Ela foi diagnosticada com HIV na década de 1990. Naquele ano, a aids levou Cazuza e, no seguinte, mataria Freddie Mercury. O estereótipo de quem tinha a doença era da pessoa desregrada, que abusava do sexo e das drogas. Ana Silva (nome fictício) contraria o senso comum: foi infectada pelo namorado, primeiro e único parceiro, com quem se relacionava havia quase uma década. Tinha apenas 25 anos quando recebeu a notícia do médico.
— Quando vem o diagnóstico, abre um buraco na terra e tu te enfia lá dentro — recorda.
Naquela época, era habitual que a reação de quem se descobria soropositivo fosse de pânico. Pouco conhecida, a aids soava como um aviso de que a morte chegaria antes da hora. Desde 1981, quando a medicina identificou uma infecção rara que destrói o sistema imunológico, houve avanços na descoberta e no tratamento do vírus que provoca a doença. Tanto que Ana vive bem e saudável aos 56 anos — diz que tem mais tempo de vida com HIV do que sem.
— Antigamente, se falava que quem pegava morria e que era doença de homossexual. E aí começou a aparecer mulheres como eu, que pegaram dos seus companheiros — conta.
São 32 anos vivendo com HIV. Nesse meio tempo, Ana perdeu o namorado, que morreu pouco depois de ser diagnosticado, e precisou aprender a lidar com a ameaça de desenvolver uma doença fatal. Foi buscar ajuda no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, um dos centros de referência no tratamento do HIV e da aids. Começou tomando AZT, primeiro antirretroviral aprovado para controlar a infecção, conhecido por provocar intensas reações adversas. Lembra que o medicamento precisava ser importado — como não tinha dinheiro para bancar o remédio, a família fazia uma vaquinha para garantir a medicação.
No início, a gente precisava dizer para os pacientes que a aids não era uma sentença de morte. Hoje, podemos dizer que a pessoa só vai morrer se ela quiser.
EDUARDO SPRINZ
Chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Também recorda de tomar um outro antirretroviral do tamanho de uma moeda. Para conseguir engolir, esmagava a pílula e disfarçava o gosto com goles de suco de maçã. Hoje usa uma combinação de remédios que não dão efeitos negativos e é regrada no horário: programa o despertador do celular para não esquecer.
Mas houve um momento em que, percebendo que nada de ruim lhe acontecia, relaxou na medicação. Ao consultar com Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do Clínicas, tomou um puxão de orelha. Ouviu do médico que, se ela não estava seguindo o tratamento correto, era necessário que procurasse outro profissional, já que ele não estava sendo compreendido nas suas orientações.
Eu não tenho nada. Acho que sou abençoada. Mas também contribui para isso. Quem tem HIV precisa ter disciplina para fazer o tratamento dar certo.
ANA SILVA
Paciente (nome fictício)
Sprinz acompanha pacientes com HIV desde 1989, quando foi fundado o ambulatório de HIV do hospital. Garante que hoje quem não estiver indetectável, com carga viral insuficiente para transmitir o vírus, é porque não está tomando a medicação como foi prescrito.
— No início, a gente precisava dizer para os pacientes que a aids não era uma sentença de morte. Hoje, podemos dizer que a pessoa só vai morrer se ela quiser — afirma o médico.
Medo de sofrer discriminação
Ana casou de novo, saiu de Porto Alegre para morar em um sítio na Região Metropolitana, onde pode ter uma rotina mais tranquila perto da natureza. É uma prova de que a ciência conseguiu controlar uma doença.
— Eu não tenho nada. Acho que sou abençoada. Mas também contribuí para isso. Quem tem HIV precisa ter disciplina para fazer o tratamento dar certo — diz.
Quem aprendeu a cuidar da saúde por causa do HIV foi Ricardo Pereira (nome fictício), 59 anos. No passado, ele gostava de frequentar os bares da Avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, e de usar drogas pesadas. Não ficou tão assustado ao receber o diagnóstico em 1998, aos 36 anos. Sabia que podia ter se contaminado, já que andava com pessoas que tinham "a tia", gíria da época para aids. Foi infectado usando seringa compartilhada.
Ricardo precisou parar com tudo para se tratar. Chegou a tomar antirretrovirais pesados, que o deixavam "grogue". Afeito a luta, motos e cachorros de raça, seguiu praticando boxe e cuidando do corpo. De cinco comprimidos por dia, passou para três. Os medicamentos pararam de causar mal estar. A cada seis meses, vai ao Clínicas para fazer os exames e conversar com os médicos.
— O doutor Sprinz é uma lenda no papo do HIV — brinca.
— Tu que é uma lenda, cara. E uma lenda viva — responde o infectologista.
Assim como Ana, Ricardo está indetectável e pode viver tanto quanto qualquer pessoa sem HIV. Têm personalidades diferentes, mas compartilham algo em comum: o receio de sofrer discriminação. Por isso, pediram para trocar os nomes na reportagem e que as fotos fossem feitas apenas dos detalhes do corpo, sem risco de serem reconhecidos.
— Ninguém sabe, só minha mãe e minhas irmãs, e isso depois de muitos anos. Não contei porque tinha medo de perder as pessoas. Se elas ficassem sabendo que a gente tinha HIV, elas sumiam de perto. Não é como o câncer — diz Ricardo.
Ana diz que não quer ser alvo de compaixão ou mesmo de hostilidade nessa altura da vida:
— Não tenho vergonha. Tenho receio de como os outros vão lidar. Não quero enfrentar pessoas preconceituosas.
Em 40 anos, o HIV ganhou medicação adequada, e os soropositivos, qualidade de vida. Restam duas esperanças: a cura e o fim do preconceito. Sprinz reflete:
— Se tiver cura, talvez seja mais fácil falar em HIV.
Os desafios e o futuro da luta contra o HIV
Embora o HIV esteja perdendo o estigma de infecção que acomete somente homossexuais, homens que praticam sexo com outros homens ainda são os mais vulneráveis. Segundo o mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, dos 381.793 casos notificados no Brasil de 2007 a junho 2021, 69,8% são de homens e 30,2% são de mulheres.
Entre o público masculino, 52,1% dos casos são infecções decorrentes de relações homossexuais ou bissexuais e 31,0% de relações heterossexuais, praticadas com mulheres. Já entre elas, 86,8% se infectou por relações heterossexuais, praticadas com homens.
O mesmo relatório aponta que houve 32.701 novas infecções pelo HIV apenas em 2020, sendo que, no ano anterior, foram diagnosticados 41.909 novos casos — uma redução de 28,15%, mas existe a ressalva de subnotificação por causa da pandemia.
O desafio é fazer com que qualquer pessoa de vida sexual ativa faça o teste para descobrir se é ou não soropositivo. Quanto mais cedo receber tratamento, mais fácil será garantir que o HIV ficará indetectável no organismo, quando o paciente devidamente medicado já não replica mais o vírus.
No entanto, existem barreiras que dificultam o diagnóstico. Enfermeira do Centro de Testagem e Aconselhamento Santa Marta, uma das três unidades de saúde de Porto Alegre que fazem tratamento e prevenção ao HIV, Karen Furlanetto acostumou-se a ver pacientes tendo reações que variam entre o preconceito e o medo da morte:
— No primeiro momento, as pessoas reagem com medo da morte e vergonha. E isso se soma ao preconceito. Quando o paciente infectado é heterossexual, ele diz: "Eu vou morrer e, se eu não morrer, vou ser rechaçado pela sociedade".
Morrer de HIV é algo que fica cada vez mais difícil, graças às conquistas da medicina. Segundo o infectologista Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o jogo mudou no fim da década de 1990, quando, ao combinar três antirretrovirais, foi possível tornar a carga viral indetectável e impedir que a infecção levasse à morte. Depois, vieram medicamentos mais atualizados, com menos efeitos adversos. O próximo passo é garantir uma medicação que pode ser tomada com menos frequência, e não todos os dias, como acontece hoje.
— O que queremos para o futuro? Uma substância que possa ser utilizada uma vez por mês, ou a cada quatro meses, ou a cada seis meses — projeta Sprinz.