Se um dos principais desafios de muitos pais é manter os filhos unidos, a preocupação de quem tem filhos gêmeos é justamente oposta. Por nascerem e crescerem tão juntos, eles acabam precisando de uma ajuda na hora de se separar e se constituir enquanto indivíduos. É o que defende a psicanalista e professora da PUC-SP Adela Gueller, autora do livro Atendimento Psicanalítico de Gêmeos, ao lado de Ada Morgenstern. Segundo Adela, os pais devem ficar preocupados quando os gêmeos "não dão muito trabalho":
— Se eles estão demasiadamente ocupados entre si, os pais devem ficar atentos. Isso pode ser um chamado silencioso de que é preciso intervir.
A especialista esteve em Porto Alegre para uma palestra na Escola de Pais, ciclo de encontros promovido pelo Instituto Ling com especialistas referência em infância (veja mais abaixo), em edição que contou com a curadoria da Me Two. Na ocasião, Adela conversou com GaúchaZH. Confira os principais trechos da entrevista.
Qual é o principal desafio de criar gêmeos?
É poder estabelecer com cada um dos filhos uma relação e considerar que a dupla de gêmeos também é algo com o que os pais terão de se relacionar. Os gêmeos têm uma diferença em relação aos irmãos, pois, desde o início, se constituem como uma dupla. Os pais precisam se relacionar com cada um dos filhos e com a dupla, que tem uma existência e características próprias. Se, por um lado, a gente pensa que gêmeos dão mais trabalho por serem bebês que nascem juntos, por ter de dar de mamar para cada um e ter de dar banho duas vezes, ao mesmo tempo, em algumas situações, eles podem demandar menos dos pais porque, de certa maneira, eles se satisfazem um com o outro, se fazem companhia. Quando os bebês são sozinhos, eles se sentem sozinhos, choram e pedem o colo da mãe. Mas os gêmeos, muitas vezes, se acompanham e passam muito tempo juntos. Desde bebês, balbuciam entre eles, parece que um fala e o outro responde. Isso faz com que, em determinadas situações, eles demandem menos dos pais, porque têm um a companhia do outro. Em casos em que isso é muito forte, chegam a se constituir como uma família dentro da família.
O bebê sozinho tem como referência a mãe, mas os gêmeos podem tomar como referência um ao outro. Como isso acontece?
O bebê, quando nasce, vem como algo para completar a mãe. Ela se sente plena e realizada. O filho é tudo aquilo que ela sonhou e imaginou, e deposita nele todas as coisas que os pais não conseguiram realizar na vida. Os gêmeos, muitas vezes, suprem um a carência do outro, e é nesse sentido que eles se completam. O que um não tem, supõe ou imagina que o outro possa ter para contribuir. Então, a relação me parece não tanto como um complemento da mãe, mas como um complemento entre eles. Isso fortalece muito a relação, claro.
Os depoimentos dos gêmeos são de que nenhuma outra relação é tão íntima e tão estreita quanto a que eles têm com o irmão
No livro Atendimento Psicanalítico de Gêmeos, você cita que os gêmeos constituem-se juntos e excluem o resto. Esse tipo de situação aparece em consultório?
Sim. Alguns gêmeos falam para mim que o irmão é mais importante do que a mãe, o pai e os irmãos não gêmeos. O laço deles é extremamente forte. Eu diria que o grande problema entre eles não é união, é a separação. Quando se fala de irmãos, os pais sempre se preocupam para que eles sejam unidos. Com os gêmeos, a preocupação é como fazer com que eles tenham uma vida separada, e alguns não conseguem ou até mesmo não querem. Li recentemente que OsGêmeos (dupla de irmãos gêmeos grafiteiros, Gustavo e Otávio Pandolfo) falam "nós sempre estivemos juntos e vamos querer ficar juntos para sempre". Eles pintam juntos, criam juntos. É como se eles tivessem evitado qualquer situação que propusesse uma separação. As separações são muito dolorosas para os gêmeos e, para evitar uma situação tão dolorosa, entendo que muitos prefiram ficar juntos. Por exemplo: o Rafael, gêmeo que participou comigo da palestra (no evento Escola de Pais, do Instituto Ling), disse que o filho dele falava que tinha o papai 1 e o papai 2, se referindo ao irmão gêmeo dele. O filho também os vê sem uma diferença importante. Não raro, também, escuto algo como "casei com uma gêmea e então parece que casei com duas mulheres e não com uma". Porque uma casou, mas não separou da outra. Muitas vezes, só um dos gêmeos se casa e o outro apenas o acompanha. Claro que não é uma categoria, mas há muitas situações diferentes em que, para os gêmeos, é muito difícil quando o outro começa a namorar.
A constituição de identidade dos gêmeos se dá de uma forma diferente em relação a outros filhos não gêmeos?
Acho que sim, porque eles se constituem primeiro como uma dupla e só depois como indivíduos. Os pais também os veem primeiro como uma dupla e depois como indivíduos. Você vê que os pais falam dos gêmeos em plural e depois disso os gêmeos dão um nome para a dupla, como no caso dos grafiteiros, eles têm um nome para a dupla, dificilmente se vê eles falarem o nome de cada um. Por exemplo, você não fala de Rômulo, você fala de Rômulo e Remo.
Os pais demarcam as diferenças entre os irmãos gêmeos?
Os pais de gêmeos marcam as diferenças entre eles logo de cara, falando sobre qual chora mais, qual é mais calmo, qual andou primeiro, qual é mais preguiçoso, mais genioso. Mas a comparação, que é algo constante nos discursos de pais de gêmeos, não é uma diferenciação, é como se fosse uma complementação. Por exemplo: um gosta mais de matemática, e o outro, de português. Mesmo que os pais não saibam, um faz as lições de matemática e o outro faz as redações pelos dois e, desse modo, se complementam. Eles aproveitam o fato de que um tem uma habilidade e o outro tem outra e, assim, os dois se saem bem. Ou até mesmo em relação a namoros, em que um diz para outro "Ah, você tem mais facilidade para chegar nas meninas, então, vai primeiro que depois eu vou". Acho que devemos aprender com os gêmeos como funcionar em dupla. O funcionamento das duplas é diferente do funcionamento dos indivíduos. Vivemos em uma sociedade na qual se pensa muito no modelo de vida individual, e eles podem nos ajudar a entender como funcionam as duplas, as equipes.
Então, a ideia de que os gêmeos são muito unidos e com uma relação muito forte não é só um mito?
Não, não é. Tanto é que a gente fala de alma gêmea. A alma gêmea é o par ideal, aquele com quem você se sentiria completo. Nesse sentido, é mais interessante fazer a comparação dos gêmeos com casais que se completam do que com indivíduos. Há relações a serem feitas entre a alma gêmea e a relação entre gêmeos. Os depoimentos dos gêmeos são de que nenhuma outra relação é tão íntima e tão estreita quanto a que eles têm com o irmão.
Os pais dão um lugar único para os dois filhos?
O que acontece com os gêmeos é que os pais não conseguem não comparar, eles são como uma lente de aumento em relação ao que acontece com outros irmãos. Mas acho que os pais dos gêmeos, quando comparam um ao outro, é por não conseguirem, nem na fala, deixar um de lado para falar do outro. Começa a falar de um e sutilmente começa a falar do outro, como se fosse uma continuidade.
Você cita que gêmeos tendem a desenvolver uma linguagem própria entre eles que não é compreensível para o exterior. Isso pode ser um problema?
Na literatura se encontra, de forma um pouco escassa, a ideia de que é mais comum aparecerem atrasos de linguagem em gêmeos. Trabalho há muito tempo com questões de linguagens em crianças. A linguagem secreta que, a rigor, é muito parecida com a linguagem que usam os amantes, essas linguagens cheias de palavras bobinhas como "cute cute", por um lado, fala dessa ligação muito forte que eles têm. Isso também está em continuidade com uma coisa que os gêmeos têm e se chama comunicação telepática. Ou seja, se comunicam sem falar. Eles só precisam se olhar para se entender. Possuem uma relação tão íntima que qualquer gesto é um código que o outro consegue decifrar. Como eles têm essa comunicação tão intensa, acabam se comunicando menos com o resto do mundo. Então, sim, eu diria que uma linguagem secreta muito intensa é sinal de que esse casal de gêmeos está com dificuldade para se relacionar com o resto do mundo. Eles podem se isolar e não querer brincar com outras crianças na escola. Aí, sim, precisamos trabalhar a questão de como separá-los um pouco.
Os irmãos gêmeos devem estudar em turmas separadas? Vestir roupas diferentes?
Eu indico que não se separe eles antes dos três anos, mas nem todos são iguais. Hoje é menos comum vesti-los iguais e dar nomes muito parecidos. Hoje em dia, a norma é individualizar, então os pais nem se permitem fazer isso, já os vestem logo de maneiras diferentes e dão nomes diferentes. Não quer dizer que isso resolva algumas questões que os gêmeos têm, mas não é preciso reforçá-las — de qualquer maneira eles irão se ver como semelhantes. Também acho que vesti-los de maneira igual e dar nomes parecidos é exacerbar a condição de gêmeos. Todo mundo identifica eles na rua, reforça isso, e não é necessário. Isso não quer dizer que colocar roupas e nomes diferentes resolva a questão da diferença.
Que outra dica você daria para uma rotina de pais de gêmeos?
Se os gêmeos não dão muito trabalho, talvez isso deva preocupar os pais. Se eles estão demasiadamente ocupados entre si, os pais devem ficar atentos. Isso pode ser um chamado silencioso de que é preciso intervir.
Quais padrões entre gêmeos você percebe no consultório e que devem ser rompidos?
Uma das coisas que me chamam muito a atenção é a competição entre eles. Como se vivessem o tempo inteiro em um jogo, vivem de forma tão radical neste jogo que qualquer pequena diferença é vivida como se um ganhasse e o outro perdesse. Esse é um tema que deve ser observado. Os pais precisam ensinar um filho a perder e não a sempre querer ganhar. Isso com os gêmeos é bem difícil, porque eles agem como se sempre tivessem que ganhar, e as coisas nem sempre são um jogo. Por fora, eles são complementares, por dentro, eles são competitivos. Isso é interessante, pois também acontece com não gêmeos. Quando você tem uma união muito forte entre duas ou mais pessoas, isso constitui uma segregação. Quanto mais forte é a união entre os gêmeos, mais proporcional é o número de pessoas que eles segregam em volta deles. Então, tem um funcionamento interno da dupla, e é aí que eles competem entre si. E tem o funcionamento para fora, aos outros eles mostram que são uma dupla inseparável, fazem um time para ganhar dos outros.
Se a relação entre os gêmeos é tão forte, por que os pais devem estimular a separação?
Para ter a opção de poderem se separar. Se eles querem ter essa opção, eles precisam formar individualidades. O que costuma acontecer é que um dos gêmeos está mais preparado para isso do que o outro. Isso é um problema: um vai estar pronto para namorar, casar, mudar de pais e o outro não estará pronto. Chega uma hora em que a separação pode ser mais violenta, porque esse que está mais preparado se cansa e diz que não aguenta mais. É muito difícil que isso aconteça simultaneamente. Por isso, é necessário começar a permitir e propiciar que eles tenham amigos diferentes, que um seja convidado para um aniversário e outro não, que tenham atividades diferentes. É nesse sentido que é interessante que eles tenham individualidades e autonomia. Tendo isso, eles podem desfrutar de uma relação intima e próxima com o irmão. Sem isso, não se tem a opção de pensar separado, isso faz uma união que pode ser vista como uma prisão. Às vezes, é preciso ficar sozinho, mas com alguém sempre ao seu lado isso fica difícil.
Que recomendação você dá aos pais de gêmeos?
Ter gêmeos é diferente de ter dois filhos. Recomendo que os pais não se cobrem tanto para tratar os gêmeos como dois filhos ímpares. Digo isso pois eles já são muito cobrados para dar certo e fazer com dois o que fariam com um. Os pais sempre erram em algum momento com os filhos, vão faltar coisas. Mas, me parece que se cobrar para ser o pai e mãe perfeitos não ajuda. É só uma exigência a mais, quando eles já têm exigências suficientes.
Escola de Pais
Próximos encontros
Tema: o casal e a nova família após a chegada de gêmeos e múltiplos
Data: 02/10
Horário: das 19h às 20h30min
Palestrante: Ruggero Levy, psicanalista, membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e da International Psychoanalytical Association (IPA)
Tema: o brincar na construção do indivíduo
Data: 22/10
Horário: das 19h às 21h
Palestrante: Tania Fortuna, professora de Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da UFRGS, onde criou e dirige o programa de extensão universitária Quem Quer Brincar.
Tema: mitos e verdades sobre o TDAH
Data: 12/11
Palestrante: Luis Rohde, médico e chefe do Programa de Déficit de Atenção e Hiperatividade do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Horário: das 19h às 21h
Mais informações e inscrições em institutoling.org.br