O crescente número de crianças e adolescentes que apresentam sintomas de depressão, hiperatividade e ansiedade, entre outros males psíquicos, têm levado pais e educadores a se preocupar cada vez mais com suas rotinas frente às telas de tablets e celulares. O que muitos parecem esquecer é que uma das soluções para esses problemas está exatamente do lado de fora da casa: na rua.
Mesmo com a comprovação científica, há mais de três décadas, de que brincadeiras ao ar livre são fundamentais para o desenvolvimento humano, o tempo que as crianças passam em locais abertos e em contato com a natureza vem diminuindo. Pode parecer estranho, mas pesquisas recentes apontam que muitos detentos passam mais tempo ao ar livre do que algumas crianças das nossas grandes cidades.
— Faz parte do desenvolvimento psicossocial descobrir ambientes e correr riscos, e isso não pode ser reprimido, já que brincar no exterior é um meio e um mecanismo para o bem-estar, a aprendizagem e o desenvolvimento – explica a neuropediatra Fernanda Silveira de Quadros, do Hospital da Criança Santo Antônio, do Complexo Hospitalar Santa Casa de Misericórdia.
O que a neurologia provou, há muitos anos, é que o cérebro se forma a partir da interação da criança com o ambiente e com outras pessoas, e não apenas em decorrência da carga genética, como se supunha. A partir disso, constatou-se que, além dos benefícios óbvios de brincar ao ar livre – como tomar sol e exercitar o corpo, fortificando a musculatura e gastando calorias –, quando a criança se move com mais liberdade e aciona grandes músculos, ela estimula mais o cerebelo, região localizada na base do cérebro, onde acontecem as sinapses (conexões entre os neurônios). Como resultado, os pequenos desenvolvem um senso de equilíbrio e organização espacial mais apurado.
— Isso vai ajudá-las a compreender melhor o ambiente em que vivem e a melhorar o desempenho escolar em áreas como estudos sociais, ciências, artes da linguagem e matemática — afirma o pediatra Clécio Homrich da Silva, do Serviço de Pediatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Competências emocionais e sociais
De acordo com Fernanda Silveira de Quadros, estudos que têm se multiplicado na literatura médico-científica nos últimos 10 anos mostram de forma bastante evidente que o contato com o meio exterior é fundamental também para a prevenção de doenças psiquiátricas da infância.
— Já está comprovado que promove o fortalecimento da autonomia e da autoestima, a confiança nas próprias habilidades motoras, o desenvolvimento de competências sociais e emocionais diversas, a redução do nível de estresse por meio do contato com a natureza, assim como a redução dos sintomas de hiperatividade, ansiedade e depressão, entre outros — aponta a neuropediatra.
Mais natureza, menos agressividade
Quando a criança brinca junto à natureza, o cérebro da criança entra em contato com um ambiente em que o ser humano evoluiu durante milhares de anos e ao qual está adaptado. Dessa forma, ele é exposto à curiosidade e à investigação de forma mais intensa do que em atividades realizadas em ambientes fechados.
O contato com diferentes superfícies, a necessidade de ser criativa e lidar com as adversidades e imprevisibilidades que os espaços abertos oferecem permite que as crianças gerem um repertório de comportamentos inovadores que permitem se adaptar a situações específicas. Assim, além de desenvolver habilidades motoras, os pequenos criam ferramentas para trabalhar de forma eficaz medos, agressividade e sociabilidade.
— Em ambientes abertos, é possível se divertir junto com outras crianças. Quanto mais heterogêneas forem as idades das crianças que brincam, melhor será para o desenvolvimento das relações pessoais e para a modulação da agressividade e da empatia e, dessa forma, regular o medo e a raiva, por exemplo — explica o pediatra Clécio Homrich da Silva.
Crianças que realizam atividades ao ar livre também se tornam mais criativas, já que o fenômeno brincar é, também, um lugar de fantasias, de soluções irracionais e de desenvoltura. Por meio de suas habilidades de criação, elas decidem o que é a realidade, modifica-a e adapta-a aos seus desejos, criando combinações de objetos, ideias, palavras e descobrindo novas vias de prazer.
— Logo, a brincadeira faculta à criança uma liberdade de ação que possibilita a eclosão de um pensamento criativo. Quando ela está brincando, mesmo não conseguindo falar, exprime sentimentos positivos e negativos. Desta forma, a brincadeira torna-se a linguagem primária da criança, possibilitando que solte o seu mundo interior e as suas emoções, bem como o seu mundo imaginário. Ao brincar no exterior, a criança tem acesso a um conjunto de experiências ricas e multissensoriais, tem oportunidade para desenvolver um brincar fisicamente ativo, barulhento e vigoroso — complementa a neurologista Fernanda Silveira de Quadros.
Ainda que a insegurança dos pais frente à imprevisibilidade dos ambientes abertos possa deixá-los receosos, especialistas afirmam que lidar com o inesperado e até se machucar são fundamentais para o desenvolvimento. Arranhões podem ajudar não só no fortalecimento do sistema imunológico, mas principalmente a enfrentar pequenas doses manejáveis de medo e dor.
Brincar ao ar livre:
Estimula um aprendizado mais ativo e explorador
De acordo com um estudo realizado nos Estados Unidos e publicado pelo American Institutes for Research, em escolas que usam a natureza como sala de aula, há uma melhora significativa no desempenho dos alunos em estudos sociais, ciências, artes da linguagem e matemática.
Favorece os vínculos sociais
Crianças que brincam ao ar livre com regularidade de forma não dirigida e estruturada são mais capazes de conviver com os outros, mais saudáveis e mais felizes, segundo um estudo publicado em 2005 na Archives of Pediatrics & Adolescent Medicine.
Estimula todos os sentidos
Brincar na natureza estimula a criatividade. Os brinquedos são criados e reinventados a partir de recursos encontrados durante a brincadeira: o galho que vira espada, a folha que vira um barquinho. Estudos com crianças escolarizadas mostram que, nas áreas verdes da escola, os alunos brincam de forma mais criativa e cooperativa, segundo artigo da Health Education Research.
Inspira momentos de concentração
De acordo com uma publicação do Journal of Environmental Psychology, o acesso à natureza aumenta a paz, o autocontrole e a autodisciplina em jovens que vivem na cidade.
Estimula a prática de atividade física
As crianças que brincam em diferentes ambientes naturais são mais ativas fisicamente, mais conscientes sobre sua alimentação e mais cuidadosas com o outro, concluiu estudo publicado na Health Education Research.
Reduz a violência
Há forte evidência de que mesmo o mais leve contato com a natureza impacta positivamente no senso de comunidade. Pesquisa publicada no periódico científico Environment and Behavior mostra que prédios cercados por vegetação apresentaram índice de criminalidade 52% menor do que prédios com baixa incidência de vegetação.
Traz benefícios diretos à saúde
O contato com a natureza pode reduzir significativamente os sintomas de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (de acordo com estudo publicado no Journal of Atention Disorders, em 2008), do estresse e até a ocorrência de doenças como miopia (diz artigo publicado no periódico Ophthalmology) e obesidade na infância.
Fonte: Clécio Homrich da Silva, professor do Departamento de Pediatria e Programa de Pós-Graduação Saúde da Criança e do Adolescente da UFRGS e membro do Serviço de Pediatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre