Ela perdeu os cabelos, os cílios e as sobrancelhas nos últimos meses, mas fincou o pé quando o câncer ameaçou roubar sua marca registrada: aquele sorrisão conhecido dos fãs do Globo Esporte, na RBS TV. Em janeiro, Alice Bastos Neves recebeu uma notícia que fez sua vida virar do avesso, antes mesmo da pandemia se instalar no Brasil. Então com 35 anos, a jornalista foi diagnosticada com um tumor maligno na mama após um exame de rotina.
E o desafio se agigantou com o passar dos meses: cirurgia, quimioterapia e, ainda, sessões de radioterapia. Mas sabe o que Alice fez? Escalou o alto-astral que leva para a casa dos gaúchos todos os dias. Decidiu que o melhor seria continuar trabalhando durante todo o processo, abriu o jogo sobre seu estado de saúde ao vivo na TV, compartilhou nas redes sociais sua nova rotina e passou a fazer sucesso com as perucas coloridas em fotos na internet. E mais: seu novo visual conquistou um torcedor fanático de cinco anos. Apaixonado pela careca da mãe, Martin está decepcionado com os fios que já começaram a aparecer.
– Tem uma coisa que ficou marcada entre nós. Ele dorme fazendo carinho na careca e também gosta de dar beijo. Ele é supercarinhoso comigo e, quando quer me dar um carinho, diz: "Vem cá, mãe, pro beijo na careca" – conta a apresentadora, que já era um dos nomes engajados nas ações do Outubro Rosa, para conscientização do câncer de mama, no Estado.
Foi cercada pelo amor da família, principalmente da mãe, Míriam, e do pai, Edmundo, que a jornalista se sentiu forte novamente para assumir o comando do programa esportivo direto do estúdio. Depois de passar uma temporada na casa dos pais, também já recuperou o vigor para voltar ao seu canto junto do filho e retomar a vida como costumava ser. Oito meses após o diagnóstico, revela que ainda precisa se convencer de que era o alvo das milhares de mensagens recebidas, das homenagens de clubes, jogadores e técnicos – incluindo nomes como Renato Portaluppi, do Grêmio, e D’Alessandro, do Inter. A corrente positiva fez a diferença para Alice não se abater nas horas ruins que, afirma, não foram poucas.
Nesta entrevista para Donna, a jornalista fala sobre a decisão diária de encarar a batalha contra o câncer com leveza, revela que perder os cabelos foi um dos grandes desafios do processo e conta o que vai levar dessa experiência:
– É clichê, mas é transformador mesmo. Ninguém entra e sai dessa doença do mesmo jeito.
Oito meses após o diagnóstico, como você está?
A minha terapeuta me define como "uma guria quando compra o primeiro sutiã" (risos). Estou muito feliz. Fiz a primeira sessão de quimioterapia, e, uma semana depois, começou a pandemia. Como sou eu e o meu filho, Martin, não teria como dar conta da rotina da casa, do tratamento, tudo sozinha. Então, durante os meses de tratamento, mudei para a casa dos meus pais, que foram maravilhosos. Quando retomei o Globo Esporte, ao fim da quimioterapia, voltei para a minha casa. Estou vivendo um momento muito legal, com sentimento de fim de ciclo e de recomeço de uma história que já vinha sendo vivida, mas que foi interrompida. Consigo fazer coisas simples, organizar o armário, lavar a louça, fazer uma janta. Quando somos tomados pela doença, no sentido de ficar vivendo ela intensamente, de ficar mais isolada, nos questionamos se temos capacidade para fazer o que fazíamos antes. Tenho 36 e faz alguns anos que essa é a minha rotina, mas bateu a dúvida.
Dá para dizer que está curada?
Quando fiz a cirurgia e tirei o nódulo, meu médico disse: "Tu estás curada, o câncer acabou aqui". Só que ele disse que sou muito nova e, por conta disso, o meu oncologista indicou fazer a quimioterapia como prevenção ao retorno. A radioterapia, que estou fazendo agora, também tem essa intenção. É uma sessão por dia. Daqui a algumas semanas termino o tratamento por completo.
Como foi o retorno ao estúdio do Globo Esporte?
O trabalho é uma parte muito importante da minha vida. Quando tive o diagnóstico, passado o choque inicial, conversei com a minha mãe e falei: “Quero que o câncer e o tratamento sejam apenas mais uma coisa da minha vida". Tenho trabalho, meus pais, meu filho, casa e quimioterapia para fazer. Não queria que o câncer tomasse conta da minha vida. Como o trabalho me faz muito bem, optei por não parar durante tratamento. O estúdio se torna emblemático porque optei por dividir com as pessoas que tive o diagnóstico. Poder voltar depois de ter concluído a parte mais difícil, que é a quimioterapia, foi muito importante. Pela autoestima, por me sentir bem, por ver a vida sendo retomada e que continuava ali para ser vivida do mesmo jeito. Decidi retomar com todos os cuidados.
A pandemia transformou o câncer em um desafio ainda maior ou tornou-se uma oportunidade de ficar mais perto da família?
A pandemia é muito ruim para todo mundo em qualquer instância, mas, por um lado, eu tinha que ter ainda mais cuidados do que todas as outras pessoas, porque minhas defesas ficavam muito baixas. Se por um lado tinha que ter mais cuidado do que os outros, o isolamento ajudou a me dedicar ao tratamento. No dia em que sai da casa dos meus pais, peguei um compilado das fotos que tiramos juntos no período e fiz um livro para eles. Mandei imprimir e fiquei pensando: que nome vou dar? Ficou Dias de Amor. Porque, acima da doença, da dor, que existiu e que foi forte e difícil, teve momentos muito intensos. De meu filho de cinco anos me ver chorando e me dar a mão e perguntar se eu queria ajuda. Mas, acima de tudo isso, teve muito amor. Foram dias de briga e discussão também (risos). Voltar para a casa dos pais, exercendo um papel de filha mais intenso ainda. Talvez a grande lição é que precisamos das pessoas e fortalecer vínculos, valorizar quem está ao nosso lado. Fiquei frágil, sou aquela pessoa que sempre cuida das outras, sou autossuficiente, não gosto de pedir ajuda. E isso tudo está sendo importante para reconhecer que precisamos do outro.
Como foi lidar com esse turbilhão ao lado do Martin?
Quando tive o diagnóstico pensei nele na hora. Primeiro, agradecendo muito por não ser com ele. Só pensava nisso: “Eu me viro, se fosse com ele, estaria destruída". Depois, precisei entender como dividir isso. Conversei com uma mãe que tinha tido câncer e que tinha uma filha. Perguntei a estratégia e achei legal. Na verdade, sempre que o Martin está gripado ou doente, explico que tem um bichinho invisível. Daí usei essa mesma tática. Disse que um bichinho muito maluco estava em mim e que ia deixar a mamãe carequinha. Ele achou graça. No fim das contas, para a criança, essa parte física é a que mais chama atenção. Ele é o maior apaixonado pela minha careca, está frustradíssimo que o cabelo vai crescer (risos). Mas tivemos momentos difíceis, ele viu coisas que eu não gostaria, como os efeitos da quimio. Ele foi muito forte e muito valente. Lembro de ele dizer: "Vó, vem que a mãe tá com dor, vem que a mãe tá chorando". Tentei manter muito a energia alta.
Você participou da Caminhada das Vitoriosas nos últimos anos. Este Outubro Rosa terá um significado ainda mais especial?
Foram quatro ou cinco anos de Caminhada das Vitoriosas. Vou em cima de um trio elétrico com o microfone perguntando: “Tem vitoriosa aí? Vamos caminhar pela vida, falar de prevenção e de cuidado". Engraçado, quando veio o diagnóstico, pensei: “Esse ano vou no chão, não no trio elétrico". Claro que não vai acontecer, a caminhada será adaptada na pandemia. Acho que nunca me senti diferente daquelas mulheres, é um mar cor-de-rosa. Mas, ao mesmo tempo, a gente nunca acha que vai acontecer conosco. Descobri em um exame de rotina. O que eu gritava sobre prevenção cumpria à risca, sempre fiz os exames periodicamente, já fazia algum tempo que tinha fibroadenomas (nódulos sem risco), que são fibroses. Quando veio o diagnóstico, não teve a pergunta: por que comigo? Sou igual a qualquer mulher. Mas acho que passamos a nos colocar no lugar do outro. Nunca tive medo de morrer, em nenhum momento achei que ia morrer disso. Minha postura foi mais de querer saber o que precisava fazer dali para frente. Assim como fiz os exames preventivos, o tratamento foi muito assim: o que precisa ser feito? Quais médicos? Não fui atrás do Google, confio nos meus médicos.
No diagnóstico, a ficha caiu na hora ou foi um processo?
Estava completamente fora do grupo de risco. Sem histórico familiar, amamentei, era jovem, tinha 35 anos quando descobri o câncer. Fiz a ecografia mamária de rotina, e a médica indicou uma biópsia. Tinha um nódulo recente, e já tinha sentido uma bolinha, era bem rente à pele na mama direita. Fizemos a biópsia no dia 17 de janeiro, no dia do aniversário do Martin, e no dia 20 tive o resultado. Tinha uma gravação superanimada para fazer no Globo Esporte, era uma paródia no Centro, cantando. Quando estava chegando à Rádio Gaúcha para seguir com a gravação, a minha médica me ligou e pediu para ir ao consultório. Disse: “Doutora, se tu está me chamando é porque não temos boas notícias". Ela confirmou. Só que eu precisava gravar a paródia! Não sei o que aconteceu, deletei a informação, terminei meu trabalho sorrindo. Só quando entrei no carro para ir embora que liguei para a minha mãe e perguntei se ela queria ir comigo. Fomos anestesiadas, sem derramar uma lágrima. Só chorei mesmo quando falei com meu irmão, Felipe. Ele mora na França, e somos muito próximos. Foi um dos momentos mais difíceis dividir isso com ele e também ver minha mãe caindo um pouco, ela é uma rocha.
Espontaneidade, largo sorriso e alto-astral estão entre as suas marcas, inclusive durante o tratamento. Encarar isso com leveza foi uma decisão consciente?
Esse astral mais alto é uma característica minha, gosto de ser assim. Mas, no tratamento, mais do que ter uma intenção, é uma decisão manter o alto-astral. Me permiti cair em vários momentos, mas as levantadas foram na base da leveza, do bom humor. Não é “Vou ver se vou conseguir ficar numa boa". Foi: “Vou ficar numa boa". Não é que eu seja melhor ou pior, cada pessoa passa por isso de um jeito. Cada um leva como conseguir, é o sobreviver.
Qual foi o momento mais difícil?
A quimioterapia é muito pesada. Nessa história do alto-astral, esqueço rápido as coisas mais difíceis (risos). Voltei em uma médica recentemente e ela perguntou da quimio. Eu disse: “Foi tranquila". Ela: “Não foi, teu oncologista me contou que teve vários efeitos colaterais extras, até inesperados”. Dou uma esquecida (risos), por isso é difícil falar dos piores momentos. A quimio tem efeitos colaterais que podem dar em algumas pessoas, e eu tive episódios de ter que ir tomar medicações e ter atendimento no hospital, mas não precisei internar.
Dois medos costumam ser comuns às mulheres com câncer de mama: retirar o seio e ficar sem os cabelos. Como foi para você?
Nunca tive medo de retirar a mama, desde o início não foi uma questão levantada pelos médicos. O que pensei mesmo foi no cabelo. Nem tinha feito a cirurgia e já tinha ido em uma loja de peruca. Quando decidi dividir com as pessoas o diagnóstico, lembro que pensei em falar no programa, avisar as pessoas, e simplesmente fazer o tratamento sem ficar mencionando isso toda hora. Só que a gente começa a viver o tratamento e a conviver com pessoas que estão passando ou passaram por coisas parecidas, e a gente começa a ver como é importante falar. Pensei: “Chego a tantas pessoas de tantas formas que é até injusto não falar. Se me sinto à vontade, me sinto bem, por que não?
Me permiti cair em vários momentos, mas as levantadas foram na base da leveza, do bom humor.
ALICE BASTOS NEVES
Como foi o dia que você raspou o cabelo?
Acho que estava tão resolvida com aquilo tudo, de que “ok, vamos encarar", que tinha até marcado com as minhas amigas uma cerimônia de corte, com todas na minha volta, com um cabeleireiro, uma festa para a raspagem. Só que, com a pandemia, não foi possível, daí quem cortou foi a minha mãe, em casa. Meu pai ficou de faxineiro, recolhendo cabelo do chão, meu irmão ao vivo comigo lá da França. Fui do cabelo comprido pro zerado. Quando terminou o corte, estava superbem, rindo, brincando, daí meu irmão pegou uma máquina e raspou o cabelo dele. Daí eu desabei de novo. Foram momentos mais bonitos do que de dor, sabe? Na primeira semana da carequice, só usei turbante, porque passava no espelho de casa e me estranhava, não me reconhecia naquela figura. Depois, acostumei e gostei. Mas quando perdi o cílios e a sobrancelha, aí realmente o bicho pegou. De eu não me gostar, me achar estranha e ficar mal com a minha aparência. Me achei com cara de doente, foi muito mais chocante do que o cabelo. Uso cíclios postiços, aprendi a colar todos os dias, um dos benefícios que tirei do câncer (risos), e fiz micropigmentação na sobrancelha.
No Instagram, você mostra a vida sem filtros. Compartilhar com as pessoas esse momento foi uma decisão difícil?
Até acho que, em alguns momentos, coloquei bastante filtro nas fotos do Instagram. Me faltou coragem de mostrar mais da minha vida real neste momento. A foto que eu postei sem cílios e sobrancelha é emblemática, e os comentários eram muito de mulheres, algumas amigas, outras que são figuras públicas também, várias citando a coragem de me mostrar assim. Mas confesso que me faltou coragem muitas vezes. Se olhar para trás, acho que já deveria ter me mostrado sem cílios e sobrancelha antes, sabe? Só que, ao mesmo tempo, temos que respeitar nossos limites. A vida real não cabe totalmente na rede social.
As perucas coloridas são sucesso no seu perfil.
Sabe que a história da peruca colorida começou quando fui na loja e as vi. Sou brincalhona, óbvio que experimentei e mandei fotos no grupo da família. E o Martin disse que queria a rosa, tinha adorado em mim. Daí comprei porque ele pediu e fez sucesso.
Você buscou conversar com pessoas que passaram pela mesma experiência com o câncer? Foi importante no processo?
Busquei alguns perfis, mas não muitos, não sou uma grande craque na internet, nas influencers. Busquei alguns canais como o da Depois do Câncer (Carol Bianchi), que é daqui do Estado. Uma outra menina, a Duda Riedel, não teve câncer de mama, mas compartilhava bastante coisa que achei legal. A Ana Furtado eu acompanhei bastante também neste período de tratamento.
Na primeira semana da carequice, só usei turbante, porque passava no espelho de casa e me estranhava. Depois, acostumei e gostei. Mas quando perdi o cílios e a sobrancelha, aí realmente o bicho pegou.
ALICE BASTOS NEVES
jornalista
Você ganhou mensagens carinhosas de nomes como Renato Portaluppi e D’Alessandro. Além dos milhares de seguidores e telespectadores nas redes sociais. Esperava todo esse carinho?
Esse momento foi muito marcante. O que as pessoas viram na TV foi o Renato e o D’Alessandro, que são dois ídolos gigantescos e, por mais que eu tenha relação profissional com eles, ali são pessoas se conectando com pessoas. Foi realmente muito emocionante. Mas, o que as pessoas não viram neste dia que marcou o fim da quimioterapia, foi que os meus colegas de RBS TV e Globo Esporte, todos gravaram vídeos para mim e me mandaram. As minhas amigas da vida inteira também fizeram um vídeo cantando uma música, foi muito bonito e marcante, me acabei chorando. Agradeci e fiquei pensando “é para mim mesmo?” (risos). Na semana seguinte do diagnóstico, o Brasil de Pelotas entrou com uma faixa no estádio que dizia "Força, Alice". O tempo todo eu retomava isso na minha cabeça, me convencia de que era a pessoa da faixa. Às vezes, penso isso, sabe? São coisas que estão fazendo para mim. Tenho que me lembrar de que esse carinho é real mesmo, é para mim.
Depois de um ano intenso, o que você leva para o futuro?
Acho que mudou completamente a minha maneira de ver as pessoas, no sentido de valorizar quem está comigo na vida. E estou tentando dizer isso sem ser clichê, mas não tem muito como (risos). É clichê, é transformador, ninguém entra e sai dessa doença do mesmo jeito. Comigo a mesma coisa, saio outra Alice. Principalmente dando valor às pessoas que estão junto de mim.