O ano de 2023 começou com um alerta de autoridades de saúde globais contra a bebida alcoólica. “Não existe nível de consumo de álcool que seja seguro à saúde”, declararam oficiais da Organização Mundial de Saúde (OMS) em um editorial publicado na edição de janeiro da The Lancet Public Health, prestigiada revista científica inglesa. Mesmo o uso leve ou moderado está associado à incidência de câncer, já que a substância é considerada carcinógena desde 2012 pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc).
O governo do Canadá seguiu a mesma linha da OMS ao divulgar, no mês passado, um guia que afirma haver risco crescente de câncer a partir do consumo de três unidades de álcool semanais. Menos do que isso, o risco é menor, mas existe. Cada unidade é o equivalente a uma lata de cerveja, taça de vinho ou dose de destilado. “Qualquer redução no uso de álcool é benéfica. Isso se aplica àqueles que não podem ou não querem reduzir seu consumo. Aqueles com altos níveis de uso têm muito a ganhar ao reduzir esse índice ao máximo”, recomendou o relatório publicado pelo Centro Canadense de Uso de Substâncias e Adicção (CCSA).
— Há muito tempo que a maioria dos órgãos de pesquisa ligados à saúde já tem esse consenso. Não é novidade que qualquer dose (de bebida alcoólica), em diferentes indivíduos, pode causar algum tipo de dano. A OMS nunca publicou nenhuma recomendação de beber com moderação, isso vem da indústria do álcool, que, antes dos anos 2000, já vendia esse slogan — diz a médica psiquiatra Ana Cecília Marques, conselheira da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead).
Só em 2018, o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou R$ 1,7 bilhão no tratamento de cânceres associados à bebida no Brasil. A estimativa é que o valor cresça para R$ 4,06 bilhões até 2040, um aumento de 136%, conforme divulgado pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca) em 2022. “Consumir bebidas alcoólicas, em qualquer quantidade, aumenta o risco de desenvolver câncer de boca, faringe, laringe, esôfago, estômago, fígado, intestino (cólon e reto) e mama”, alerta o instituto. A cada ano, entre todos os tipos de câncer, não apenas os associados à bebida, há 450 mil novos casos diagnosticados e 232 mil mortes no país pela doença, diz o Inca.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), de 2013 a 2019 o uso de álcool dobrou entre homens e cresceu quatro vezes entre mulheres, que são mais vulneráveis aos malefícios da bebida. O mesmo estudo também aponta que o Rio Grande do Sul é o Estado com a maior frequência de uso no país. Cerca de 40% dos gaúchos consomem álcool ao menos uma vez no mês, enquanto um a cada três bebe semanalmente.
Perguntado sobre as estratégias do governo federal para a redução do uso de álcool, o Ministério da Saúde não respondeu.
Uma taça de vinho faz bem ao coração?
Uma das afirmações dos oficiais da ONU é que eventuais benefícios do consumo de álcool ao coração não compensam o risco de câncer que a bebida pode causar. A própria Federação Mundial do Coração, que é uma espécie de sociedade global de cardiologia, alerta que a bebida não faz bem ao órgão e pode levar a cardiomiopatias, arritmias, hipertensão e acidente vascular cerebral (AVC). "Ao contrário da crença popular, álcool não faz bem ao coração. Isso contradiz diretamente a crença comum de que a bebida prolonga a vida ao reduzir o risco de doenças cardiovasculares", diz um relatório de fatos e mitos sobre o álcool publicado pela federação.
Há, inclusive, preocupação entre pesquisadores quanto à metodologia adotada em muitos dos artigos que apontam benefícios ao uso moderado da bebida. Um dos modos de se fazer isso é por meio de seleções enviesadas em estudos observacionais: comparar pessoas que estão bem de saúde, mas bebem, com pessoas que vão mal de saúde, mas são abstêmias, para chegar à conclusão de que quem consome álcool “moderadamente” está mais saudável.
— Muitos estudos que falam de benefícios de bebidas à saúde, se você for olhar os conflitos de interesses da pesquisa, há financiamento da indústria do álcool — afirma a historiadora Laura Cury, assessora de Relações Internacionais da Associação de Controle do Tabagismo (ACT), que defende que muitas das medidas usadas contra o cigarro sejam estendidas ao álcool, pelos riscos à saúde que ambos causam.
Uma delas é a restrição de acesso à bebida, que teve uma reviravolta após o boom de uso de álcool causado pela pandemia da covid-19. Uma análise da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da OMS nas Américas, entrevistou quase 3,8 mil brasileiros e 42% relataram alto consumo alcoólico durante o isolamento social entre 2020 e 2021 – a maior parte entre os mais jovens.
— A pandemia trouxe o beber em casa, o delivery e o beber escondido. Na medida em que tenho um delivery que entrega para mim o que pedi, não estou exposto, como um menor bebendo no bar. O celular deixou o acesso muito mais fácil e os que já bebiam e estavam em casa, acabaram influenciando o cônjuge ou familiar — lamenta Cecília Marques, que lembra que a bebida também é mais danosa ao cérebro dos jovens, já que o órgão só completa seu amadurecimento aos 25 anos.
De acordo com o Centro para Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, o fator carcinogênico da bebida vem de uma substância produzida pelo corpo ao metabolizar o álcool, o acetaldeído. Ele é um dos causadores da ressaca e está ligado a um tipo de dano celular que pode levar à formação de tumores.
Mais impostos para bebidas
O anúncio de janeiro da OMS reforçou uma campanha da Opas, que começou um trabalho junto a governos para ajudá-los a fortalecer suas políticas públicas de redução no consumo de álcool. A meta da organização é avançar em medidas já usadas, por exemplo, contra o cigarro, como o aumento de impostos e a restrição à publicidade, e que se mostraram eficazes no combate ao tabagismo.
— Tivemos encontros com os ministérios da Justiça e da Saúde em que pautamos temas como o enfrentamento e regulamentação do álcool, o que é visto de forma positiva pelo governo. As autoridades querem avançar nisso, até porque, no ano passado, foi aprovado na Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, um novo plano de ação global de enfrentamento ao álcool para até 2030 e os países buscam fortalecer esses compromissos reiterados — diz o internacionalista Diogo Alves, consultor nacional da Opas.
De acordo com fontes ouvidas por GZH, há interesse do governo federal na possibilidade de incluir bebidas alcoólicas na reforma tributária vindoura. A proposta é encaixar o álcool em um regime especial, com carga maior, destinado a bens que causem mal à saúde ou ao meio ambiente. O debate, no entanto, foi recém-inaugurado. O Ministério da Fazenda não quis comentar sobre uma potencial inclusão de bebidas alcoólicas na reforma tributária.
— Defendemos uma tributação majorada de produtos nocivos à saúde das pessoas e ao meio ambiente para desestimular o consumo. A experiência do controle do tabaco mostra que aumentando o preço, se reduz a prevalência de uso. Inclusive, é uma maneira de arrecadar para investir, por exemplo, na Saúde, que precisa de mais recursos nesse contexto pós-pandêmico — explica Laura Cury, da ACT, entidade que apoia a campanha da Opas e já se reuniu com autoridades do governo federal.