O Rio Grande do Sul dispõe de 3.020 leitos psiquiátricos (em espaços especializados em saúde mental), sendo 1.781 vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS), conforme dados de junho apresentados pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers). Eles estão distribuídos em 160 municípios gaúchos. De acordo com análise do Núcleo de Psiquiatria da entidade, no entanto, há um déficit de 2 mil leitos no Estado.
A reforma psiquiátrica em curso no país nas últimas décadas modificou os cuidados em saúde mental. No RS, a história da psiquiatria passa pela trajetória do Hospital Psiquiátrico São Pedro, que completa 140 anos em 2024 e tem passado por transformações profundas ao longo de sua existência – como a substituição do asilo por leitos psiquiátricos temporários, do mesmo modo que ocorre em todo o país.
O acesso ao leito, via SUS, é feito a partir de postos de saúde, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), pronto atendimentos e emergências. A internação ocorre quando há situação de risco relacionada às questões de saúde mental – como autoagressão, agressão ou exposição. Para isso, é feito o cadastro da demanda no sistema de gerenciamento de internações hospitalares (Gerint) do Estado.
A distribuição de leitos ocorre conforme as características dos pacientes e dos hospitais, segundo Marilise Fraga, diretora do Departamento de Atenção Primária e Políticas de Saúde (Dapps) da Secretaria Estadual da Saúde (SES). Ainda que alguns hospitais tenham serviços mais especializados, os leitos de saúde mental, em geral, atendem tanto transtornos mentais quanto questões relacionadas ao uso de álcool e outras drogas.
A ideia é que a internação seja breve – a média no Estado é de cerca de 20 dias, e o ideal é que não ultrapasse 30. Para a dependência química, a média é menor: por volta de duas semanas, o período de desintoxicação.
Perfil de ocupação
No RS, cerca de 50% dos pacientes são internados devido ao uso de álcool e outras drogas, enquanto o restante se divide entre casos de descompensação de transtornos psiquiátricos, como depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia e outros, segundo a SES. A principal faixa etária é dos 20 aos 50 anos. Há mais homens internados – o que está vinculado ao alto índice de dependência química, conforme a diretora do Dapps.
Cenário na Capital
Em Porto Alegre, há 516 leitos de saúde mental, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) – os dados do Simers, por sua vez, apontam 424 leitos psiquiátricos. Com exceção dos do São Pedro, todos são regulados pela prefeitura. A regulação dos pacientes demora, em média, 55 horas, podendo chegar a até 80 (cerca de três dias), considerando todos os perfis. A demanda é grande na Capital, com uma média de 20 solicitações para internação em saúde mental por dia.
— O nosso maior número de internações se dá para pacientes com transtornos, seguido de dependentes químicos — informa a diretora-geral de regulação ambulatorial da SMS, Denise Soltof.
As mudanças da reforma psiquiátrica
A principal mudança trazida pela reforma psiquiátrica, a nível estadual e nacional, é na manutenção dos cuidados, que deixa de ocorrer dentro do hospital psiquiátrico e passa a ser realizada em serviços no território – na atenção primária, com os CAPS como referência. Os hospitais psiquiátricos ainda existem, mas já não internam mais pacientes de longa permanência. Além disso, a abertura de novos hospitais psiquiátricos fica proibida, devendo ocorrer uma transição dos leitos para hospitais gerais – em unidades de saúde mental com até 30 leitos e que não ultrapassem 15% do total de leitos do hospital. Não há, contudo, um prazo específico estipulado pela lei.
— Esse é o grande avanço da reforma: que as pessoas possam ser tratadas perto das suas famílias — afirma Marilise.
No RS, a SES vem gradualmente fazendo essa transferência de leitos. Neste momento, ainda não é possível fechar todos os leitos em hospitais psiquiátricos, segundo Marilise, porque há uma demanda grande por internações. Seriam necessários vários leitos em hospitais gerais e o fortalecimento dos outros dispositivos de saúde mental, como CAPS 24 horas. Há, ainda, desafios como a implementação da rede em mais municípios – apenas aqueles com mais de 15 mil habitantes podem se habilitar para os CAPS. Com isso, muitos municípios do Estado ficam impossibilitados de recebê-los, já que quase 80% são pequenos.
"O paciente com demanda psiquiátrica no SUS está desassistido"
Vice-presidente do Simers e psiquiatra, Fernando Uberti Machado afirma que a reforma psiquiátrica começou no início da década de 1980 como uma pauta nobre: dar mais dignidade ao paciente psiquiátrico. Naquele momento, o Brasil ainda tinha manicômios com condições de “absoluta indignidade”, sem infraestrutura, cuidado qualificado ou indicações técnicas.
Por volta da década de 1990, entretanto, o processo passou por uma radicalização, na avaliação de Uberti, levando a uma linha de atuação que trouxe resultados “catastróficos” para a assistência psiquiátrica, principalmente a partir da “demonização” do leito psiquiátrico. Passou-se a cultuar a ideia de que o atendimento ambulatorial poderia resolver todos os problemas em psiquiatria e que os leitos psiquiátricos não seriam mais necessários, inclusive em políticas públicas estaduais e federais – o médico cita como exemplo a lei estadual 9.716/1992.
— Fechar leito para abrir CAPS. Nós consideramos essa política absolutamente danosa. Os níveis de assistência têm de ser complementares. Nós precisamos de um sistema ambulatorial que funcione com ambulatórios de psiquiatria, com CAPS, o que nós não temos hoje, infelizmente. Na maior parte das vezes, os CAPS não têm estrutura, psiquiatra, profissionais. Também precisamos de leitos psiquiátricos. E frente ao que é um parâmetro internacional, preconizado pela Organização Mundial da Saúde (0,45 leitos psiquiátricos a cada mil habitantes), hoje nós temos um déficit de 2 mil leitos psiquiátricos no RS — aponta, destacando que o índice no Estado é de 0,28 leitos a cada mil habitantes.
No Estado, há dificuldade, principalmente, em possibilitar leitos especializados para pacientes dependentes químicos e para crianças e adolescentes, conforme o Simers. Além disso, a carência de CAPS aumenta o risco de desenvolvimento ou agravamento de doenças, o que pode levar à internação, conforme Pedro Zoratto, psiquiatra e diretor da Associação de Psiquiatria do RS (APRS).
Médica sanitarista e diretora do Departamento de Gestão dos Hospitais Estaduais da SES, Letícia Ikeda pondera que a reforma trouxe avanços no cuidado — o que se chamava cuidado era, na verdade, um afastamento das pessoas do convívio social, que correspondia praticamente a um enclausuramento.
— Então, a gente sai deste modelo, onde as pessoas ficavam trancadas, invisíveis à sociedade, sem contato com suas famílias, sem nenhum tipo de contato externo, para um cuidado em liberdade — salienta.
Para Zoratto, a reforma psiquiátrica trouxe alguns benefícios, como a regulamentação das hospitalizações e a preconização do tratamento humanizado. O problema é que a lei dificultou a criação de novos leitos psiquiátricos, sendo prejudicial aos pacientes. O médico ressalta que o psiquiatra busca sempre o tratamento ambulatorial, mas, em alguns casos, isso não é possível. A reforma desconsidera a evolução científica da psiquiatria, com tratamento digno, na opinião do médico.
— Existem hospitais especializados nas mais diversas doenças humanas, e o hospital psiquiátrico ficou estigmatizado. Por que não criar hospitais com uma ótica diferente daquela manicomial antiga? Hospitais modernos, equipados. Para internações de situações agudas, que é o que acontece na prática — ressalta.
Na avaliação de entidades de psiquiatria, a lei nacional 10.216/2001 não é tão danosa, pondera Uberti. Contudo, posteriormente, novas resoluções trouxeram retrocessos, e há pontos não regulamentados e colocados em prática, segundo o médico. Há defasagem, por exemplo, na remuneração do leito psiquiátrico em hospital psiquiátrico, pelo Ministério da Saúde, em comparação ao hospital geral.
A reforma ocasionou a asfixia financeira dos hospitais psiquiátricos, conforme os médicos – e o caminho inevitável é o fechamento, em meio ao déficit de leitos, aponta Uberti. Zoratto acrescenta que um hospital geral, por sua vez, pode ter dificuldade em lidar com casos muito graves.
— A reforma, infelizmente, nesses últimos 20 anos, praticamente acabou com o sistema hospitalar psiquiátrico e não investiu a contento no sistema ambulatorial. Nós chegamos ao pior cenário, em que nós praticamente impedimos a expansão da rede de leitos psiquiátricos, mas também não investimos no sistema ambulatorial. Então, o paciente com demanda psiquiátrica no SUS está desassistido, como regra — enfatiza.
Na avaliação do vice-presidente do Simers e do diretor da APRS, a estrutura atual de leitos psiquiátricos no RS é ruim. Uberti cita o Hospital Psiquiátrico São Pedro como central para a assistência psiquiátrica, por ser um dos poucos com leitos de infância e adolescência e residência médica nessa área. No entanto, afirma que o hospital tem sido desestruturado pelo governo estadual, sem receber investimentos e priorização. Apenas oito psiquiatras dão conta de uma demanda de mais de cem pacientes.
Além disso, em uma vistoria em mais de 70% das unidades de CAPS no Estado, o Simers constatou que 25% não têm médico psiquiatra, o que comprometeria o funcionamento. Os prontos-atendimentos psiquiátricos de Porto Alegre estão sobrecarregados, acrescenta Uberti. Há demora na regulação de leitos no Estado e na Capital. Ao acessar uma estrutura de saúde especializada, de forma geral, os pacientes recebem atendimento qualificado – o acesso é o grande problema. O acesso a leitos via atendimento privado e convênios, por sua vez, é mais fácil, conforme o médico.
Em nota enviada à reportagem, a SES informou que os Estados brasileiros e as respectivas secretarias de saúde cumprem o estabelecido na legislação. O RS possui quase 1.380 leitos de saúde mental em hospitais gerais e cerca de 670 leitos em hospitais psiquiátricos pelo SUS.
O Ministério da Saúde afirmou que, até o momento, não recebeu comunicação formal de irregularidades nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial do RS. Confira a nota na íntegra abaixo:
"O Ministério da Saúde informa que, até o momento, não recebeu comunicação formal de irregularidades nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Estado do Rio Grande do Sul. A RAPS possui, ao todo, 17 diferentes pontos de atenção em saúde mental (serviços e ações), incluindo leitos em hospitais gerais. O RS detém a maior quantidade de leitos de saúde mental em hospital geral entre todos os Estados brasileiros: 569.
Com 205 CAPS, o Rio Grande do Sul conta atualmente com 1,57 CAPS para cada grupo de 100.000 habitantes, índice superior à média nacional.
Em 2023, o Ministério da Saúde aumentou em 26% o custeio mensal da RAPS, com o objetivo de reforçar o orçamento da política de saúde mental. Além disso, segue em curso o processo de expansão da RAPS, sendo o Rio Grande do Sul agora uma prioridade devido às recentes enchentes."