A epidemiologista goiana Celina Turchi alcançou um dos mais altos patamares da ciência internacional em dezembro de 2016. Aos 64 anos, depois de décadas de pesquisas sobre doenças infecciosas, ela foi eleita uma das 10 personalidades de 2016 pela revista Nature – referência internacional para a comunidade científica –, por seu trabalho dedicado a provar a associação entre a microcefalia e a infecção pelo vírus da zika.
Professora aposentada da Universidade Federal de Goiás, pesquisadora da Fiocruz no estado de Pernambuco, mestre pela London School of Hygiene & Tropical Medicine e doutora pelo Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, Celina foi chamada pelo Ministério da Saúde, no final de 2015, para coordenar uma força-tarefa de pesquisadores. A missão: estudar o aumento exponencial dos casos de microcefalia registrados no país, que levou grávidas ao pânico.
Celina e sua equipe ajudaram a produzir as evidências para associar a epidemia ao vírus e nortear o trabalho de prevenção e acompanhamento dirigido a grávidas residentes nas áreas de risco de todo o planeta.
Em entrevista a Zero Hora em janeiro, a epidemiologista falou sobre os bastidores da força-tarefa e o que ainda não se sabe em relação à doença. Crítica e otimista, comentou sobre as dificuldades de ser cientista no Brasil, além de analisar os desafios em saúde pública que o país enfrentará daqui para frente.
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Como é ser cientista no Brasil?
É uma pergunta que talvez possa ser respondida de várias formas. Esta é uma carreira que apresenta desafios em qualquer lugar, e talvez no Brasil eles sejam maiores pelas dificuldades inerentes a um país de terceiro mundo. Temos, muitas vezes, dificuldade na manutenção de projetos pela questão dos recursos financeiros, o que pode ser bastante frustrante. O governo brasileiro ainda precisa entender que é vital a pesquisa científica, a modernização dos laboratórios e dos centros de pesquisa para que se possa dar respostas às questões de saúde pública. Mas não sou pessimista, acredito que há enormes possibilidades para o crescimento pessoal e profissional de quem investe na área. Acho que o desafio de ser cientista no Brasil hoje em dia é muito menor do que há algumas décadas, pois as fronteiras são menores, permitem a inserção em projetos com interfaces nacionais e internacionais. Acho importante destacar também que, cada vez mais, há centros de pesquisa de referência em diferentes regiões do país, que não estão só no eixo Rio-SP.
A que você se dedicava até começar a estudar a epidemia de microcefalia?
Nasci no Centro-Oeste, em Goiás, e estudei no Instituto de Patologia Tropical, que já era um centro de formação importante, onde tive a oportunidade de trabalhar com um grupo de doenças infecciosas. Lá, me interessei pela dengue, que chegou naquela região do país na década de 1990. Foi a dengue que me levou, assim como a um grande número de pesquisadores, a me interessar por doenças transmitidas por vetores (mosquitos) que tinham potencial de se proliferar em áreas urbanas. Então, até me envolver no projeto da microcefalia, eu trabalhava basicamente com a dengue. Tínhamos recentemente feito um estudo sobre o impacto econômico da doença no Brasil. Foi quando surgiu essa epidemia inusitada e de enorme transcendência, que assustou o país.
A questão da microcefalia já chamava sua atenção antes de se envolver na pesquisa?
Não. Passou a ter mais expressão no final de 2015, com um aglomerado de casos em um espaço curto de tempo. Foi uma situação inédita do ponto de vista de uma causa infecciosa. Em setembro de 2015, médicos notificaram o Ministério da Saúde sobre o aumento de microcefalia grave em maternidades de Pernambuco e outras regiões, principalmente no Nordeste. Neste mesmo ano, através de um pedido do Ministério da Saúde, começamos os primeiros esforços para mobilizar um grupo grande de pesquisadores em diferentes instituições e áreas de conhecimento. Formamos um grupo que batizamos de MERG (Microcephaly Epidemic Research Group, ou "Grupo de Pesquisa em Epidemia de Microcefalia", em tradução livre).
Qual foi a sua reação ao ser notificada sobre essa epidemia?
Ficamos muito apreensivos, foi uma situação dramática, pois nunca imaginei, nem no meu maior pesadelo, um surto de microcefalia em bebês. Era mais assustador ainda porque não havia clareza sobre o que estava causando aquele número de recém-nascidos com tamanho comprometimento neurológico. O impacto dessa epidemia era incomensurável, pois não atingia só as mulheres grávidas, mas todas aquelas que pensavam em ter filhos, as famílias como um todo.
O que se sabia então sobre a associação entre o vírus da zika com a microcefalia?Havia uma suspeita de que o surto de microcefalia estivesse acontecendo por alguma doença infecciosa viral. No início da epidemia não havia dados na literatura científica que comprovassem a associação da infecção do vírus da zika com essa má-formação congênita. E as hipóteses eram muitas: se um lote da vacina de rubéola estava ruim, se poderia ser causada pela presença de um larvicida na água. E, naquela época, não existiam testes para o vírus da zika adequados para o diagnóstico laboratorial. Então houve um período de tempo grande entre a hipótese inicial até o primeiro caso em que se pode relacionar as duas coisas. Foi a médica Adriana Melo, que coletou o líquido amniótico de uma mulher grávida que estava na fase aguda da doença, e apareceu a infecção por zika vírus. Só que na ciência você tem que ter muitas evidências para chegar a uma conclusão. Então, partindo-se dessa hipótese inicial, focamos em montar um grupo para avaliar essa evidência da associação do vírus com a microcefalia de uma forma metodologicamente correta.
Como foi encaminhada a pesquisa?
O MERG elaborou um projeto de pesquisa no qual as oito maternidades de Recife eram monitoradas e, em todos os casos que tinham a definição de microcefalia, as mães eram convidadas para participar do estudo. Com o consentimento das mães, se escolhiam também dois bebês que tivessem nascido na mesma maternidade mas sem microcefalia, para controle. De 15 de janeiro a 2 de maio de 2016, recrutamos 32 vítimas da má-formação congênita e 62 controles. Em todas, foram aplicados testes em busca de sinais de infecção congênita pelo zika. Além disso, investigávamos todos os fatores de risco materno para a criança desenvolver a síndrome, para então ver qual era a associação com a infecção.
As pesquisas começaram em janeiro de 2016. Em maio, dados parciais já indicavam evidências da associação. É um período curto para uma pesquisa científica.
É que os indícios da associação já eram fortes e, de certa forma, havia um senso de urgência de diversos grupos para pesquisar o assunto. Antes de começarmos, já havia um estudo de casos retrospectivos no Rio de Janeiro, que foi também um marco para se estabelecer essa relação. Além de o governo fornecer aporte para as pesquisas, tivemos muitos grupos voluntários que se disponibilizaram a ajudar. Acho que essa epidemia mostra como é importante a construção do conhecimento através de diferentes projetos, com diferentes grupos de pesquisa, montando juntos um quebra-cabeça até que se entenda todos os aspectos do problema.
Já existem registros na literatura médica do vírus da zika desde os anos 1950, em diversos países. Por que ele permaneceu tanto tempo silencioso e agora mostra-se tão agressivo?
É uma pergunta para a qual talvez não tenhamos uma resposta ainda. Como é uma doença viral, ela depende de vários fatores para sua proliferação. Aqui em Pernambuco, por exemplo, você tinha condições propícias, com um clima favorável, alta densidade vetorial, um contexto heterogêneo de favelas, ou seja, uma cidade com bolsões de pobreza, uma população suscetível à introdução de um novo vírus, além de uma dificuldade de controle do vetor.
Mas daí para vir a causar microcefalia...
Acreditamos que já havia casos de microcefalia associados ao vírus da zika, mas que a relação ainda não tinha sido estabelecida. Quando o Brasil deu o alerta mundial para essa possibilidade, a Polinésia Francesa, que já tinha registro do vírus da zika, disse inicialmente que não havia tido casos de microcefalia. Entretanto, o governo brasileiro pediu para eles avaliarem não só a quantidade de crianças que nasciam com as características da malformação, mas também o número de abortos espontâneos e interrupções de gravidez feitas por defeitos congênitos similares à microcefalia, já que lá o aborto é um serviço de saúde pública. Em 15 dias fizeram o levantamento e admitiram que tinham tido sim um número 50 vezes maior de casos de microcefalia na região. A Colômbia tem relatado agora mais recentemente também casos. A questão é que já se sabia, desde a descoberta do vírus da zika, há mais de seis décadas, que ele causava problemas neurológicos em adultos. Mas a descoberta dos problemas associados à gestação é de protagonismo brasileiro.
Falando então em Brasil, um levantamento feito pelo governo pernambucano revelou que mais da metade das famílias dos bebês com suspeita de microcefalia no Estado é de baixa renda. A dependência desses pacientes dos serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é óbvia. O país está pronto para atender a todos esses e aos futuros novos casos?
Vêm sendo organizadas redes de atenção a essas crianças por meio de um protocolo que visa ao atendimento multidisciplinar, com oftalmologistas e especialistas em diferentes áreas. Para isso acontecer, os governos estaduais e toda a área de saúde se mobilizaram, e seguem se mobilizando, de forma intensa. Além disso, a descoberta da associação do vírus da zika com a microcefalia reforçou a necessidade de se pensar em estratégias de prevenção que vão além de questões de saúde e que abrangem questões de desigualdade urbana. Acho, também, que trouxe à tona uma vez mais a necessidade de se melhorar o acompanhamento das mulheres grávidas.
O diagnóstico da síndrome congênita do zika é o primeiro capítulo de um problema que irá acompanhar a vida da criança e da família por décadas. Já existe uma rede, ou a percepção da necessidade de uma estrutura que acompanhe também essas famílias, inclusive no âmbito psicológico?
Acredito que o Brasil está se preparando para isso, mas ainda não temos preparação suficiente para respostas imediatas. Do ponto de vista da sociedade, essa questão ainda é precária. Há uma mobilização dos governos e de organizações não-governamentais para criar redes de apoio, mas precisamos lutar para que não haja descontinuidade nos aportes de recursos que financiam as equipes de pesquisa e também os serviços de atendimento às famílias. Foram criadas associações de mães de crianças com microcefalia em vários Estados, que também ajudam nesse suporte. Mas tudo isso passa por pesquisas. Atualmente, estamos trabalhando também para avaliar a sobrevida dessas crianças, o nível de déficit neurológico, assim como a possibilidade de desenvolvimento das que nasceram com microcefalia.
Por algum tempo, os temas "vírus da zika" e "microcefalia" dominaram as manchetes dos jornais, mas agora pouco se fala sobre o assunto. Isso faz parte da trajetória normal de uma epidemia ou estamos sendo relapsos com a questão?
A grande exposição inicial se deu frente a uma situação inusitada, desconhecida, que provocava medo e pânico na população. As epidemias têm mesmo essa característica, de ter uma repercussão grande na mídia por algum tempo, até que as variáveis dela sejam conhecidas e informadas à população. Assim você consegue implementar medidas de prevenção e informar sobre as estratégias de controle. Mas é importante mantermos um canal aberto para seguir informando a população, pois muitas questões ainda não foram esclarecidas.
Ainda há muitas lacunas científicas a serem preenchidas sobre o tema. O que se está estudando agora e quais respostas vocês ainda pretendem alcançar?
O que sabemos sobre a síndrome congênita do zika está só no começo. Atualmente, estamos estudando se ter tido dengue é facilitador para a zika, e também testando se há interferências de outros anticorpos que podem ser fatores de risco para a microcefalia. Estamos acompanhando também mulheres grávidas para ver em que momento da infecção pelo vírus é maior a probabilidade de que as crianças nasçam com anormalidades, seja com microcefalia ou seja em espectro mais amplo, já que mesmo crianças com perímetro cefálico normal podem ter sido acometidas e podem ter alterações neurológicas causadas pelo vírus.
Quais são os principais desafios para o Brasil daqui para a frente?
A microcefalia é uma carga social e para os serviços de saúde, e por isso temos vários desafios. Um deles é a manutenção e o melhoramento do atendimento às crianças e famílias no campo da atenção à saúde. O segundo desafio é conseguir manter os aportes financeiros para que as pesquisas sigam, para que não se conheça só o espectro da síndrome, mas também as características específicas da mesma. Estas serão importantes para que se estabeleçam as diretrizes de prevenção e tratamento.
A ciência brasileira é feita sempre com muito sacrifício. De que maneira a distinção concedida pela Nature poderá ajudar o trabalho dos pesquisadores?
Acho que dá um grande incentivo, faz as pessoas sentirem que é possível o reconhecimento internacional de um grupo de pesquisadores brasileiros que trabalham intensamente, o que é muito importante. Além disso, acredito que essa distinção mostra que o trabalho como foi feito, de forma colaborativa, dá bons frutos. Há pessoas que me dão os parabéns porque eu sou mulher, porque não sou uma pesquisadora do eixo Rio-SP. As pessoas percebem, nesta distinção, que é possível ser reconhecido pela contribuição de profissionais de diferentes locais e diferentes grupos. O que eu gostaria de dizer é que esta não é uma conquista minha, mas sim o reconhecimento do trabalho de um grupo que se mobilizou de forma intensa e é uma distinção também do protagonismo do Brasil frente a uma epidemia.
Suas descobertas obrigaram a adoção de condutas de proteção a grávidas em todo o mundo. Como se sente em relação ao impacto disso na vida de milhões de mulheres?
Fico feliz e me sinto orgulhosa de ter participado desse momento histórico. Me sinto grata por ter tido contato com tantas pessoas que se dedicaram de forma muito intensa nesse período.
Desde agosto de 2016, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação para que grávidas afetadas pelo vírus tenham direito ao aborto. Recomendação semelhante foi feita pela ONU. Qual a sua opinião sobre o aborto nesses casos?
Em princípio, a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez frente a infecção pelo vírus zika deveria, a nosso ver, se constituir em um direito da mulher.
OBSERVAÇÃO:
No dia 4 de março, o caderno DOC publicou entrevista com a pesquisadora Debora Diniz, também sobre o assunto zika, com opiniões que manifestam um pensamento oposto ao de algumas afirmações feitas por Celina Turchi nestas páginas. Para Diniz, as mulheres com zika foram abandonadas pelo Estado e estão fora das pautas de discussão. Mas esta entrevista não é uma resposta à da semana anterior. Tanto Debora Diniz quanto Celina Turchi concederam entrevistas em separado, em janeiro, e para repórteres diferentes.
LEIA A ENTREVISTA COM DEBORA DINIZ AQUI