Fernando Neubarth*
Movimentos de conscientização para a prevenção de doenças podem ser classificados displicentemente como atitudes simpáticas. Mas o medo quando a água bate nos tornozelos torna-os sublimes. Não é preciso, no entanto, estar dentro, para enxergar o que é luz e o que é sombra. Há vidraças, janelas e, mesmo que se cerrem os postigos, isso também pode ser revelador. A capacidade de ver, mais do que olhar, colocando-se no lugar do outro, denomina-se empatia. Algo que o inglês John Donne resumiu, de forma mais direta e consequente, ainda no século 17, num poema definitivo: "E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti".
Num momento providencial, mais precisamente no dia 28 de abril de 2019, a publicação, apenas três dias antes, de um artigo na conceituada revista New England Journal of Medicine pareceu um presente do acaso. Considero um dever compartilhá-lo. A autora, a australiana Susan P. Walker, professora de obstetrícia e ginecologia, fora surpreendida um ano antes com o diagnóstico de um câncer de mama. Aproveitando a experiência pessoal aliada ao conhecimento teórico que até então lhe servira apenas num dos lados do front, ela construiu uma generosa reflexão. Valendo-se de uma conhecida representação gráfica chamada Característica de Operação do Receptor (Curva ROC), a doutora Susan coloca as forças que por uma lado amedrontam e, obviamente, ameaçam, mas também buscam preservar a vida, impostas pelo câncer e seus tratamentos, num eixo vertical; em outro, horizontal, aquilo que determinará os dias nesse percurso: o tratamento e suas complicações, efeitos colaterais, interrupção de trabalho e impacto em relacionamentos, a sensação de vulnerabilidade, o medo que possa se perder a nossa identidade.
Num paralelo ao que aprendemos em relação à pandemia, a necessidade de achatarmos e alongarmos a curva. A resultante é como "realmente" se sente o paciente. Dependerá, evidentemente, de determinados fatores tais como o estágio da doença e a precocidade no diagnóstico e no início do tratamento. Esse é um dos grandes objetivos de campanhas de conscientização como a do Outubro Rosa.
Precisamos enfrentar a doença e investir em melhores terapias, e isso vem sendo feito, uma medicina mais precisa e personalizada. As boas novas é que a área abaixo dessa curva pode ser manipulada. Enquanto a doença segue intimidadora e as opções terapêuticas, ainda que apresentem permanentes avanços, sigam indicações específicas, há uma crescente e comprovada amplificação de oportunidades de "achatar a curva". Em busca de dar qualidade aos dias de tratamento e à própria vida – durante e depois do tratamento.
Por exemplo: a prática de exercícios físicos é agora reconhecida como crucial para melhorar a sobrevivência e o bem estar dos sobreviventes ao câncer. Meditação e atenção plena podem minorar a maré de agitação, insônia e ansiedade. Quando estamos doentes, é preciso evitar a armadilha de falsas expectativas, algumas são impostas pelos outros, mas muitas geradas por nós mesmos. O valor da bondade e da empatia nos cuidados de saúde é incomensurável. Passado um ano e todas as etapas do tratamento, a doutora Susan diz que não saberia dizer o quanto toda a gentileza e a sabedoria das pessoas que cuidaram dela foram decisivas. Assim também a empatia daqueles que estão por perto e que não exigem ouvir sempre boas notícias, o que mostra que não é só a gravidade da doença e o poder terapêutico do tratamento que importam. Ela também aprendeu da maneira mais difícil que os médicos não são super-heróis, são tão frágeis e vulneráveis quanto todo mundo. "Todos precisamos olhar para além de nós mesmos. Nossas famílias, nossos amigos e nós, nós mesmos, precisamos de nós inteiros. Esse será o fator mais determinante para achatar a nossa curva e empurrá-la para a esquerda. Devemos dar atenção a tudo que respeite e possa influenciar esse achatamento."
Não é só sobre câncer, vale para outras doenças crônicas e também para esse clima de estranhamento, temor e espanto.
Ela termina contando que, cumpridas todas as etapas do tratamento, sua filha perguntou se a vida estava melhor. As incertezas persistem, ressalva ela, ainda assim, se pega concordando. Faz lembrar as cenas iniciais de O Mágico de Oz, quando a casa finalmente se acomoda após um tornado. Dorothy abre a porta e o filme, em preto e branco, subitamente se torna colorido. É isso que ela sente. "A vida se torna ao mesmo tempo mais vibrante e mais desanimadora, mais rica e mais desafiadora, mais maravilhosa e mais exaustiva, mais segura e ainda mais incerta." A existência em seu espectro de cores.
*Médico e escritor