As poucas informações sobre o albinismo no Brasil são notadas também no Rio Grande do Sul. Os estudos populacionais não incluem o grupo, segundo o Departamento de Economia e Estatística, vinculado à Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (DEE/SPGG). Por não ser uma condição compulsória - aquela que o serviço de saúde precisa notificar -, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) não tem levantamento sobre esse público, nem atendimento especializado. Além disso, o Estado não tem políticas públicas específicas para albinos.
GZH conta a história de quatro pessoas albinas que moram em Porto Alegre: um bebê, duas crianças e duas adultas.
Nasce um albino
Diego da Silva Diogo, 40 anos, deixou o trabalho no início da tarde de 25 de julho de 2022 para acompanhar o nascimento do filho Joaquim. A esposa, Luana Lima Latorre de Souza, 38, havia sido internada em um hospital de Porto Alegre para a cesariana, marcada para as 18h. O pai aguardou o procedimento na sala de parto e foi chamado para cortar o cordão umbilical, por volta das 19h40min.
— Quando cortei, vi que ele era bem branquinho, fiquei em choque, travado, sem saber o que fazer — recorda Diego.
O estranhamento do pai ocorreu porque ele e a mãe têm pele morena e cabelo escuro, que é distinta do que viram no recém-nascido. A dúvida ficou entre o casal, e a equipe médica não lhes deu uma resposta naquele momento.
— Estávamos surpresos. A obstetra limpava, e ele ficava cada vez mais branco. Quando notei os cílios, nos olhamos e comentamos que só podia ser albino — diz a Luana.
Depois da alta hospitalar, um exame oftalmológico confirmou o diagnóstico para albinismo. No caso de Joaquim, o tipo identificado foi o oculocutâneo, o mais comum, que afeta pele, cabelo e olhos. Do “susto” no parto, o casal que mora no bairro Azenha, na Capital, passou à fase de colher informações sobre como lidar com um filho albino.
Eles sabiam que existiam pessoas com a condição porque Luana conhecia a mãe de duas crianças com albinismo (leia a história nesta reportagem) em Porto Alegre. Fora a conhecida, o casal relata ter buscado, sem sucesso, aconselhamento de um profissional especialista nesse tipo de atendimento.
— Não encontramos aqui (em Porto Alegre) alguém que conhecesse a fundo o assunto, que trabalhasse com albinos. Não tivemos base para buscar dentro de um hospital, encontramos informações na internet. O Google foi quem mais nos ajudou — resume a mãe.
Conhecer as consequências do albinismo na vida da pessoa é importante porque a condição é acompanhada por problemas de baixa visão e, em caso de descuido, pode causar doenças graves na pele. Por isso, os pais levaram Joaquim a uma oftalmologista especialista em baixa visão logo depois do nascimento.
A profissional indicou que o menino fosse encaminhado para sessões de estimulação visual precoce. No caso de Joaquim, esse trabalho busca reduzir o impacto do nistagmo — um movimento descontrolado dos olhos que dificulta a focalização da imagem — na visão da criança. Por isso, o bebê, com sete meses, é levado para atividades semanais na União de Cegos do Rio Grande do Sul (Ucergs), na Capital, e a uma clínica particular especializada em baixa visão em Caxias do Sul, na Serra.
Outra alteração causada pelo albinismo é a fotofobia (ou sensibilidade à luz), condição que faz o casal evitar sair à rua em períodos de sol e manter ambientes com iluminação reduzida em casa para não incomodar a criança. Os óculos escuros, adaptados por não haver um de tamanho específico para recém-nascidos, também fazem parte da rotina contra a fotofobia desde o segundo mês de vida.
— Ele gosta muito da noite. É a hora que abre o olho confortavelmente. Durante o dia, ele tende a dormir mais — relata Luana.
Não deixaríamos de ter um filho com o medo da possibilidade de ele ser albino.
DIEGO DA SILVA DIOGO
Pai de Joaquim
Os cuidados com os olhos são somados à atenção com a pele do menino que, pela deficiência na produção de melanina, fica exposta à ação de raios ultravioleta. Sem a defesa natural, é preciso usar algum tipo protetor solar, para evitar queimaduras, câncer e envelhecimento precoce.
Os pais foram aconselhados a não aplicar o protetor no menino até os seis meses de vida. Por isso, a cada saída, a criança era protegida com roupas para evitar a exposição da pele.
Além da atenção com a saúde do filho, o casal também precisa lidar com a curiosidade na rua. Alguns não entendem como Diego, por ser moreno, é o pai da criança; outras estranham quando veem mãe e filho na rua: há até quem pense que Joaquim é um boneco.
Os relatos, até o momento, estão ligados ao estranhamento de pessoas, e não em tom de preconceito ou discriminação, diz o casal. Ao falar de sua principal preocupação com o futuro do filho, Luana assegura que não são os aspectos da saúde, mas a possibilidade de que curiosidade de hoje mude para discriminação no futuro.
— Meu maior medo quando o vejo crescendo é o preconceito, do que vão falar. Não temos como fazer com que todo mundo trabalhe isso com os filhos em casa, mas vamos trabalhar com ele, para que tenha noção de que é diferente, e que o diferente faz parte do todo — comenta a mãe.
Casais que tiveram uma criança com albinismo têm 25% de chance de ter o segundo filho com a condição. Para Diego, esse fato não influencia o planejamento da família:
— Não deixaríamos de ter um filho com o medo da possibilidade de ele ser albino.
Os irmãos albinos
Ana Carolina Rieck Duarte, 35 anos, pediu para que a entrevista com GZH fosse feita no Parque Farroupilha (Redenção), em Porto Alegre, antes das 10h ou depois das 16h. A solicitação quis evitar que os filhos Francisco Rieck Campos, 5 anos, e Maria Rieck Campos, de 6, não fossem expostos à parte do dia com grande incidência de raios ultravioleta, principais responsáveis pelo surgimento do câncer da pele. Esse cuidado é indicado para todas as pessoas, mas evitar a exposição à radiação solar no horário é um dos hábitos mais importantes para a saúde de pessoas albinas, como é o caso dos filhos de Ana Carolina.
— Os amigos sabem que têm de acordar cedo ou esperar o fim da tarde para ver os dois, porque eles ficam “presos” em casa. E, quando saem, é com uma parafernália: óculos, chapéu, camiseta UV e protetor solar — explica a mãe.
Em um dos parquinhos da Redenção, os irmãos brincavam com outras crianças, sob supervisão da mãe, no fim de dezembro passado. Para evitar a exposição dos olhos à luz, ambos usavam óculos escuros; na cabeça, a dupla vestia chapéus para proteger o couro cabeludo. Além disso, a baixa visão de ambos requer alertas periódicos da mãe:
— O que mais falo na minha vida todos os dias é a frase: “Olha para o chão!”. Eles tropeçam e caem muito, comparados aos amigos da mesma idade.
Os amigos sabem que têm de acordar cedo ou esperar o fim da tarde para ver os dois, porque eles ficam “presos” em casa. E, quando saem, é com óculos, chapéu, camiseta UV e protetor solar
ANA CAROLINA RIECK DUARTE
mãe de Maria e Franscisco
Na mochila, Ana Carolina levava um protetor solar infantil fator 50, que protege a pele dos raios ultravioleta A e B. O valor do protetor é uma das dificuldades de quem é albino: o produto utilizado pelos irmãos custa por volta de R$ 90 em farmácias, e foi obtido junto à administração municipal por meio de um processo judicial que demorou cerca de sete meses. Dez frascos foram liberados para as crianças, quantidade que deve durar quatro meses.
A demora tem uma explicação: segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS), no Brasil, apenas os Estados de Alagoas e Bahia têm políticas públicas específicas para o público. O único Projeto de Lei (PL) que trata dos direitos das pessoas com albinismo é o 7.762/2014, do senador Eduardo Amorim (PSC/SE), que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Albinismo. Segundo o site da Câmara dos Deputados, o PL está parado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) desde março de 2021.
Entre outros pontos, o PL propõe a elaboração e implementação de um cadastro nacional, porque esse levantamento não é feito no censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que impossibilita identificar o número de albinos no país.
O PL trata do acesso gratuito a protetor solar e atendimento dermatológico especializado, atendimento oftalmológico, distribuição de lentes especiais e capacitação de servidores do Sistema Único de Saúde (SUS) para atendimento à população com albinismo. No Rio Grande do Sul, um projeto de lei de 2010, do então deputado estadual Jerônimo Goergen (PP), propunha a distribuição da loção nos postos de saúde do Estado. O texto, no entanto, foi arquivado devido ao fim da legislatura.
Informar e conscientizar
Depois do nascimento de Maria, a família se mudou para Governador Celso Ramos, no litoral de Santa Catarina, onde Ana Carolina criou um perfil no Instagram chamado Albinismo Sem Fronteira. “Criando dois irmãos albinos. Conscientizar!” é a descrição da página, que é atualizada com as atividades dos filhos e informações sobre albinismo.
A mãe diz que a ideia surgiu por ter encontrado poucos conteúdos sobre o assunto nas buscas feitas após os primeiros anos de vida dos irmãos. O perfil colocou-a em contato com pessoas de diferentes pontos do país, que também relatam dificuldades e incertezas:
— Criei porque sabia o quão foi difícil ter informações. Comecei a postar de forma resumida o que aprendi. Recebi muitas mensagens de mães chorando, dizendo que não sabiam se o filho era albino, que diziam que os médicos também não sabiam.
Quando a menina nasceu, Ana Carolina estava na situação na qual os pais de Joaquim estão hoje: se quisesse ter outro filho com o mesmo companheiro, a chance de nascer mais um albino era de 25%. Pai e mãe não se preocuparam com o fato e decidiram que Maria teria um irmão um ano e alguns meses mais jovem.
—Para mim, era indiferente. Se o segundo filho nascesse albino, seria bom para a Maria, porque ela teria um irmão igual a ela, para crescer junto, um ajudar o outro — acrescenta.
Mascarar o albinismo
Aos 14 anos, Bianca Brandalise estava incomodada por ser alvo de piadas, comparações e olhares curiosos: o cabelo típico de uma pessoa albina chamava atenção, fazia dela a “diferente” na rua, nos espaços frequentados. Por isso, optou por escurecer o cabelo, sobrancelhas e cílios, como uma forma de deixá-la "fora do foco".
— Quando somos adolescentes queremos pertencer a um grupo, parecer com os outros. Eu não queria chamar atenção por conta do cabelo, era uma característica que, na época, eu não conseguia ver com bons olhos — relata Bianca, hoje com 26 anos, engenheira eletricista e moradora da zona norte de Porto Alegre.
Episódios de discriminação são comuns em indivíduos do grupo em todo o mundo, e dificultam a inserção de pessoas com albinismo na sociedade, afirmou Ikponwosa Ero, relatora independente da Organização das Nações Unidas (ONU) para os direitos humanos de albinos, durante visita ao Brasil em 2019.
Naquele ano, a especialista agregou que essas circunstâncias causam “vulnerabilidade e marginalização” dessa parcela da população. No caso de Bianca, a saída para não ficar sozinha foi participar de pequenos grupos para “suportar a situação” na escola, na companhia de colegas que, a exemplo dela, sentiam-se apartados do restante da turma.
Somada à parte física, havia a baixa visão da jovem, que impedia que a estudante enxergasse o conteúdo escrito pelo professor no quadro, ainda que sentada nas primeiras carteiras. Essa dificuldade foi outro fator a contribuir para mantê-la afastada dos outros estudantes.
— A educação não está preparada para lidar com o bullying, o preconceito e com o aluno que é diferente. Situações que não eram corretas aconteciam na escola, não por maldade, mas os professores não sabiam lidar com um aluno com alguma limitação física, cognitiva. Isso se torna algo bastante complicado — pontua.
Não me imagino escurecendo o cabelo para mascarar essa característica, que hoje vejo como algo único, que vejo beleza, apesar de ser diferente.
BIANCA BRANDALISE
Engenheira eletricista moradora de Porto Alegre
Bianca recebeu o diagnóstico de albinismo logo depois do nascimento. Mas, segundo ela, à época, os pais tinham poucas informações sobre como lidar com o fato. A jovem diz que a família foi "assustada" com orientações ruins de profissionais consultados: disseram que a menina não poderia ler e escrever, seria incapaz de acompanhar os colegas na escola, desenvolveria limitações físicas, teria de se resguardar do sol de forma extrema.
A jovem mudou-se sozinha de Caxias do Sul, onde viveu até os 16 anos, para estudar Engenharia Elétrica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. No Ensino Superior, o problema da visão seguia, mas ela ganhou aliados nos estudos: telefones celulares e tablets foram utilizados para fotografar o conteúdo do quadro para, depois, ampliar a foto nos dispositivos. Assim, ela conseguia enxergar melhor os materiais das disciplinas.
Na Capital, ela seguia com o cabelo em tom mais escuro, condição que só mudou durante intercâmbio para estudar Engenharia Biomédica na França. Bianca seguiu na Europa por quase três anos. O contato com outras culturas, pessoas e lugares fez com que ela mudasse a percepção das características físicas e abandonasse, aos 21 anos, o hábito de esconder a condição.
— Consegui me conhecer, me aceitar como sou naturalmente. Resolvi deixar o cabelo voltar à cor original, com a intenção de ver se me adaptava e gostava. Agora, não me imagino escurecendo o cabelo para mascarar essa característica, que hoje vejo como algo único, que vejo beleza, apesar de ser diferente — destaca.
Albina sem saber
Duas décadas é o tempo que demorou entre o nascimento de Leila Marques e o dia em que ela ouviu a palavra albinismo pela primeira vez. Hoje, aos 59 anos, com quase um terço de vida sem cuidados adequados para a condição, está convicta quanto ao fato de estar viva e com boa saúde:
— Tive sorte!
A história de Leila está vinculada à da irmã, um ano mais nova, também albina, que trata um câncer de pulmão que, segundo ela, pode ter tido origem em um câncer de pele. As duas cresceram em Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre, nas décadas de 1960 e 1970, com outras duas irmãs com pigmentação normal.
Se hoje existe a reclamação de pouco conhecimento da população sobre o albinismo, há meio século nem sequer se sabia que a condição demandava cuidados além de não se expor à radiação solar e evitar bolhas na pele. Leila relata que ela e a irmã foram integradas às atividades da família e à escola sem qualquer conhecimento sobre o albinismo. E, a exemplo dos outros entrevistados nesta reportagem, convive com a baixa visão desde o nascimento, limitação que era desrespeitada em sala de aula.
— Eu não enxergava, e a professora puxava a minha orelha, colocava no caderno que eu não fazia nada. Era tachada de burra porque não aprendia. Tive de largar a escola porque não avançava, não tinha nada adaptado para mim, fiquei patinando. Comecei a trabalhar de (empregada) doméstica aos 14 anos — conta.
Sofri muito com o preconceito. Ouvi muitas piadas. A minha irmã nem saía de casa. As pessoas se incomodam com o diferente
LEILA MARQUES
Telefonista do hospital Conceição
A falta de um ambiente adequado de ensino fez com que ela fosse alfabetizada em casa aos 11 anos por iniciativa de um primo. Situação similar ocorreu com a irmã, que teve de lidar com os mesmos empecilhos na escola.
A vida de Leila começou a mudar aos 18 anos, ao ouvir uma reportagem na Rádio Gaúcha sobre a Associação de Cegos Louis Braille, na Capital. A organização oferecia meios de estudo para pessoas com baixa visão.
— Meu mundo se abriu, terminei meus estudos e fui para o mercado de trabalho. Ali (na associação) me encontrei com meus pares, com pessoas que tinham a mesma dificuldade que a minha e que precisavam apenas de um caminho — diz.
Adultas e conscientes do albinismo, ela e a irmã iniciaram tratamento e acompanhamento médico em um hospital de Porto Alegre. Foi apenas nesse período que começaram a usar protetor solar, o principal escudo dos albinos contra o desenvolvimento de doenças graves na pele. No entanto, ela recorda que, à época, teve acesso apenas ao protetor com fator 15, distante dos mais utilizados por portadores da condição hoje, os de fator 50.
No mesmo período, Leila iniciou a prática do atletismo e, com os bons resultados, integrou a delegação brasileira que participou das Paralimpíadas de 1988, em Seul, na Coreia do Sul, e de 1992, em Barcelona, na Espanha. A baixa visão não impediu que a moradora da zona norte de Porto Alegre continuasse os estudos: ela é formada em História e Geografia pela Uniasselvi.
Leila trabalha desde os 25 anos no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre, onde é telefonista. Essa condição faz dela parte de uma minoria dentro do grupo de albinos no mundo. Segundo a Organização das Nações Unidas, apenas 10% dos albinos estão empregados de maneira formal. A situação piora para moradores de áreas rurais e quilombos: isso faz com que a maioria dos albinos dependa de benefícios de assistência social, diz a entidade global.
Leila diz não deixar de fazer nenhuma atividade por ser albina: frequenta praia, viaja, trabalha, mas ressalta que teve de conviver com episódios de discriminação durante toda a vida, em especial na juventude:
— Eu sinto menos hoje, mas sofri muito com o preconceito, de as pessoas não entenderem porque sou assim, o cabelo, a pele, os olhos. Ouvi muitas piadas. A minha irmã nem saía de casa. As pessoas se incomodam com o diferente, mas nem todo mundo é igual.