajudou a reconhecer isso. As pessoas têm ideia errada da depressão, acham que a pessoa está sempre triste e chorando. Não é assim. Tenho momentos baixo-astral, em que quero ficar sozinha, mas também tenho momentos bons em que gosto de ouvir música e cantar — conta Silvanete, que ainda trata a fibromialgia, doença que causa dores extremas nas articulações.
Clube do Batom
Em busca de curar a depressão, ela participa de uma iniciativa criada pela assistente social Rubia Bucalo chamada Clube do Batom: semanalmente, um grupo de mulheres se reúne no CAPs para melhorar a autoestima. Em alguns encontros, o grupo ocupa a tarde em atividades jamais vivenciadas por muitas: ir à sorveteria, almoçar em um bufê, frequentar um museu.
O início de cada encontro é marcado por um ritual: cada uma pinta os lábios com batom, olha-se no espelho e completa a frase: "Espelho, espelho meu, existe mulher mais…". Quando GZH acompanhou um encontro, em 8 de setembro, as respostas incluíram "existe mulher mais bonita do que eu?" e "existe mulher mais animada do que eu?". A cada frase, todas batem palmas e riem.
Em dado momento, a assistente social pergunta se as mulheres já compraram creme para passar nas mãos em casa, porque não basta se cuidar apenas ali. Mais tarde, reforça que todas são vitoriosas por terem levantado e saído da cama. Uma paciente diz que, antes do Clube do Batom, a última vez que pintara os lábios fora na cerimônia de casamento, décadas atrás.
— No momento em que estão ali, falando delas e olhando para o espelho, elas não sentem dor. O jogo muda quando se reconhecem como mulheres: elas separam o problema delas mesmas — afirma Rubia.
Venâncio Aires criou comitê de prevenção ao suicídio
Os índices de suicídio em Venâncio Aires e outros municípios do Vale do Rio Pardo são altos em comparação a outras regiões, o que levantou a hipótese de que o plantio de fumo, central na economia local, estivesse associado. A região Sul é responsável pela produção de 98% do tabaco nacional, segundo a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra). Estudos apontam uma possível relação de depressão com alguns químicos presentes em agrotóxicos usados na lavoura do tabaco. Pesquisa de 2011 feita pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) com 2,5 mil agricultores de São Lourenço do Sul, na Região Sul, mostrou associação entre ideação e suicídio à intoxicação por agrotóxicos e à doença do tabaco verde, que aparece em quem manuseia folhas da planta.
— Identificamos quem aplicava agrotóxico, a quantidade de vezes que aplicava, quais eram as formas de exposição, quem tinha mais e menos exposição. A turma que tinha mais transtornos mentais era a turma com exposição mais intensa aos agrotóxicos e também à doença da folha verde – conta uma das autoras da pesquisa, a médica Neice Faria, professora de Medicina do Trabalho na UFRGS e pesquisadora da UFPel.
Pesquisa de 2014 da UFRJ no Alagoas, onde também há plantio de fumo, também viu maior risco de suicídio entre agricultores do que habitantes da zona urbana e ainda maior quando o trabalho era com tabaco. Já um estudo da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) mostrou que a presença do manganês, componente químico presente em agrotóxicos, também estava associada a problemas de saúde mental. Mas a geógrafa Virginia Elisabeta Etges, professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Unisc e coordenadora da pesquisa, faz uma ressalva importante:
— É muito comum o raciocínio no meio rural de que a dívida está no nome do pai de família. Quem se suicida, em geral, é ele, no afã de livrar a família da dívida. Para mim, fica claro que são fatores de ordem socioeconômica associados ao fator agrotóxico no meio rural.
Por meio de nota enviada a GZH, o presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (Sinditabaco), Iro Schünke, diz que “atrelar casos de suicídio ao uso de agrotóxicos na cultura do tabaco é uma afirmação inconsistente” e que “estigmatizar uma cultura, no caso o tabaco, por algo tão complexo seria, no mínimo, leviano”.
A entidade cita que, do ranking de 10 municípios gaúchos com maior taxa de suicídio, apenas três têm produção de tabaco. O Sinditabaco cita que a região da Alemanha de onde vieram os imigrantes localizados no Vale do Rio Pardo também apresenta altas taxas de suicídio: “Há um fator genético que já foi comprovado e não tem qualquer relação com o cultivo do tabaco”.
A nota faz referência à entrevista de um médico psiquiatra, segundo o qual São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, está ao lado de Venâncio Aires entre as cidades com maior índice de suicídio do país. “Dois públicos correm maior risco: indígenas e agropecuários. E por um motivo que faz todo o sentido: o isolamento social. Isso se comprova também no mundo. Entre os países que lideram o comportamento suicida estão a Groenlândia, com sua população de esquimós, seguido pela Guiana, com a população de índios”.
A prefeitura de Venâncio Aires reconhece que a taxa de suicídios é alta. Para profissionais da saúde mental, além de fatores já citados, há a cultura alemã e a religião protestante, marcadas pelo perfeccionismo e pela baixa tolerância a contrair dívidas.
— Não há como associar o suicídio apenas a uma questão. São múltiplos fatores para cada caso. Às vezes, o suicídio é associado a uma doença crônica, a um conflito familiar, a problemas financeiros, ao envelhecimento, a um transtorno mental. Em 2021, uma minoria dos casos foi de pessoas ligadas ao fumo — diz a psicóloga Zamara Silveira, coordenadora do Comitê de Prevenção ao Suicídio do município.
Com a criação do comitê, a prefeitura passou a realizar palestras em escolas e empresas. Servidoras do SUS vão à casa de quem tentou o suicídio ou perdeu familiares. O luto de quem fica recebe especial atenção: há um “grupo de sobreviventes” que se reúne para compartilhar as dores.
É o caso da arrecadadora de pedágio Aneline Patrícia da Luz, 34 anos, que perdeu o irmão Joy (pronuncia-se Jôe) Alexsander, 16, há cinco anos. Ao receber GZH, ela mostra com orgulho uma cadeira e um cinzeiro de madeira que o irmão, marceneiro, fabricou. Na parede do quarto, fotos dos irmãos decoram um painel. Quando Joy partiu, a família ficou desnorteada e ainda se viu julgada por conhecidos. Aneline se culpa por não ter voltado para casa a tempo, um sentimento comum entre quem fica. A cada suicídio, 60 pessoas ficam profundamente afetadas, estima a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
A melhora veio após consultar com uma psicóloga do SUS e ao participar dos encontros com sobreviventes. Para Aneline, falar sobre o assunto e conscientizar sobre saúde mental é uma forma de sentir-se útil.
— O Joy era muito alegre, muito brincalhão. Hoje, consigo falar sem chorar. Acho que a gente cria cascas, mas ainda tenho dias tristes. Parece que falta a peça de um quebra-cabeças. Quem se suicida acha que está acabando uma dor, mas vai começar uma dor muito grande em outras pessoas — diz Aneline.
O psiquiatra Ricardo Nogueira destaca a importância de prefeituras expandirem o número de postos de saúde com psicólogos e psiquiatras. O Interior tem menos oferta de atendimentos do que grandes cidades – em Venâncio Aires, algumas propriedades rurais ficam a 50 km de distância da zona urbana.
No mestrado, Nogueira estudou os resultados da implementação de políticas públicas em Venâncio Aires, Santa Cruz do Sul, São Lourenço do Sul e Candelária. Ao analisar 180 casos, concluiu que “quando existe ou estão disponíveis o apoio e os investimentos necessários por parte do gestor municipal de saúde, pode-se obter progresso, como a diminuição dos índices do suicídio”.
Como ajudar uma pessoa com depressão
- Mostre-se à disposição para escutar e tenha a mente aberta.
- Ouça sem julgamentos e não minimize o sofrimento da pessoa.
- Evite frases como "não é tão grave assim", "já passei coisa pior" ou "você não se esforça o bastante".
- Não demonstre pena e evite frases como "é difícil sua vida mesmo, não sei como você aguenta".
- Não coloque o foco em você. Durante a escuta, não fale sobre você. Escute.
- Reforce o quanto você gosta e ama a pessoa e destaque que ela é importante para você.
- Incentive a pessoa a buscar ajuda de uma psicóloga ou psiquiatra.
- Mantenha o contato periódico para saber como a pessoa está.
- Mostre que você está presente com frases como "estou do teu lado", "estou aqui para conversar" e "tua vida é muito importante".
- Pergunte de que forma você pode ajudar e se prontifique.
- Você enfrenta um momento difícil: ligue para o 188, voluntários do Centro de Valorização à Viva (CVV) estão disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana.
- Se uma pessoa próxima expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério (a maioria das pessoas fala sobre a vontade antes do ato) e encaminhe a pessoa para ajuda de um psicólogo ou psiquiatra.
Procure ajuda
Caso você esteja enfrentando alguma situação de sofrimento intenso ou pensando em cometer suicídio, pode buscar ajuda para superar este momento de dor. Lembre-se de que o desamparo e a desesperança são condições que podem ser modificadas e que outras pessoas já enfrentaram circunstâncias semelhantes.
Se não estiver confortável em falar sobre o que sente com alguém de seu círculo próximo, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. O CVV (cvv.org.br) conta com mais de 4 mil voluntários e atende mais de 3 milhões de pessoas anualmente. O serviço funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil (confira os endereços neste link).
Você também pode buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde mais próxima de sua casa, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, ou em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado. A lista com os endereços dos CAPS do Rio Grande do Sul está neste link.