Planejamento e boas amizades são elementos fundamentais para quem pretende envelhecer bem e com mais segurança. Chefe do Serviço de Geriatria do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a médica geriatra Maria Cristina Berleze orienta se deve começar a pensar no envelhecimento desde cedo para que bons hábitos sejam introduzidos na rotina precocemente, garantindo uma transição tranquila para as décadas de idade mais avançada. As boas relações também precisam ser cultivadas ao longo de toda a vida, para que estejam naturalmente presentes como um círculo de apoio no dia a dia quando a velhice chegar.
— Nossos relacionamentos sociais são muito determinantes. Não adianta ter várias amizades ou ser muito sociável se você não tiver pessoas com quem contar nos momentos de dificuldade — afirma Maria Cristina.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida a GZH.
A partir de quando as pessoas devem começar a se preocupar em envelhecer bem?
Talvez seja uma das estratégias mais importantes para conseguir envelhecer bem: começar a pensar no envelhecimento muito precocemente. Muitas vezes, a gente acaba esquecendo o quão rápido chega. Como ter saúde na velhice se a pessoa nunca cuidou da saúde antes? Como vou conseguir manter uma rede social, ter amigos, se nunca cultivei amizades? Hoje sabemos que algumas das determinantes do envelhecimento bem-sucedido estão relacionadas a ter cultivado hábitos saudáveis e relacionamentos sociais ao longo da vida. Essas habilidades têm que ser um exercício diário. Pensar no envelhecimento a partir dos 30 anos já seria uma estratégia muito produtiva. É a partir dos 30 que os nossos tecidos começam a envelhecer, que a nossa biologia começa a se modificar. O ideal seria procurar se conhecer, aprender a escutar o próprio corpo e, se algo não está bem, procurar ajuda médica. Ter pessoas à volta em quem confiar, estabelecer relações positivas com pessoas com quem a gente possa contar. Vejo que algumas pessoas dão muita atenção a pequenos problemas que estão fora da nossa capacidade de resolução. Não tem que dar tanta atenção a esses problemas. Fazer atividade física, muita atividade física. Quem ainda não iniciou tem tempo. Tem que escutar boa música todos os dias. Encontrar amigos regularmente. Manter contato com a natureza. Se gosta de bichos, pode ter um animal de estimação. São estratégias. Se iniciar antes, fica mais fácil quando envelhecer. Não que a gente não possa iniciar depois dos 60. Todas essas intervenções serão válidas em qualquer momento da vida. Se pudermos ter autoconhecimento ou um planejamento do nosso envelhecer, será mais fácil quando chegarmos lá. Quem sempre foi ranzinza, chato, carrancudo a vida toda, lógico que vai ser muito mais difícil envelhecer. Essas pessoas foram chatas, carrancudas, ranzinzas a vida toda. Quando eram jovens, tinham outros atrativos, beleza, dinheiro. Com a idade, acaba aparecendo mais quem a gente é na realidade. Então, se eu conseguir praticar a generosidade, se tiver mais senso de humor, se rir com meus amigos, se cultivar a minha fé, ao longo da minha vida, terei estratégias melhores para quando chegar aos 60. Poderei ter esses recursos já facilmente disponibilizados para garantir minha qualidade de vida no envelhecimento.
Quem sempre foi ranzinza, chato, carrancudo a vida toda, lógico que vai ser muito mais difícil envelhecer. Quando eram jovens, essas pessoas tinham outros atrativos, beleza, dinheiro. Com a idade, acaba aparecendo mais quem a gente é na realidade.
MARIA CRISTINA BERLEZE
Chefe do Serviço de Geriatria do Hospital São Lucas da PUCRS
Esses cuidados são pra saúde física e também mental, não é mesmo?
Isso, as coisas não se diferenciam. O maior estudo de longevidade que já foi feito (liderado pelo psiquiatra e psicanalista Robert Waldinger, de Harvard) investigou os fatores determinantes do envelhecimento bem-sucedido. Não foi nenhuma condição médica, não foi pressão, não foi colesterol. Tudo isso é importante, mas o mais importante é ter cinco amigos com quem contar quando envelhecer. Nossos relacionamentos sociais são muito determinantes. Não adianta ter várias amizades ou ser muito sociável se você não tiver pessoas com quem contar nos momentos de dificuldade.
Como cuidar da cognição?
Ainda não temos, bem definidos, os preditores de quem vai desenvolver complicações cognitivas no futuro. Sabemos que o estudo e a alfabetização reduzem o risco das doenças neurodegenerativas, a mais comum sendo o Alzheimer. Quanto maior for o meu apreço pelas letras, pelo conhecimento, menor a minha chance de desenvolver uma questão cognitiva neurodegenerativa futura. O Brasil, infelizmente, tem altas taxas de doenças neurodegenerativas por alimentação inadequada, consumo de alimentos industrializados, consumo de carboidratos simples em excesso, baixo nível de escolaridade. Tudo isso são fatores relacionados ao aumento do risco de déficit cognitivo futuro por doenças neurodegenerativas. O não tratamento de doenças crônicas, mas passíveis de intervenção por tratamento simples, como hipertensão e diabetes, também impacta na maneira como as doenças neurodegenerativas podem acontecer no futuro, causando um prejuízo de memória.
Talvez a melhor estratégia de todas seja o planejamento: planejar o envelhecimento porque o tempo passa muito rápido. Planejar é entender que sou finita, todos nós somos.
MARIA CRISTINA BERLEZE
Chefe do Serviço de Geriatria do Hospital São Lucas da PUCRS
Quais são os maiores desafios da velhice?
O maior deles, ao meu ver, é que, à medida em que nós envelhecemos, a qualidade de vida de cada um de nós é mais determinada, em grande parte, pela capacidade de manter a autonomia e a independência. O que realmente importa é o envelhecimento bem-sucedido. De nada adianta chegar aos 90 anos se os últimos 15 anos tiverem sido com total dependência, deitado numa cama, precisando de recursos e de outras pessoas para cuidar. O grande desafio da medicina é o que se chama de compressão da morbidade. Com a expectativa de vida adulta se aproximando do nosso limite biológico, a incidência de doenças que a gente pode considerar incapacitantes pode ser retardada para idades posteriores com modificação do estilo de vida. Essa compressão da morbidade seria viver o maior tempo com independência funcional e qualidade de vida. Assim, mesmo tendo algumas doenças crônicas, a incapacidade funcional ficaria restrita a um curto período de vida, nos permitindo, então, ter uma qualidade de vida adequada e nos trazendo felicidade e sensação pessoal de bem-estar até os últimos dos nossos dias. Infelizmente, acho que, entre outros desafios, também está o preconceito em relação ao envelhecimento. Como sociedade, acho que o desafio principal é o ageísmo. A sociedade ainda não vê, ignora as pessoas da terceira idade como um recurso. Elas são vistas mais como um peso e, na verdade, os idosos constituem um recurso importante para a estrutura da nossa sociedade. Se nós quisermos que o envelhecimento venha a ser uma experiência positiva, precisamos garantir essas oportunidades continuadas de saúde. Só se tem isso com uma mudança social do entendimento do que é envelhecer.
As pessoas costumam temer a velhice. Qual é a melhor forma de se aproximar desse período da vida e de passar por ele?
Com certeza, não é com medo. Talvez a melhor estratégia de todas seja o planejamento: planejar o envelhecimento porque o tempo passa muito rápido. Planejar é entender que sou finita, todos nós somos. A minha história neste planeta precisa ser recheada de oportunidades de saúde. A vida nos coloca desafios e oportunidades. Se nós, como sociedade, pudéssemos oferecer oportunidades de saúde, segurança, participação social, esse medo do envelhecer não seria tão grande. Infelizmente, temos que evoluir muito como sociedade para garantir aos idosos essas oportunidades, mas, individualmente, esse trabalho pode acontecer no reconhecimento de nossas potencialidades. Às vezes, o idoso esquece de tudo com que já contribuiu.