Até então a melhor companheira de muitos quarentenados, a Netflix agora é a mais recente cancelada nas redes sociais. A acusação é grave: estimular sexualização, pedofilia e "adultização" infantil por meio do filme Mignonnes (Cuties, no título em inglês), da diretora franco-senegalesa Maïmouna Doucouré
A obra, recomendada para um público de 16 anos ou mais, retrata a "adultização" da criança Amy, 11 anos. Interpretada por Fathia Youssouf, a personagem vive no subúrbio de Paris com a mãe e dois irmãos pequenos. No contexto de uma família de imigrantes muçulmanos, a pré-adolescente transita entre um mundo conservador e liberal: veste-se de forma pudica em casa e dança de forma escondida uma coreografia provocativa para se integrar à cultura ocidental e parar de sofrer bullying.
A dança é um dos motes do filme: as crianças praticam movimentos de adultas sexualizadas pela cultura pop e usam roupas apertadas para um concurso. Não há nudez, mas a câmera faz closes na área dos genitais e nas nádegas das meninas.
Mignonnes vem sendo alvo de críticas por, supostamente, sexualizar atrizes e promover pedofilia. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, articula para retirar o filme da Netflix. As reclamações ganharam força quando a plataforma divulgou um cartaz da obra com as atrizes em poses sugestivas no lugar do pôster original, no qual as meninas aparecem felizes com sacolas de compras. Ganhou força, no Twitter, a hashtag #CancelNetflix.
Os críticos de cinema, por outro lado, entendem que o filme não promove, mas retrata e denuncia a sexualização precoce, apontada como sintoma de um desencaixe maior da sociedade.
Premiado nos festivais de Berlim e de Sundance (EUA), Mignonnes acabou rendendo à diretora e roteirista Maïmouna ameaças de morte. Em artigo recente publicado no jornal norte-americano The Washington Post, ela argumentou: "Eu queria abrir os olhos das pessoas para o que realmente está acontecendo nas escolas e nas redes sociais, forçando-as a confrontar imagens de meninas maquiadas, vestidas e dançando sugestivamente para imitar seu ícone pop favorito. Eu queria que os adultos passassem 96 minutos vendo o mundo pelos olhos de uma menina de 11 anos, que vive 24 horas por dia. Essas cenas podem ser difíceis de assistir, mas não são menos verdadeiras como resultado".
A polêmica sobre Mignonnes convida ao debate: o público infantil de hoje está mais exposto e vulnerável à erotização? A internet pode "adultizar" crianças, cuja faixa etária vai até os 12 anos, e adolescentes, dos 12 aos 18 anos, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente?
A resposta apontada por especialistas consultados por GZH é: sim, há riscos de as novas tecnologias apressarem o fim da infância, ainda que dançar como cantoras pop não seja necessariamente o problema. O grande risco, apontam, é a desatenção dos pais à vida dos filhos e o uso desacompanhado da internet — algo que se acentuou na pandemia de coronavírus.
Fragilidade psíquica
Anos atrás, era basicamente pela televisão, cujo controle remoto ficava na mão dos pais, que conteúdos adultos chegavam às crianças. Daí saíam as coreografias infantis imitando É o Tchan?, Tiazinha e a Feiticeira, algo talvez não tão diferente das cantoras pop atuais.
Hoje, redes sociais e YouTube concentram milhares de oportunidades de conteúdo inadequado ao alcance das crianças — o que exige mais vigilância dos pais (veja dicas no final deste texto).
A criança que dança está apenas dançando. Quem coloca um caráter sexual é o adulto. Ao reproduzir movimentos que vê em redes sociais ou na TV, a criança não está provocando alguém, não é a intenção dela. Se há uma adultização precoce das crianças, talvez seja porque permitamos.
JEAN VON HOHENDORFF
Doutor em Psicologia pela UFRGS e professor da pós na IMED Passo Fundo
A adultização cobra a fatura mais tarde, com indivíduos suscetíveis a ansiedade, depressão e angústia. A vaidade exagerada na infância ainda pode se reverter em egocentrismo e consumismo, e a dependência do olhar do outro se torna baixa autoestima.
— Crianças estão mais expostas e isso pode levar a uma experiência mais precoce. A passagem da infância para a adolescência tem muita fragilidade psíquica: perde-se a imagem de criança para se formar um adulto, mas sem o aparato psíquico, e por isso o jovem fica tão vulnerável ao olhar do outro para constituir a imagem de si. Uma coisa é lidar com a própria imagem no Instagram aos 30 anos, outra aos 11, quando a pessoa se constitui e meninas, sobretudo, não gostam do próprio corpo — observa Ana Laura Giongo, do Núcleo de Psicanálise da Infância e Adolescência da Associação de Psicanálise de Porto Alegre (Appoa).
Eis o motivo, também, do bullying: no esforço de se descolar dos pais e criar uma identidade própria, adolescentes recorrem aos colegas. Em muitos casos, criticam o outro para formular uma imagem de si: aquela pessoa é feia — portanto, se sou diferente, sou bonito, popular e admirável.
Para a psicologia, vale destacar, crianças têm sexualidade, mas muitíssimo diferente daquela dos adultos, observa Jean Von Hohendorff, doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor do pós-graduação em Psicologia da IMED Passo Fundo. Não é o sentido erotizado dado pelos mais velhos, mas algo mais amplo, ligado a conhecer os próprios desejos e como o corpo funciona, como chupar o próprio dedo.
Dançar um clipe de uma cantora pop faz parte do autoconhecimento: a dança surge como movimento de brincadeira e conhecimento do próprio corpo, sem as intenções maliciosas dos adultos. A priori, não haveria problema em imitar Anitta, Beyoncé ou Kim Kardashian, sobretudo porque essas artistas são vistas, em nossa sociedade, como mulheres poderosas e bem-sucedidas.
— A criança que dança está apenas dançando. Quem coloca um caráter sexual é o adulto. Ao reproduzir movimentos que vê em redes sociais ou na TV, a criança não está provocando alguém, não é a intenção dela. Se há uma adultização precoce das crianças, talvez seja porque permitamos. Dada a sociedade que temos, muito baseada no produtivismo e na qual pais precisam trabalhar muito para sustentar suas famílias, no fim do dia acabam não tendo energia para investir nos filhos. E aí entregam o celular ou tablet para a criança se distrair — afirma Hohendorff.
Desamparadas ou sobrecarregadas
Quando a dança vira problema? Depende do caso e dos valores familiares, destaca Débora Laks, psicóloga especializada em crianças e adolescentes. Jovens imitam astros valorizados pela sociedade — em última instância, muitos meninos sonham em ser jogadores de futebol. Aqui calham algumas questões: a filha está obcecada com as cantoras? Passa o dia a imitar as coreografias e nada mais do que isso? Imita os movimentos na rua, na presença de estranhos, em vez de apenas em casa?
No filme Mignonnes, a situação sai de controle não porque a protagonista Amy apenas dança coreografias de adultos, reflete Débora, mas porque vive desamparada dos pais e age como se fosse a adulta da casa. A coreografia erotizada feita na rua, aos olhos de estranhos, é o sintoma do abandono familiar, e não a causa do problema.
— Não podemos deixar uma criança sozinha em casa, então por que a deixaríamos consumindo livremente conteúdos da internet, que é um mundo? Os adolescentes são vulneráveis a grupos porque não têm identidade pronta, então podem ser levados a fenômenos grupais. É o diálogo com os pais que faz com que não sejam tão vulneráveis. A família tem de auxiliar a depurar o que é bacana — diz Débora.
Não podemos deixar uma criança sozinha em casa, então por que a deixaríamos consumindo livremente conteúdos da internet, que é um mundo? Os adolescentes são vulneráveis a grupos porque não têm identidade pronta, então podem ser levados a fenômenos grupais. É o diálogo com os pais que faz com que não sejam tão vulneráveis.
DÉBORA LAKS
Psicóloga especializada em crianças e adolescentes
Preservar a infância das crianças, alertam especialistas, inclui mais do que regular o uso da internet: também é preciso reduzir certas exigências do mundo adulto, o que inclui não matriculá-los em dezenas de atividades extracurriculares, como esportes e cursos de idioma, como se o filho fosse um produto rentável que se prepara para o mercado de trabalho, avalia o médico psiquiatra Francisco Assumpção, professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
— Adultizar significa também que ela se comporte como um executivo em potencial. Ela pode, inclusive, querer ser poeta. Eu tenho criança que, com cinco anos, chega para mim com déficit de atenção diagnosticado pela escola porque não conseguiu se alfabetizar ao mesmo tempo em português e alemão, sendo que os pais nem falam alemão. Brincar é de suma importância, é um ensaio para a vida adulta — observa Assumpção, também membro do grupo de psiquiatria infantil da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Os pais são a grande referência para os pequenos. A forma como encaram o mundo é que moldará o enquadramento dos filhos, destaca Chrystian Kroeff, professor de Psicologia da Unisinos e especialista em infância. Por isso, pais devem dar o exemplo por atos, não somente por falas.
— A criança, quando brinca, mimetiza e se conecta ao mundo adulto, que a deixa muito interessada. Ela olha e pensa: "que interessante, quero ver como é". Tem um objeto cultural que chama a atenção, e ela quer brincar disso, como uma forma de se colocar nesse universo — acrescenta o psicólogo.
Esse filme da Netflix mostra que, sem os pais por perto, os filhos vão se apegar somente às imagens que estão aí. Pais devem mostrar outros elementos do que é ser mulher. Você pode admirar Anitta e dançar funk, mas também saber quem foi a Frida Kahlo e ter outras referências femininas que componham a ideia de que mulher não é só corpo.
ANA LAURA GIONGO
Psicanalista
Para a psicanalista Ana Laura Giongo, talvez o maior problema não seja a filha que dança como uma cantora pop em casa, mas a crença de que mostrar o corpo é a única forma de viver. Cabe aos pais quebrar a imagem construída pela cultura ocidental de que ser mulher envolve seduzir. Ana Laura reflete:
— Não é o papo moralista de não deixar dançar ou desligar a TV quando Anitta ou Pabllo Vittar aparecem, mas de dizer: vocês acham que é por aí que uma mulher se faz interessante? Só tem corpo? O que a Anitta e a Pabllo Vittar têm além do corpo? A mulher, cultural e historicamente, é um objeto de desejo. Esse filme da Netflix mostra que, sem os pais por perto, os filhos vão se apegar somente às imagens que estão aí. Pais devem mostrar outros elementos do que é ser mulher. Você pode admirar Anitta e dançar funk, mas também saber quem foi a Frida Kahlo e ter outras referências femininas que componham a ideia de que mulher não é só corpo.
Reações ao filme Mignonnes
Senador Ted Cruz (EUA)
O parlamentar republicano do Texas, cotado para ser indicado pelo presidente Donald Trump para a Suprema Corte, enviou uma carta para o Departamento de Justiça do governo norte-americano solicitando que o órgão investigue a produção e distribuição do filme a fim de saber se a Netflix ou os produtores do filme violaram as leis federais contra a distribuição de pornografia infantil. Ele alega que a obra sexualiza e fetichiza garotas jovens por meio de "cenas de dança que estimulam atividades sexuais e com uma cena que expõe peito despido de uma menor".
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
"Longe de ser entretenimento ou liberdade de expressão, na verdade, afronta e fragiliza a norma nacional de proteção à infância e adolescência, além de se tratar de apologia a crime de pornografia infantil".
Maïmouna Doucouré, diretora do filme
"Eu queria abrir os olhos das pessoas para o que realmente está acontecendo nas escolas e nas redes sociais, forçando-as a confrontar imagens de meninas maquiadas, vestidas e dançando sugestivamente para imitar seu ícone pop favorito. Eu queria que os adultos passassem 96 minutos vendo o mundo pelos olhos de uma menina de 11 anos, que vive 24 horas por dia. Essas cenas podem ser difíceis de assistir, mas não são menos verdadeiras como resultado."
13 dicas de segurança
Como evitar que seu filho se arrisque na internet
- Evite qualquer uso de tela ou reduza o mínimo para bebês de até dois anos. A partir dos três, o consumo precisa ser mínimo.
- Se você dá o celular quando seu filho pequeno chora, mais tarde ficará difícil dissociar dele o sentimento de prazer com o aparelho.
- Estabeleça um limite de tempo de uso. Pergunte quanto tempo seu filho gostaria de ter por dia — no geral, o pedido é razoável.
- Crianças e adolescentes são imediatistas. Ressalte a importância de refletir antes de postar e lembre que publicar na internet é escrever o conteúdo em pedra. Mostre os perigos.
- O compartilhamento pode dar margem ao bullying. Lembre que WhatsApp e outras mensagens diretas não são privados e podem ser compartilhados sem permissão.
- Não reprima questões: responda, de forma adequada à faixa etária.
- Tenha acesso a todas as senhas e verifique regularmente o histórico de buscas e de acesso a sites. Conheça os youtubers e influenciadores que inspiram seu filho.
- Estimule atividades ao ar livre e com outras crianças — adotar um animal de estimação é positivo.
- Ao identificar um comportamento reprovável na visão de um youtuber ou artista na visão dos pais, alerte: "isso que a fulana faz não é legal por tal motivo". Questione seu filho por que ele acha legal determinado artista e dê o contexto por detrás do assunto.
- Crianças são esponjas: se a família consome determinado conteúdo, elas também irão fazê-lo. Dê o exemplo. Se quer que ele informe o que faz na internet, informe você também.
- Modere o conteúdo postado por adolescentes. Nessa fase, a imagem de si depende do olhar do outro, e críticas têm grande poder de fogo contra a autoestima.
- Verifique com quem seu filho mantém contato online. Esteja por dentro de seus amigos e os sites que ela frequenta. Para os pequenos, é necessário transmitir a ideia de que, assim como se deve evitar conversar com estranhos na rua, o mesmo deve acontecer na web.
- A SaferNet Brasil, entidade que defende a proteção dos Direitos Humanos na Internet, aconselha a priorizar sites focados em crianças, como YouTube Kids, Messenger Kids Family Kids, um aplicativo do Google.