De início, os músculos crescem, a gordura diminui e o corpo bombado aparece nas selfies, como as que celebridades e influenciadores postam nas redes sociais. Quando se usam doses altas de esteroides anabolizantes, uma classe de medicamentos que atrai pessoas interessadas em “corpos fitness”, o efeito estético surge rápido. A saúde do corpo, no entanto, pode se fragilizar aos poucos. Isso porque esse uso intensifica efeitos colaterais que vão de riscos cardiovasculares a complicações hepáticas.
– Hoje, observamos o uso indiscriminado pelo público em geral com intuitos estéticos para ficar musculoso e bonito. Tornou-se tão disseminado nas academias que as pessoas usam em um efeito rebanho. É grave porque vemos adolescentes e jovens usando sem a menor ideia dos malefícios e riscos dessas substâncias – afirma o médico do esporte Marcelo Bichels, diretor científico da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE), que analisa que usuários postam fotos com seus ganhos musculares com anabólicos na internet, mas se calam quando efeitos colaterais surgem, o que cria uma sensação de baixo risco e alto benefício.
Esteroides têm indicações aprovadas, em doses menores, para homens com hipogonadismo, condição em que os testículos produzem pouca testosterona, entre outros usos pontuais e com segurança comprovada. No entanto, profissionais ligados a sociedades médicas brasileiras afirmam que cresceu o número de pacientes que chegam aos consultórios com complicações causadas pelo uso estético dessas substâncias, o que fez o alerta chegar ao Conselho Federal de Medicina (CFM) no ano passado.
Um estudo brasileiro de 2019 publicado na revista científica Plos One analisou o uso de esteroides anabolizantes por 719 praticantes de musculação em Curitiba (PR) e identificou que três a cada quatro usuários usavam os medicamentos para fins estéticos. No total, apenas 2,5% dos participantes usavam esteroides para um fim terapêutico aprovado. De acordo com o estudo, quase 55% dos usuários entrevistados adquiriram os remédios com amigos. Outros 37% compraram anabolizantes com prescrição médica na farmácia.
– Há um estudo antigo, que nem se poderia fazer hoje por questões éticas, em que se deu doses crescentes de testosterona para se saber com quanto se conseguiria um aumento efetivo do músculo. Viu-se que a dose que produziu isso era muito maior do que a usada no tratamento adequado e acima dos níveis fisiológicos do corpo – afirma a médica endocrinologista Andréa Fioretti, vice-presidente do departamento de Esporte e Exercício da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), que lembra que o coração também é músculo e tende a crescer e hipertrofiar durante esse tipo de aplicação.
Uma das preocupações dos médicos que levaram a questão ao CFM é que o uso desse tipo de remédio para estética passou a ser reforçado nas redes sociais por influenciadores, inclusive alguns médicos que encontraram na prescrição da classe de medicamentos um nicho de mercado para pacientes interessados em hipertrofia e emagrecimento. Fioretti reforça que não há dose segura nesses casos.
Esse tipo de conduta já movimenta punições em conselhos regionais de medicina. Em Santa Catarina, por exemplo, uma interdição cautelar foi anunciada em fevereiro contra um médico que promete formar “experts em anabólicos”. A decisão o proibiu de defender ou ensinar sobre o uso de esteroides para ganho muscular e demandou que ele excluísse o material das redes sociais.
Segundo a Sbem e a SBMEE, o uso de esteroides anabolizantes para fins estéticos e esportivos se tornou um “grave problema de saúde pública” no país. A prática de receitar a classe de medicamentos para a estética não é recomendada por sociedades médicas ou científicas nem dispõe de protocolos ou guias de receituários. A prescrição é considerada antiética e ilegal pela Sbem e pela SBMEE, conforme alertas emitidos pelas duas instituições em setembro do ano passado.
– Há um verdadeiro comércio de cursos de fim de semana de prescrição de anabolizantes. Prescritores pintam um cenário de sucesso, já que o faturamento realmente é alto e a demanda existe, e vendem essa ideia a estudantes de Medicina ou médicos que estão se formando e ainda não passaram na residência, de que eles podem ser especialistas em hormônios. É a apologia do uso indevido – diz o endocrinologista Clayton Macedo, presidente da Comissão de Endocrinologia do Exercício e do Esporte da Sbem.
De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), indicações off-label, ou seja, que estão fora da bula aprovada para uma medicação, são feitas “por conta e risco do profissional que prescreve o medicamento”. A prática em si não é ilegal, mas exige cautela e responsabiliza o prescritor, o que significa que é atribuição do CFM regrar esse uso. É o caso do uso estético de anabolizantes. Desde 2012, a prescrição de esteroides fora dessas indicações com benefícios clínicos comprovados é vedada pela autarquia, o que, em tese, proíbe o uso para ganho muscular, já que ele não é indicado por sociedades científicas nem aprovado pela agência regulatória.
Após a pressão das sociedades médicas para que esse tipo de prescrição off-label sofra maior controle e regulamentação, o CFM avalia uma nova resolução para regular melhor “o uso de terapias hormonais com esteroides e anabolizantes com objetivos estéticos ou para ganho esportivo”. Procurado por GZH, o conselho não quis comentar o tema.
“Pagando para ser cobaia”
Ao menos desde os anos 1960, esteroides anabolizantes são usados por atletas que buscam ganhos na performance – em torneios oficiais, isso é considerado doping e é proibido por federações esportivas. Entretanto, o uso se tornou comum no fisiculturismo, competição em que o desenvolvimento muscular dos atletas é o que conta, segundo critérios de volume e estética. Hoje, a modalidade faz sucesso nas redes sociais, o que motiva a busca por hormônios e fórmulas que prometem resultados rápidos, na forma de dietas ou exercícios.
– O uso de anabolizantes começou com atletas, mas a partir da década de 1980 cresceram os usuários recreativos na musculação. Nas redes sociais, informações que antes ficavam nas academias se disseminam mais rápido e celebridades da internet impulsionam isso. Há médicos, nutricionistas, profissionais de educação física e atletas falando disso, alguns fazendo apologia, outros explicando os riscos e mais alguns lidando com o tema como se fosse algo banal – diz o profissional de educação física Marcelo Santos, doutor em cardiologia e autor do livro Anabolizantes – Evidências Científicas: Riscos e Benefícios.
As doses usadas por fisiculturistas e praticantes de musculação costumam ser mais de quatro vezes maiores do que as de indicações terapêuticas. No uso convencional, esses índices são tidos como fisiológicos, adequados aos níveis naturais do corpo. Já as dosagens para hipertrofia são mais altas, suprafisiológicas, e misturam mais de um medicamento, o que potencializa efeitos secundários. Por exemplo, a hipertrofia do coração pela alta testosterona e danos ao fígado causados pela metabolização dos remédios, o que pode levar a infartos e à insuficiência hepática.
Mas há profissionais que prometem minimizar esses riscos por meio de acompanhamento. De acordo com Clayton Macedo, esse tipo de prescritor normalmente não é um especialista habilitado em endocrinologia, ou seja, não fez residência médica na área e não tem Registro de Qualificação de Especialidade (RQE).
– Quem vende essa prescrição usa um apelo comercial de que vai acompanhar e proteger dos efeitos colaterais, mas não vemos isso na prática. Na hora em que o paciente enfarta, o prescritor some – afirma Macedo, que também coordena o programa #BombaTôFora, mantido pelo Núcleo de Endocrinologia do Exercício da Medicina Esportiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Além disso, como faltam estudos sobre efeitos de longo prazo do uso de anabolizantes para estética, muitos influenciadores usam essa incerteza para alegar que faltam dados confiáveis sobre malefícios. Ainda assim, entre os dados disponíveis, estudos epidemiológicos apontam danos. Um artigo publicado pelo comitê antidoping da Dinamarca em 2018, por exemplo, acompanhou 545 usuários de anabolizantes que tinham uma média de 26 anos por cerca de 13 anos e comparou a mortalidade com um grupo de não usuários. Entre quem consumia esteroides, a mortalidade foi três vezes maior.
Outro estudo dinamarquês de 2019 reparou que usar anabólicos aumenta em nove vezes a probabilidade de um homem ser condenado à prisão, mesmo quando variáveis como doenças psiquiátricas e classe social são consideradas.
– Sabemos pouco a respeito do uso de anabolizantes por indivíduos jovens. O que vai acontecer a esses adolescentes quando eles tiverem 40, 45 anos de idade? É uma prática contraindicada, então você não pode fazer um estudo clínico com isso porque seria antiético. As pessoas, na verdade, estão pagando para serem cobaias – afirma o médico do esporte e exercício Marcelo Bichels.
O uso de anabolizantes para cultivar músculos costuma ser feito pela via injetável e em ciclos que duram de um a três meses intercalados com períodos de abstinência para evitar sobrecargas na saúde. O uso dos remédios em homens induz a um hipogonadismo artificial, já que o corpo identifica o excesso de hormônios no sangue e reduz sua produção natural, de modo que os testículos deixam de produzir testosterona naturalmente, razão pela qual a prática pode levar à atrofia testicular e à infertilidade.
Com isso, o usuário desse tipo de medicamento entra em um período de deficiência hormonal induzida e faz as chamadas terapias pós-ciclo, com o objetivo de controlar efeitos colaterais causados pelos remédios e manter o físico durante uma espécie de período sabático de testosterona. Entre os remédios usados, estão hormônios femininos, medicamentos para o controle da calvície e ginecomastia ou fitoterápicos.
– Nas redes sociais, influenciadores dizem que a pior parte é o pós-ciclo. A pessoa fica deprimida, sem energia, perde peso e se alimenta mal, o que gera problemas psicológicos que a pessoa compensa usando outras coisas. Como a testosterona é estimulada num nível alto, quando você tira, ela cai muito e fica inibida – explica o profissional de educação física Bruno Masini, que atua no Laboratório de Endocrinologia do Exercício da Unifesp e é ex-usuário de anabolizantes.
Masini começou a usar esteroides com cerca de 18 anos de idade para melhorar o seu físico. Mais velho, decidiu competir no fisiculturismo e intensificou o uso dos medicamentos. Parou aos 37, após sofrer um infarto e passar por uma cirurgia para sobreviver. O profissional ressalta que, na época, nenhum dos exames que fazia regularmente previu o incidente cardiovascular que quase o matou. Após o susto, suspendeu o uso dos medicamentos, perdeu peso e demorou mais de um ano até seu corpo recuperar seu eixo hormonal natural – o que nem sempre acontece com ex-usuários. Hoje, precisa tomar remédios de uso contínuo para prevenir novos infartos.
– Além de arriscar a vida, você está pegando um corpo emprestado. Se você parar de usar, vai perder boa parte dos ganhos estéticos. Isso mexe com o psicológico porque em um dia você está forte e, no outro, no espelho, não está mais. As pessoas começam a usar achando que vão fazer dois, três ciclos e pronto, mas, na verdade, usam, ganham músculos e ao ver que perdem ao parar, fazem o quê? Voltam. Vira um ciclo vicioso – explica Masini.
Segundo Marcelo Santos, a soma dos efeitos fisiológicos da suspensão do uso de anabolizantes com a vigorexia, um distúrbio de autoimagem em que a pessoa se vê “fisicamente inferior” àquilo que observa no espelho e cria uma compulsão por exercícios físicos para compensar o sentimento, leva o usuário à dependência psicológica de anabolizantes. Nas academias, não é raro que usuários façam uso dessas substâncias por conta própria.
– Na educação física, o uso é disseminado e já vi vários colegas, infelizmente, orientando como fazer baseados em experiências pessoais, e não em ciência. Muitos personal trainers usam anabolizantes porque a imagem corporal acaba sendo uma espécie de currículo. Estar em boa forma e com um bom desenvolvimento muscular gera potenciais clientes. Muita gente contrata um profissional baseado nisso – afirma Santos.
De acordo com o Conselho Federal de Educação Física (Confef), não compete à classe a prescrição de anabolizantes e a prática pode ser apurada e julgada pelo órgão. “Somos terminantemente contrários” à indicação de esteroides por profissionais da área, afirmou o conselho em nota. O Confef ressaltou que julgou dois casos, em 2013 e 2019, sobre profissionais presos em flagrante por portar, vender ou manter em depósito medicamentos do gênero. As punições foram, respectivamente, a cassação do registro e a sua suspensão por um ano.
Laboratórios clandestinos
Os usuários de anabólicos também acessam essas drogas por meio de laboratórios clandestinos que anunciam seus produtos nas redes sociais. GZH identificou que é possível comprar esteroides injetáveis sem dificuldades por meio de perfis no Instagram por valores entre R$ 85 e R$ 290 e a preços mais baratos do que remédios com registro sanitário. Parte do discurso de médicos que promovem esteroides visa atrair quem compra essas drogas com a promessa de fornecer remédios com qualidade superior à comprada na clandestinidade.
Hoje, há apenas seis marcas de anabolizantes sintéticos registrados para uso no país, de acordo com a Anvisa. Em comparação, laboratórios clandestinos chegam a oferecer mais de 16 produtos à base de testosterona diferentes, nenhum deles autorizado. A atividade pode ser considerada uma infração sanitária e crime contra a saúde pública, segundo a agência.
Na avaliação da psicóloga Cristiane Moreira, o ambiente das redes sociais tende a ditar determinados modos de existir, como se houvesse um roteiro que definisse o que é uma pessoa interessante. Há normas para qual o estilo de vida mais saudável, o lugar que é o melhor a se frequentar e também qual o corpo mais adequado a se ter.
– Há confusão entre saúde e beleza, como se um “corpo bonito” dentro de um molde musculoso e magro falasse só de saúde. Pode falar também de transtornos alimentares, anorexia ou vigorexia. Falar de autocuidado como se isso fosse ter um rotina rígida e disciplinada para manter um determinado físico, como pregam alguns influenciadores, mas se esquecendo que saúde é algo integral e tem a ver com bem-estar, relações e momentos de prazer, não é saudável – analisa Cristiane, que é professora da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e pesquisa a interação entre psicologia e tecnologias.
Na visão da psicóloga, hoje as cobranças para que homens heterossexuais sejam mais interessantes, fortes e se submetam mais a padrões estéticos cresceu, já que o contexto atual implica que eles também podem ser descartados ou escolhidos por mulheres, o que pode ser um fator a mais na demanda por testosterona. Cristiane, no entanto, ressalta que as pressões estéticas permanecem mais intensas contra o público feminino. Agora, além de magras, elas precisam ser musculosas. Não à toa mulheres também fazem parte do público-alvo de médicos prescritores de anabolizantes, que passaram a diagnosticar deficiência de testosterona também nelas.
A reposição do hormônio até pode ser benéfica em alguns casos específicos, como uma terapia de exceção na falta de libido feminina. Nos consultórios, no entanto, esse uso tem avançado com a promessa de emagrecimento, corpo esbelto e bem-estar.
– As mulheres todas de 30 até 40 anos trabalham mais, estão mais cansadas e a libido diminui, e aí dizem que elas precisam de testosterona, como se fosse uma solução. Parece que não se pode mais ter um corpo que não ganha tanta massa nem se define.
Vejo pacientes até com chips hormonais que falam que controlaram sintomas de menopausa ou secaram, e realmente é rápido, mas aí colesterol e glicose sobem e logo você identifica problemas metabólicos no corpo – explica a endocrinologista Karen de Marca, secretária-executiva da Sbem.
Influenciadores que recomendam esteroides, porém, garantem que o uso em mulheres seria seguro. Como há terapias com anabolizantes recomendadas por sociedades médicas para a afirmação de gênero de homens transexuais, esse tipo de tratamento é citado como uma suposta chancela para o uso do hormônio na estética feminina.
– A mulher cisgênero que usar anabolizantes vai acabar virilizada, efeito que é desejável no homem trans. Enquanto em um o uso é estético, a pessoa trans precisa por conta de um sofrimento extremo, a ponto de se automutilar ou não ascender profissionalmente e socialmente por medo de transfobia. Não sabemos se é algo totalmente seguro com estudos de longo prazo, mas é um contexto em que se você não tratar, a pessoa pode morrer, ao contrário da malhação – diz Karen.