Tributo ao empenho dos profissionais, especialmente as mulheres, do Sistema Único de Saúde (SUS) durante o primeiro ano da pandemia de coronavírus no Brasil, Quando Falta o Ar, dirigido pelas irmãs Ana Petta e Helena Petta, estreia nesta quinta-feira (9) no país. Em Porto Alegre, a produção entra em cartaz no CineBancários (17h) e no Espaço Bourbon Country 8 (19h20min).
Vencedor da 27ª edição do festival internacional É Tudo Verdade, em 2022, prêmio que o qualificou para a corrida ao Oscar — sem passar à fase seguinte, apesar da empolgada torcida nas redes sociais —, o documentário resulta de duas trajetórias que contribuem de forma contundente para alcançar um equilíbrio sublime entre a sensibilidade e a crueza da matéria bruta. Ambas cineastas, que atuaram juntas na série de ficção Unidade Básica, Ana, 46 anos, é atriz, e Helena, 43, médica infectologista.
No período de angústia, medo e incertezas do mundo ainda sem vacinas que desvendava a covid-19, as paulistas decidiram começar a registrar a mistura “surreal”, nas palavras de Ana, resultante da crise sanitária com o governo do então presidente Jair Bolsonaro. Era também uma forma de aliviar a inquietação de Helena, à época com bebê em casa e afastada da linha de frente. Mas logo surgiu a dúvida: como ir além do que o jornalismo transmitia diariamente nos veículos de comunicação?
— A vontade era fazer uma coisa com mais tempo, mais perto da pele, do corpo, uma sensibilidade que o cinema traz, e uma sensibilidade feminina. Acho que o filme é muito feminino, não só por ter diretoras mulheres. Tem um olhar para o cuidado — comenta Ana, em entrevista por telefone.
Homens também compõem o enredo, mas o foco é nas mulheres, muito representativas de áreas como a enfermagem e os serviços de limpeza.
— Sempre me chamou muito a atenção que, apesar de todas as dificuldades que estavam vivendo, tudo jogando contra, elas buscavam, o tempo todo, conexão, sensibilidade, criar ambientes mais acolhedores. Isso nos tocava. Ficamos muito sensibilizadas — recorda Ana.
Os serviços do SUS são mostrados com diversidade de ambientes, atividades e perfis de personagens. As gravações foram realizadas no Hospital das Clínicas de São Paulo (SP), na unidade de saúde Morro da Conceição, em Recife (PE), no Hospital Municipal de Castanhal e junto de uma equipe de saúde de Igarapé-Miri (PA), na Penitenciária Lemos Brito, em Salvador (BA), e no Serviço SOS Funeral, da prefeitura de Manaus (AM).
Na assepsia obcecada das unidades de terapia intensiva (UTIs) ou em moradias de extrema vulnerabilidade da periferia, vê-se a fragilidade diante da doença arrasadora: o banho de leito em um homem inerte e entubado, uma mulher com intensa falta de ar, a demonstração de como se lavar bem as mãos, o orgulho da funcionária da lavanderia que pode oferecer “um lençolzinho quentinho e limpinho” aos internados, um idoso que quer ouvir Princesa, de Amado Batista. Ao som do cantor goiano, o paciente é incentivado e auxiliado a se sentar sobre o colchão, respirar com calma e se transferir para uma poltrona. Ofegante, ele tosse. Chora ao falar da esposa que falecera em decorrência da covid e ao enumerar a família que formou: oito filhos, 23 netos e 15 bisnetos.
— Imagina a festança que vai ser quando o senhor voltar, hein? — incentiva uma integrante da equipe assistencial.
É um filme com o protagonismo de muitos sons: a pá cavando covas no cemitério, as grades da cadeia, os apitos dos aparelhos na UTI, o saco plástico sendo aberto para receber um cadáver, os pássaros cantando — sob forte calor, o profissional completamente paramentado, parecendo um astronauta, destoa dos moradores sem máscara e com pouca roupa em uma comunidade. Na abertura de Quando Falta o Ar, a tela escura, após os créditos iniciais, tem só um ruído incômodo, que intriga o espectador. As cenas que vêm na sequência são o primeiro de muitos assombros.
— Nossa questão era: até onde mostrar e até onde não mostrar? São muito duras determinadas cenas. Mas, ao mesmo tempo, se você não vê, não acredita que aconteceu — justifica a atriz e codiretora.
O lançamento do documentário no circuito comercial se dá três anos após o decreto de pandemia de covid-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Ao pensar em 2020, Ana reflete sobre a importância de que as vivências, por mais dramáticas e dolorosas que tenham sido, não se apaguem:
— Vamos, um pouco, esquecendo, acho que para sobreviver, tocar a vida. São importantes os registros, tudo que possa falar sobre esse momento. Nós somos os sobreviventes dessa tragédia. As novas gerações vão saber do que aconteceu através de nós. Temos o dever de não deixar esquecer, de construir uma memória coletiva. Acho que ainda não elaboramos esse luto coletivamente. As reparações precisam ser feitas para que um governo negacionista não aconteça mais.