Aos dois anos e oito meses, Agnes Rodrigues Machado já carrega consigo traços marcantes da personalidade do pai com quem pouco conviveu: é muito comunicativa, inteligente e curiosa.
Rerisson Sandim Machado foi uma das quase 200 mil vítimas do coronavírus durante o primeiro ano de pandemia no Brasil — a Organização Mundial da Saúde (OMS) fez a declaração em 11 de março de 2020, data que completa três anos neste sábado (11). O vendedor de carros faleceu em 5 de outubro de 2020, aos 32 anos, quando a filha tinha apenas três meses de vida. Ele deixou também a companheira de mais de uma década, Daniella Rodrigues.
— Fisicamente, ela é muito parecida comigo, mas o nariz é dele. O jeito de caminhar é igual ao dele também, com os braços para baixo e com as palmas das mãos viradas para trás — observa a empresária, que hoje tem 31 anos.
Os sintomas de Rerisson começaram em um sábado, durante uma viagem ao Litoral Norte. Na segunda-feira, procurou atendimento médico em Canoas, onde morava com a família, mas foi diagnosticado com uma infecção urinária, após o exame de raio X não apontar nenhum problema em seus pulmões. Com a piora dos sintomas, decidiu pagar pelo teste de covid-19, que deu positivo. No final da mesma semana, acordou sem conseguir respirar e voltou ao hospital.
— Ele tomou banho e me deu tchau. Disse que eu era uma boa mãe e que iria cuidar bem da Agnes, como se realmente fosse uma despedida. Foi como se ele soubesse que não ia voltar — relembra Daniella.
Sem nenhuma comorbidade, o vendedor de automóveis já estava com 80% dos pulmões comprometidos quando chegou ao hospital. Rerisson ficou 26 dias internado e só viu a filha por videochamada enquanto ainda estava consciente. Falou com a esposa pela última vez por telefone, antes de ser entubado.
Após a perda do marido, Daniella precisou dar conta de tudo sozinha. Com a renda reduzida pela metade e sem trabalhar nos três primeiros meses de luto, teve ajuda de familiares e amigos para cuidar de Agnes e se reestabelecer financeiramente. Hoje, as duas recebem uma pensão devido à morte de Rerisson — o valor é destinado ao pagamento de uma boa escola para a menina, algo que o vendedor de automóveis considerava prioridade.
De acordo com a empresária, o marido sonhava em ser pai e exerceu a função muito bem durante os dois meses em que conviveu com a filha. Agora, Daniella faz questão de contar histórias dele para Agnes e mostrar as fotos que ficaram de recordação.
— Em momento algum eu evito falar sobre ele, contar como ele era divertido e o que ele falaria em determinada situação. A Agnes sabe muito bem quem é o pai dela, sabe que ele é “uma estrelinha”. Mas essa perda ela sempre vai ter, sempre vai ser um buraco e ela é a mais prejudicada, porque não teve o prazer de conviver com ele. Então, por mais que seja uma dor que vamos carregar para o resto da vida, minha missão é contar para ela quem ele foi e ensiná-la a amar o pai — ressalta a empresária.
Ele tomou banho e me deu tchau. Disse que eu era uma boa mãe e que iria cuidar bem da Agnes, como se realmente fosse uma despedida. Foi como se ele soubesse que não ia voltar
DANIELLA RODRIGUES
Empresária
Apesar de ainda não ter total entendimento da situação, Agnes é parte de um grupo de milhares de crianças brasileiras que ficaram órfãs de um dos pais por causa da covid-19. Até 24 de setembro de 2021, pelo menos 12.211 indivíduos de até seis anos (mais de 500 no Rio Grande do Sul) haviam perdido pai ou mãe para a doença — 25,6% deles não tinham completado um ano de idade, assim como a menina.
Os dados são de um levantamento da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), entidade que representa os cartórios de Registro Civil do Brasil e administra o Portal da Transparência do Registro Civil. A pesquisa foi realizada cruzando o CPF dos pais nos registros de nascimento das crianças e os documentos de óbito feitos nos cartórios de registro civil do país desde 2015. Foi neste ano que as unidades passaram a emitir o documento na certidão de nascimento de crianças recém-nascidas.
Outro estudo mais amplo, publicado em dezembro do ano passado no periódico Archives of Public Health, da Springer Nature, mostrou que 40.830 crianças e adolescentes perderam suas mães devido à covid no Brasil entre 2020 e 2021. A pesquisa foi conduzida por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e divulgado pelo Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância).
A saúde mental das crianças
Celia Landmann Szwarcwald, pesquisadora do Laboratório de Informação e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), comentou na época da publicação do estudo que a morte de um dos pais, especialmente da mãe, está ligada a “desfechos adversos ao longo da vida e tem graves consequências para o bem-estar da família, afetando profundamente a estrutura e a dinâmica familiar”. Também destacou que essas crianças órfãs são "mais vulneráveis a problemas emocionais e comportamentais”.
Psicóloga clínica especialista em luto, Karina Polido explica que as crianças entendem a morte de acordo com o estágio de desenvolvimento cognitivo e emocional. Até os dois anos, o conceito de irreversibilidade não é compreendido, mas, a partir dos três, elas desenvolvem um pensamento mágico, compreendendo que a morte é um fenômeno temporário. Por isso, nessa fase, é natural que façam repetidas perguntas sobre a pessoa, na expectativa de que a resposta seja diferente em algum momento.
Com seis anos, as crianças já costumam ser capazes de compreender que a morte é real, que acontece em todas as famílias e que não é reversível. Já a partir dos 10, conseguem compreender a morte de forma mais abstrata e podem criar o próprio conceito do que é morrer, além de manifestar angústia e medo em relação sobre isso.
Mas, independentemente da idade, cada uma poderá se enlutar da própria maneira, ressalta Karina: algumas ficam mais entristecidas e chorosas, outras mais quietas e, outras, se tornam mais agressivas.
Ao assimilar a perda, a criança pode ter quadros de depressão, ansiedade e também apresentar outras manifestações somáticas, como irritabilidade e falta de apetite e de sono, acrescenta Diorge Mariano, psicólogo clínico de crianças, adolescentes e adultos, que é membro efetivo da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul (SPRGS) e coordenador do Comitê de Psicanálise com Crianças da instituição.
— Há sinais de alerta, como tristeza constante, agressividade, inibição e reclusão. E aí quando isso perdura de uma forma mais crônica, o indicado é que se busque atendimento profissional especializado — indica Mariano.
Conforme o psicólogo, toda perda familiar gera um impacto, mas, no caso de vítimas da covid-19, o tema da morte pode ter um um viés mais intenso, justamente por ser algo coletivo e catastrófico. Ele ainda enfatiza que essas crianças ficam em contato com adultos que também estão fragilizados pela perda e, às vezes, não conseguem oferecer a sensação de proteção adequada.
Os especialistas comentam que não há “idade certa” para se falar sobre a morte com as crianças, mas destacam que é importante que o tema seja tratado de forma honesta e objetiva, sem “enfeitar” com histórias que possam confundi-las. Isso não significa, contudo, que a família não precise adaptar o assunto a uma linguagem que a criança entenda ou falar de forma carinhosa e cuidadosa.
— Quando os adultos não conversam e não incluem as crianças no luto familiar, por melhor que seja a intenção, acabam privando-as de entrar em contato com a finitude e, consequentemente, de construir um repertório de enfrentamento para tais situações. Pode ser difícil conversar sem se emocionar, mas essa não deve ser uma preocupação, porque, quando choramos na frente das crianças, mostramos o que sentimos e damos-lhes permissão para fazer o mesmo — esclarece Karina.
Mariano concorda que evitar falar sobre a morte dificulta o processo de elaboração de luto da criança. O membro da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul complementa que o assunto pode ser abordado conforme a curiosidade da criança. Ouvir histórias e ver fotografias do familiar que faleceu ajuda a criar uma representação interna daquela figura, algo que é importante para o desenvolvimento da criança.